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2.3 Concepções de Constituição e Estabilidade Constitucional

2.3.2 Concepção Política

A concepção da Constituição enquanto decisão política foi desenvolvida por Carl Schmitt. O autor elaborou-a em obra publicada em 1928, em que estabelecia as bases de uma Teoria da Constituição, por isso levava-lhe o nome. Pretendia, naquela obra, criar uma disciplina científica autônoma, dotada de conceitos e métodos próprios.

Assim como em outros textos de Schmitt, extrai-se uma crítica contundente à concepção normativa Kelseniana e aos princípios do Estado Burguês de Direito. Com a preocupação de investigar o sentido de Constituição, Schmitt parte do pressuposto de que coexistem diversos significados, a justificar concepções divergentes.

Há um conceito absoluto a oferecer um todo unitário e totalizante, e um relativo, que identifica Constituição com uma série de leis com certas características e particularidades. Esse último é relativo porque trata como objetos idênticos a Constituição e as leis constitucionais. Enquanto o primeiro afeta uma ordenação ou uma unidade, o outro várias prescrições legais de certo tipo.143

O conceito absoluto admite quatro significados diferentes. Um primeiro, consiste na identificação da Constituição com a organização concreta política e social de um Estado. É a particular forma de “ser” da organização estatal, que faz do Estado a própria Constituição. Corresponde a mesma concepção de organização política elaborada por Aristóteles. Outra definição para Constituição é considerá-la como a forma de governo de um dado Estado, sua particular maneira de organizar-se politicamente. Essa definição permite uma tipologia de Constituições, tais como: democráticas, aristocráticas, monárquicas, e outras. A essas definições, deve-se acrescentar a de Rudolf Smend e Lorez von Stein, não circunscrita ao aspecto organizacional, mas a ela acrescida uma perspectiva dinâmica, representada pela constante transformação e renovação da organização do Estado.144

O que se nota em todas essas definições é o seu aspecto concreto, sua identificação com uma dada realidade política e social.

Dentro ainda do conceito absoluto de Constituição, Carl Schmitt identifica uma concepção normativa. Trata-se da que equipara Constituição com a normação total da organização do Estado. É um conceito do Estado Liberal, surgido inicialmente na Constituição da Restauração e na Constituição francesa de Luís Felipe, de 1830, cuja nota

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SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitucion. op. cit. p.3.

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marcante foi a identificação da soberania com a Constituição. Foi a forma encontrada pela burguesia de retirar o poder dos monarcas e, ao mesmo tempo, não confiá-lo ao povo. Entre essas duas dimensões políticas — o monarca e o povo — a Soberania passou a pertencer à Constituição. Em substituição à vontade positiva soberana, positivou-se na Constituição a verdade e a razão. Como a Constituição garantia a liberdade individual e a propriedade privada, estavam garantidas as prerrogativas e os direitos dos burgueses.

A concepção normativa de Constituição nasce na Ilustração e está assentada na crença em uma codificação cerrada e sistemática de normas justas. Segundo Schmitt, a concepção normativa do Estado liberal se mostrava possível porque contava com um conceito metafísico de Direito Natural. Todavia, hodiernamente, os novos textos não recobraram os mesmos princípios, porque informados por uma consciência desvinculada daquele primeiro momento histórico e político. A concepção de Constituição normativa do Estado Liberal — desvinculada de seu substrato histórico-político e ideológico — dissolveu-se em uma série de leis constitucionais positivas. O emprego do termo Constituição sobrevive ainda pela ausência de um instrumento conceitual mais adequado.

A existência de leis constitucionais faz possível o conceito relativo de Constituição. Para tanto não há diferença ontológica entre a lei constitucional e a lei comum. Toda discussão sobre o seu conteúdo perde sentido pela dispersão em uma série de “leis constitucionais”. É uma concepção relativa porque sua nota distintiva está em seu aspecto formal, independentemente de dispor sobre a organização do poder político, ou sobre qualquer outro conteúdo. Tudo o que se encontra em uma Constituição, por somente lá se encontrar, é fundamental, independente da matéria. A fundamentalidade de todas elas não confere importância às leis ordinárias, mas inferioriza as efetivamente constitucionais.145

Ainda, segundo Carl Schmitt, a literatura sobre a Constituição do Estado Liberal de Direito é cheia de equívocos. Não raro se compreende o acessório pelo essencial: a forma escrita e o procedimento solene de alteração pelo sentido de unidade da Constituição.

Com efeito, os textos constitucionais apareceram com a afirmação da burguesia perante a monarquia absoluta, por isso, próximos de um conceito ideal. Somente era Constituição a que contasse com forma escrita e dispusesse de determinados conteúdos: os valores e os direitos burgueses. Também havia necessidade de um determinado

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procedimento, porque a forma escrita surgia de uma convenção de representantes ou de um pacto entre os representantes e o monarca. Surgida de um pacto entre representantes e príncipe, podia ser alterada somente pelo órgão legislativo. Essa é uma segunda nota da natureza escrita da Constituição, a sua identificação com a lei produzida pelo Parlamento, em contraste com as normas constitucionais costumeiras do “Antigo Regime”. Tal identificação não era com qualquer lei, mas com aquela que representava uma codificação cerrada, por que expressão da sistematização empreendida pela razão. Todavia, com o descrédito das codificações — com o aparecimento de leis constitucionais particulares, com os mais diferentes conteúdos, sem uma regularidade sistemática — a forma escrita não é mais um critério seguro de identificação da Constituição.146

Outra nota formal era existência de um procedimento especial de reforma. Um condicionamento dificultado de alteração era o critério de distinção das leis e da Constituição. O procedimento dificultado tinha por fim conferir maior estabilidade e durabilidade às normas elaboradas pelas Assembléias Constituintes. Pretendia-se, com isso, livrá-las das maiorias parlamentares cambiantes, que estavam impedidas de modificá- las.

El primitivo sentido de la garantia de un Constitución se pierde cuando la Constitución como un se relativiza en uma pluralidad de distintas leyes constitucionales. La Constitución es, por su contenido y alcance, siempre más elevada y abarca más que cualquier ley particular. El contenido de la Constitución no era una cosa singular y destacada a causa de su más difícil reforma, sino al contrario: debía recibir la garantia de duracíon a causa de su significación fundamental. Esta consideración perdió peso cuando se trato, no ya de “la Constitución”, sino de una o de varias de las numerosas leyes constitucionales en particular. Entonces surgió un punto de vista muy sencillo, de táctica partidista: la reforma dificultada no era ya la consecuencia de la cualidad constitucional, sino al contrario: ser convertia en constitucional una prescripción para protegerla por cualesquiera razones prácticas (ajenas a cuanto tenga que ver con norma fundamental, etc.) frente ao legislador, es decir, frente a las cambiantes mayorías parlamentarias147.

Em resumo, quando a Constituição foi dissolvida em uma série de leis constitucionais particulares, o procedimento dificultoso de reforma remanesceu como um instrumento desprovido de sentido. Afinal, não é do procedimento de reforma que se deduz a essência do objeto reformado. Esse é que confere razão de existir ao procedimento dificultado. 146 Ibid., p.14-18. 147 Ibid., p.21.

Diante desse impasse, Carl Schmitt propõe-se a identificar um conceito positivo de Constituição,148 afirmando ser um erro confundir Constituição com “lei constitucional”. Forma escrita ou procedimento dificultoso não transforma uma “lei” em Constituição. A Constituição se expressa por um ato do um Poder Constituinte, que em uma única decisão contém a totalidade da unidade política considerada em sua particular forma de existência. Essa decisão não estabelece a unidade política, que lhe é anterior e pressupõe a própria decisão, contudo é a expressão consciente da forma particular dessa mesma unidade. Por essa razão, a Constituição não é algo absoluto, porque não surge de si mesma. Também não vale em razão de uma normatividade justa ou de um sistema cerrado e abstrato de normas, porque quem decidiu que assim deve ser foi o sujeito do Poder Constituinte. Uma Constituição existe enquanto decisão, expressão de uma unidade política.

Por conseguinte, existe uma diferença intrínseca entre a Constituição e as “leis constitucionais”. A Constituição — cuja essência é uma decisão — é expressão da vontade constituinte; as leis constitucionais — cuja essência é extrínseca, relativa, pertinente à presença de um procedimento dificultoso de transformação— existem em virtude de uma decisão constituinte anterior. Em linhas gerais, essa decisão que expressa a unidade política é que confere fundamento para a existência das leis constitucionais. Caso contrário, não passariam de uma série desconexa de disposições, muitas com conteúdos contraditórios ou dissonantes entre si. A diferença de essência faz com que a decisão política fundamental não se submeta às alterações empreendidas pelo Parlamento, mesmo durante o Estado de Exceção, pois é obra do Poder Constituinte. Ao reverso, as leis constitucionais podem ser alteradas por um procedimento legislativo, ainda que dificultoso, tendo o Parlamento competência para as modificações que compreenda convenientes.

A Constituição de Weimar não era um repositório exclusivo de decisões políticas fundamentais. Existiam: a) compromissos autênticos — que pressupunham uma vontade de união política, e uma consciência estatal anterior, com maior peso, sem as quais não haveria a transação— sobre particularidades e detalhes de organização e de conteúdo, firmados mediante transações entre contraposições de interesses e valores; b) compromissos não autênticos, que não eram compromissos, mas aparência de transações, com a finalidade de aparentar uma decisão, quando na verdade deixava a questão conflituosa indecisa.149

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Ibid., p.23-41.

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As observações e categoriais de Carl Schmitt são de utilidade manifesta. Ao identificar a Constituição com a decisão política fundamental do sujeito Constituinte, possibilita um critério objetivo e seguro para investigar a permanência ou não de uma dada escolha. A partir desse exame possibilita-se um juízo sobre sua legitimidade, seus pressupostos, seus condicionamentos e conseqüências. Mostra-se, igualmente, atual sua denúncia da diferença entre leis constitucionais e Constituição, discrime que hodiernamente resta esquecido com a unanimidade assumida pelas Constituições Rígidas. Essas ocupam o cenário jurídico enquanto normas condicionadas por um procedimento legislativo dificultoso de transformação, independente do seu conteúdo. Quando isso ocorre, as discussões resvalam somente à superfície do problema, porque se limitam a investigar a observância ou não do procedimento estabelecido, descerrando caminho para toda e qualquer alteração pretendida pelas maiorias parlamentares.