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3. CONSTITUIÇÕES RÍGIDAS: LIMITAÇÕES AO PODER DE REFORMA,

3.4. Imutabilidade Relativa

3.4.2.2 Costume e Convenções Constitucionais

Por costume constitucional compreende-se a prática constitucional reiterada, que gera a convicção de sua obrigatoriedade. Em verdade é o fato que reiterado gera a regra jurídica. Se a importância dos costumes é indiscutível nas Constituições Flexíveis, o seu papel, nas Constituições Rígidas é controvertido. Discute-se mesmo se existem costumes com força de modificar o sentido das Constituições.

Admitindo-lhes, entretanto, a existência, o desacordo desenvolve-se sobre o seu grau de eficácia. Muito embora seja indiscutível a existência de costumes interpretativos — secundum legem ou praeter legem — o mesmo não acontece com os costumes revocatórios ou contra legem. Nesse caso, a sua aceitação enquanto fonte do direito constitucional transformaria uma Constituição Rígida em Flexível. Por um processo

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FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. op. cit. p.117-125.

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que não o solene, modificar-se-ia a Constituição. É por essa razão que sua existência retoma a discussão dos limites da mutação constitucional ou da modificação informal inconstitucional. Em resumo, a aceitação dos costumes revocatórios exige uma rediscussão das fontes da Constituição, da sobrevivência da supremacia constitucional, por conseqüência, da própria Constituição Rígida. Assim sendo, somente o costume interpretativo — nunca o revocatório — deve ser admitido perante as Constituições Rígidas.

Meirelles Teixeira, reportando-se a Duverger, levanta a hipótese de sua ocorrência: nas lacunas constitucionais ou pelo desuso, forma negativa de costume. Em casos tais, há uma ruptura ou um hiato entre a realidade jurídica e a política, a provocar a transformação constitucional, a despeito da proibição expressa ou implícita. Mas para que isso aconteça, há a necessidade de um fundamento psicológico permeando o destinatário da norma constitucional, de forma que o costume revocatório seja compreendido como uma prática escorreita e em obediência à Constituição. Há necessidade de uma boa-fé, que tenha o costume inconstitucional como constitucional. O problema, conforme arremata o autor citado, é que “[...] a validez jurídica dos costumes modificadores da Constituição rígida é essencialmente instável, uma vez que repousa apenas nessa crença de sua regularidade constitucional, desaparecendo se esta desaparece”.277

Por essas razões, o costume inconstitucional não somente é inválido, como inexistente. Consiste, exclusivamente, em situação anômala surgida ao redor das Constituições, para qual não há sanção ou instrumento para sua supressão. Irrelevante para a teoria constitucional, pois raro produzir efeitos jurídicos.278 Seu sentido, entretanto, é o desprestígio da supremacia constitucional e o enfraquecimento das Constituições Rígidas.

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TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. op. cit. p. 150.

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Da mesma natureza dos costumes são as convenções constitucionais,279 com a diferença que essas são verdadeiras regras políticas, seguidas pelos órgãos do Estado no exercício de suas atribuições. Não se confundem com as meras práticas burocráticas, porque as convenções têm sempre por pressuposto razões de oportunidade política. Conferem concreção a princípios pertinentes ao sistema de governo ou ao regime adotado. Permitem particularizações que a prática política diuturna exige e são geralmente encontrados nos sistemas parlamentaristas de governo, ainda que o sistema presidencialista as conheça.280 Exemplo de convenção constitucional era a proibição dos Presidentes americanos elegerem-se para um terceiro mandato, regra que prevaleceu por mais de um século, até que Franklin Delano Roosevelt elegeu-se por mais duas vezes em 1940 e 1944.

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A despeito de sua importância na transformação indireta das Constituições Rígidas, as Convenções — Conventions — têm um invulgar respeito no âmbito da Constituição Flexível inglesa. Ao tratar do tema, Dicey define a Constituição inglesa como o conjunto de regras que direta ou indiretamente afeta a distribuição ou o exercício do poder soberano dentro do Estado ([...] appears to include all rules wich directly ou indirectly affect the distribution or the exercise of the sovereign power in the state). Essas regras, por sua vez, consistem em dois institutos distintos: a) a norma constitucional em seu sentido estrito, consistente em toda disposição que pode ser aplicada ou exigida perante os Tribunais; b) as Convenções que são máximas, interpretações, hábitos e práticas sobre o exercício da soberania, mas que não podem ser aplicadas ou exigidas perante os Tribunais. Para o autor é um erro comum identificar as Convenções com as normas não escritas, porque se essa analogia pode ser feita na Constituição Rígida americana, o mesmo não pode na Constituição inglesa, onde são conhecidas normas constitucionais em seu sentido estrito de natureza “não escrita”, e Convenções expressas em textos. A importância e a práxis das Convenções no direito inglês é de difícil assimilação para a doutrina estrangeira. Sua compreensão exige a investigação de sua natureza e da sanção empregada para impor-lhe obediência. Quanto à natureza, as mais diferentes Convenções guardam um ponto em comum: tem por fim limitar a função governativa compreendida pelo King in Parliament ([...] the conventions of the constitution, looked at as a whole, are customs, or understandings, as to the mode in which the several members of the sovereign legislative body, which, as it will be rembered, is the “King in Parliament”, should each exercise their discretionary authority, whether it be termed the prerogative of the Crown or the Privilege of Parliament). Com efeito, as Convenções servem para limitar a discricionariedade do Parlamento, da Coroa e de seus ministros. Muito embora tenha vigência na Inglaterra o princípio da soberania do Parlamento, existe uma diferença entre a soberania legal e a soberania política. O Parlamento dispõe da primeira, mas o povo da segunda, e é por meio destas últimas que o povo controla seus órgãos de governo. As Convenções buscam harmonizar a relação entre o soberano político e o soberano jurídico. Isso não acontece nos Estados Unidos, onde o Poder Legislativo não dispõe de soberania. Por fim, Dicey lembra que outra característica das Convenções é não dispor de sanção para os casos de descumprimento. Quanto às conseqüências, não é incomum as Convenções serem desobedecidas, sem que se disponha de qualquer sanção, ou recurso aos Tribunais. Na verdade, o descumprimento de uma Convenção demonstra que não faz parte da Constituição inglesa. Mas, em contrapartida, são muitas as que são obedecidas ano a ano, o que impõe a investigação das razões de sua obediência espontânea. Dicey encontra essa causa oculta na força do Direito, e no respeito ao Princípio do Estado de Direito — rule of law — que permeia toda a organização social e política inglesa. Aquele que descumpre uma Convenção, não dispõe de poderes para compelir os demais órgãos do Estado a obedecer-lhe. Dessa feita, um Gabinete que não conte com a maioria da Câmara dos Comuns— e, recuse-se a renunciar —, não será obedecido pelos demais órgãos do Estado. Em linhas gerais, o respeito às Convenções está cingido ao respeito às deliberações do Parlamento, primeiramente, e depois, ao respeito à vontade da nação expressa pelo Parlamento, e todos os que se envolverem no descumprimento de suas determinações, estarão envolvidos no descumprimento do Estado de Direito (Cf. DICEY, A. V. Introduction to the study of the Law of the Constitution. 8ª ed. London: Macmillan and Co. Limited, 1927. p. 22-29, 414-468).

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Não é sem razão que as convenções são compreendidas como uma das fontes, de natureza sociológica, do Direito Parlamentário (Cf. VALENZUELA, Francisco Berlin. Derecho Parlamentario. México: Fondo de Cultura Econômica, 2003. p.89-90).

Todavia, era tamanha a força do precedente, que para evitar um novo desrespeito, transformou-se a proibição em expressa norma constitucional (Emenda de nº XXII).281