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Interpretação Constitucional: Legislativa, Administrativa e Jurisdicional

3. CONSTITUIÇÕES RÍGIDAS: LIMITAÇÕES AO PODER DE REFORMA,

3.4. Imutabilidade Relativa

3.4.2.1 Interpretação Constitucional: Legislativa, Administrativa e Jurisdicional

A interpretação constitucional não é atividade exclusiva do Poder Judiciário, o Poder Legislativo e o Poder Executivo realizam-na no exercício de suas funções típicas.260

A norma constitucional, como qualquer outra, exige a interpretação. Em linhas gerais consiste na identificação de um sentido implícito em um enunciado normativo, a imputação de um significado ou a reconstrução do conteúdo da norma.261 A compreensão da interpretação depende também da concepção que se tenha sobre a iniciativa do intérprete. Mais passiva para aqueles que concebem a interpretação como uma descoberta de sentido pré-existente ou ativa para os que vislumbram um ato de criação ou recriação do Direito.

A interpretação vincula-se a mutação da Constituição quando há a atribuição de um sentido novo ou novo conteúdo a sentido já existente, alcançando situações não normadas. Em linhas gerais, as situações indiciárias de uma mutação da Constituição pela interpretação são as seguintes: a) alargamento do sentido do texto constitucional, alcançando novas realidades antes não reguladas; b) atribuição de sentido preciso e concreto ao texto constitucional; c) substituição de uma significação anterior, por uma nova, em razão da evolução empreendida na realidade constitucional; d) adaptação da Constituição à situação nova, não previamente intuída ou incluída em sua promulgação; e)

259

RUFFIA, Paolo Biscaretti Di. Instroducción al derecho constitucional comparado. México: Fondo de Cultura Econômica, 1979. p. 347.

260

Também existem a interpretação popular e a interpretação doutrinária.

261

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 28.

adaptação do texto para fazer frente às peculiaridades surgidas no momento de sua aplicação; f) preenchimento das lacunas do texto pela via interpretativa.262

A tessitura das normas constitucionais e as características singulares da atividade do intérprete têm indiscutível influxo sobre a sua transformação indireta. São fatores relevantes: a) a natureza sintética, genérica e esquemática das normas constitucionais;263 b) a natureza vaga e abstrata dos preceitos constitucionais, em razão de compromissos assumidos, da necessidade de deixar questões em aberto sem uma decisão tomada; c) a atividade criativa do intérprete ao colmatar lacunas; d) a natureza não auto- executável dos preceitos constitucionais, a recomendar concretização para aplicação; e) a riqueza da exegese constitucional, com o emprego dos mais diferentes métodos de interpretação pelos órgãos jurisdicionais; f) o conteúdo político dos enunciados normativos da Constituição.264

Segundo o órgão do Estado competente para realizá-la, a interpretação pode ser legislativa, administrativa e jurisdicional.

A interpretação exercida pelo Poder Legislativo é a que se encarrega de precisar o sentido, o alcance ou conteúdo da norma constitucional, com a finalidade de concretizá-la por lei. Atividade exercida por determinação expressa ou em razão da necessidade lógica de regulamentação de um direito ou instituto. As modificações são largas quando muito tempo se passou desde a promulgação da Constituição. Nesses casos, as forças reagentes são bem diferentes daquelas que atuaram na origem constitucional. Isso é muito comum no Direito eleitoral, porque ao mesmo tempo em que os fatos e valores políticos são de grande dinamismo, a Constituição comumente deixa um vasto campo para concretização: regras genéricas sobre sufrágio, eleições e sua periodicidade.265

A interpretação legislativa conta com características próprias: a) primária ou direta, porque tem seu fundamento de validade na Constituição;266 b) permanente, pois

262

FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. op. cit. pp. 58-59.

263

Quando as Constituições são sintéticas e dotadas de normas genéricas, sempre haverá abertura para uma interpretação constitucional criativa, evolutiva e transformadora, pois mais amplos os significados a serem abordados e concretizados

264

FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. op. cit. pp. 61-62.

265

RUFFIA, Paolo Biscaretti Di. Introducción al derecho constitucional comparado. op. cit. p. 348.

266

A Constituição é a norma suprema, e a primeira de um dado ordenamento jurídico. Dessa feita é o ato normativo inicial, dela defluindo todas as demais normas. Do ato inicial, derivam outros atos — que não se confundem com aqueles que substituem as normas constitucionais e organizam as entidades autônomas em uma Federação, porque ainda que de origem distinta, têm eficácia assemelhada às normas Constitucionais — chamados de “primários”. São primários porque pressupõem o primeiro nível na escala descendente a partir da Constituição. Por fim, existem os secundários, que tiram seu fundamento de validade dos atos primários, assim como esses fazem com a Constituição. É esse o sentido da expressão. (Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. op. cit. p.181-182).

expressão da atividade contínua dos órgãos legislativos do Estado; c) limitada, pois está adstrita aos comandos constitucionais, não podendo suplantar-lhe as diretrizes, pena de incorrer em vício de inconstitucionalidade;267 d) mutável, pois, alterável segundo os valores cambiantes das maiorias parlamentares, desde que as normas constitucionais estejam abertas para admitir essa elasticidade; e) provisória, desde que exista um controle de constitucionalidade confiado a outro órgão constitucional; f) obrigatória quanto ao seu exercício, pois o legislador dispõe do dever de legislar, não da mera faculdade; g) discricionária quanto a conveniência, a oportunidade e as opções constitucionais do ato legislativo;268 h) vinculante, porque cria obrigação jurídica.269

Além da interpretação constitucional legislativa, a administrativa contribui para a modificação do sentido da Constituição. Interpretação administrativa cabe ao Poder Executivo no exercício de sua função típica ou aos outros poderes no exercício de função atípica: ajustar seus atos, resoluções e determinações aos dispositivos da Constituição. Entretanto, a atividade administrativa está subsumida ao princípio da legalidade estrita, o que faz com que em grande parte das situações, seja uma atividade normativa secundária. Sendo atividade secundária, que não decorre diretamente da Constituição, sua importância é menor na atualização da Constituição. Suficiente, por isso, ao menos para a proposta da seção, lembrar-lhe a existência enquanto padrão de interpretação, sem necessidade de considerações de maior profundidade. O mesmo se diga da interpretação popular270 e doutrinária271 que por não emanarem dos órgãos decisórios do Estado, na grande maioria dos casos, tem uma eficácia somente indireta sobre as normas constitucionais.

267

As normas constitucionais fixam critérios ou diretivas para o legislador, podendo o intérprete incorrer em inconstitucionalidade material, inclusive por desvio de poder, quando suplanta essas balizas. Daí serem tênues os marcos que divisam a interpretação constitucional da inconstitucional (Cf. MIRANDA, Jorge. op. cit. p. 250-251).

268

A atividade legislativa é discricionária por excelência, no sentido de que é grande a liberdade do legislador em concretizar os valores e institutos constitucionais, e apreciar as contingências que justificam sua realização. É obvio que essa liberdade não é absoluta, existindo instrumentos para fiscalizar a correspondência das leis com as determinações constitucionais. Entre nós, um controle material de inconstitucionalidade, e uma ação de inconstitucionalidade por omissão são refreios a esse campo de concretização.

269

Cf. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. op. cit. p. 67-75.

270

Por interpretação popular compreenda-se a formada no seio da sociedade, entre grupos organizados ou não. Gestada originalmente não dentro do Estado, influi em seus órgãos decisórios indiretamente, ainda que canalizadas por instrumentos de participação direta, como é o plebiscito, o referendum e a iniciativa popular. A despeito do nome, não consistem em mecanismos de participação direta, mas sim de participação conjugada, porque sempre estarão ligados a um órgão de representação, que será chamado a formalizar a decisão tomada antes ou após.

271

Interpretação doutrinal é aquela produzida pelos estudiosos e juristas, no tratamento científico do fenômeno jurídico.

Não acontece o mesmo com a interpretação jurisdicional, porque a de maior importância entre aquelas que ora tratamos. O sentido primeiro das Constituições Rígidas é transformado e atualizado por meio do controle de constitucionalidade, que abre caminho para uma complexa dialética sobre a natureza, princípios e institutos de direito Constitucional.272

A interpretação jurisdicional tem lugar diante do conflito entre a Constituição e a lei ou qualquer outro ato normativo. É que por natureza a Constituição Rígida estabelece limites à ação de legisladores, governantes e demais órgãos estatais. Quando transgredidas as balizas, descumpridos os limites, os juízes são chamados a dizer o sentido da Constituição e qual o alcance dessas mesmas restrições. Essa função modifica- se em importância conforme a Constituição. Se as restrições ao governo e ao legislativo são maiores, a tarefa do Poder Judiciário será sempre maior, o inverso ocorrendo quando os limites são menores. 273

O emprego da interpretação jurisdicional como instrumento fundamental de atualização tem a Constituição americana como padrão. Tal se deve pela adoção do Princípio da Supremacia Judiciária, que permite que os conflitos entre os atos do Governo e a Constituição sejam decididos em instância final pela Suprema Corte. Enquanto em outros Estados, onde a mudança da Constituição exige por vezes a convocação de exércitos, dissolução de Parlamentos, mobilizações populares, deposição de governantes, enfim, revoluções; perante a Constituição americana resolve-se por decisões da Suprema Corte em um procedimento judicial técnico jurídico.274

A interpretação judicial apresenta características próprias no que se refere ao seu exercício: a) é obrigatória, porque ao Poder Judiciário — ao menos no ordenamento brasileiro — não é conferido o non liquet; b) é primária, porque é atividade jurisdicional exercida com fundamento direto na Constituição; c) é provocada, segundo o Princípio da Inércia da Jurisdição ou do princípio nemo iudex sine actore; d) é concreta ou abstrata, conforme o instrumento de fiscalização de constitucionalidade empregado. Já, quanto aos seus efeitos é: a) definitiva, porque nos sistemas que admitem o controle de constitucionalidade, o Poder Judiciário é o árbitro final das contendas constitucionais; b) mutável, pois permite que em outra ação — no controle abstrato ou no controle concreto entre outras partes — decida-se diferentemente; c) é vinculante, quando o ordenamento

272

FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. op. cit. p.102-103.

273

WHEARE, K. C. op. cit. p.101-102.

274

confere-lhe essa qualidade, a exemplo da Ação Direta de Inconstitucionalidade, da Ação Declaratória de Constitucionalidade e da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.275

Em linhas gerais, a interpretação judicial pode exercer uma função indispensável na atualização das Constituições.

Fala-se, assim, em interpretação evolutiva ou adaptadora e adequadora quando se procura, por intermédio da interpretação judicial, adaptar ou adequar o conteúdo, alcance, ou significado da disposição constitucional (a) à mudança de sentido da linguagem nela inserida, (b) a novas situações, (c) à evolução dos valores positivados na Constituição, (d) à mudança de intenção dos intérpretes (válida porque dentro dos limites impostos pela Constituição aos poderes constituídos), (e) a resolver obscuridades do texto constitucional. Menciona-se, ainda, a construção jurisprudencial quando se cogita de aplicar a norma constitucional a situações não previstas expressamente no texto constitucional, mas que dele decorrem ou emanam por imperativos lógicos ou do próprio sistema constitucional. Fala-se em interpretação criativa e a analógica quando a atividade jurisprudencial preenche lacunas ou corrige omissões do texto constitucional, previstas ou não pelo constituinte.

Em todos esses casos, exsurge, nítido, o papel de mutação constitucional da interpretação judicial que, sem alterar a letra ou o espírito da norma constitucional, lhe dá novo significado ou alcance para, aplicando-a, torná- la o que se pretende que ele seja: um documento vivo e definitivamente cumprido (grifo nosso).276

Essa atualização, comumente é expressa no controle de constitucionalidade, que será estudado mais à frente.