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2.3 Concepções de Constituição e Estabilidade Constitucional

2.3.1 Concepção Normativa

A concepção normativa de Constituição tem em Kelsen seu representante mais ilustre, ainda que não o único. Por concepção normativa entende-se o conjunto de normas estabelecidas de uma só vez, de forma absoluta, exaustiva e sistemática, e que tem por fim a regulamentação do Estado e de seus mais diversos órgãos. É concepção que retira seu fundamento da crença da possibilidade de uma planificação e racionalização da organização política, e na transformação de todo e qualquer problema do mundo fenomênico em um modelo abstrato. Pela aplicação dessa concepção, instituições,

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organizações sociais e poderes transmutam-se em normas, deixam de ser situações concretas, e transformam-se em questões normativas.137

A concepção normativa de Constituição tem sua origem na Ilustração e no Iluminismo, mas encontra em Kelsen seu representante mais extremado.138 Para entender o seu conceito, é necessário primeiro expor sua rigorosa postura metodológica de criar uma Ciência do Direito, eliminando qualquer influência exógena, e reduzindo o seu objeto a normas jurídicas e a relações intra-sistêmicas. Essa postura tem por pressuposto a distinção entre juízos do “ser” e do “dever-ser”, a partir do qual haveria de um lado a natureza e do outro as normas jurídicas. Hans Kelsen reconhece que o Direito é complexo, na qual convergem dimensões distintas, objeto de estudo da Sociologia, Filosofia, Ética, História, Psicologia, etc. Mas, para a Ciência do Direito, enquanto disciplina com pretensões a autonomia científica, o seu objeto exclusivo de estudo é o que lhe é essencial: seu aspecto normativo. Por essa razão, quando se discute Constituição na obra de Kelsen, antecipadamente deve-se lembrar de norma jurídica.

Firmado por esses pressupostos teóricos, Kelsen identifica o Estado com o ordenamento jurídico, ou com o conjunto de normas positivas. Para ele, a Teoria do Estado pode consistir em uma Teoria do Direito, que por sua vez admite investigação enquanto relação de normas jurídicas válidas. Acontece que a validade de uma dada norma não pode ser verificada em sua adequação com os fatos que lhe são vinculados, pena de uma inaceitável confusão entre o “ser” e o “dever ser”. Logo, a sua validade jurídica

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PELAYO, Manuel Garcia. Op. cit. pp.34-35.

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Hans Kelsen, enquanto pensador do Direito, inscreve-se no movimento conhecido por positivismo jurídico. Influenciado pelo positivismo científico do século XIX, o positivismo jurídico consiste em uma postura metodológica que tem por pressuposto a rejeição de todo postulado que não possa ser provado racionalmente. Por isso, retira seu fundamento e fins daquilo que satisfaz as exigências da observação e experimentação, e por isso “do posto”. Contou com um enfoque sociológico e normativo, consistindo o último na busca de uma depuração epistemológica da ciência jurídica. No campo do Direito Público também foram positivistas Gerber, Laband e Orlando, que preconizavam a aplicação da mesma metodologia jurídica do Direito Privado aos enunciados do Direito Público. Gerber, um professor de direito privado, insistia no uso de seus métodos para o direito público, limitando-se à análise da norma posta, sem qualquer preocupação com elementos não jurídicos. A proposta de Geber será ulteriormente consolidada e sistematizada por Paul Laband, que defendeu a purificação da dogmática jurídica de questões valorativas e políticas. Na verdade, pretendia-se com isso a consolidação do Reich Alemão, e a exclusão de qualquer crítica política, que era acusada de não científica. Também, antecedeu Kelsen no pensamento positivista normativo germânico, Georg Jellinek, que em sua Teoria do Estado propõe-se a estudar o Estado enquanto “ser”, realidade sociológica, e enquanto “dever ser”, realidade jurídica. Para tanto, sua proposta metodológica é de duas análises estanques, que não se interpenetram, e não se contaminam (Sobre o Positivismo Jurídico Cf. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca et ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2002. p.335-350; DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do

Direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.102-119. Sobre o positivismo jurídico no direito público

germânico: Cf. BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de et al. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no

somente pode ser reconduzida a uma relação com outra norma. Quando estabelecida, sabe- se que uma é o fundamento de validade da outra, a que confere validade é superior à segunda. Isso permite que todo um sistema jurídico seja deduzido de uma única norma, dita fundamental, porque esteio de todo o sistema.

Essa relação entre a norma fundamental e as demais é de duas ordens, associadas ao seu conteúdo e ao seu procedimento de criação. Uma norma é relacionada ao conteúdo de outra, quando possa ser inferida do que é contido na que lhe confere fundamento. Em um sistema assim, dito estático, o conteúdo das normas do sistema é inferido de uma norma fundamental, da mesma forma que o particular se subsume ao geral. Só que uma norma que possibilite que se deduza outras, enquanto fundamento de validade, só pode ser considerada como norma fundamental se é imediatamente evidente. Dizer que um sistema de normas possa ser imediatamente evidente, significa que ela é dada pela razão, criada pela razão. Acontece que razão é um ato de conhecer, e não querer, e as normas são estabelecidas por um ato de vontade. Logo, nunca existiria uma norma imediatamente evidente. Um sistema de normas estabelecido assim seria estático, como o é o da moral. Agora

O sistema de normas que se apresenta como uma ordem jurídica tem essencialmente um caráter dinâmico. Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico do conteúdo de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada de uma forma determinada – em última análise, por uma norma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força de seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica. A validade desta não pode ser negada pelo fato de o seu conteúdo contrariar o conteúdo de outra norma que não pertença à ordem jurídica cuja norma fundamental é o fundamento de validade da norma em questão. A norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material que, pelo fato de o seu conteúdo ser considerado como imediatamente evidente, seja pressuposta com a norma mais elevada da qual possam ser deduzidas — como o particular do geral — normas de conduta humana através de uma operação lógica. As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação. São normas postas, quer dizer positivas, elementos de uma ordem positiva.139

A norma fundamental instaura o fato primordial de criação jurídica. Confere atribuição, poderes, para que outras sejam criadas, que por sua vez outorgam novas competências normativas para outra criação, e assim levam a um sistema normativo completo.

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Quando se dispõe sobre a norma fundamental de um dado ordenamento, está a se referir a Constituição de um determinado Estado. Mas como o sistema kelseniano implica obrigatoriamente a existência de uma norma válida, objetiva, que confere autorização para realização de um ato instituidor, há necessidade de outra, válida a priori, que concede autorização para o ato subjetivo constituinte de instauração de uma norma fundamental positiva. Para sua proposta metodológica, de um sistema livre de elementos heterogêneos, a norma fundamental não pode ser válida por um ato volitivo. Imprescindível outra norma. Kelsen enfrentou o problema com a pressuposição de uma norma válida.

Esta norma pressuposta, hipotética, é a condição lógico-transcendental de existência de seu sistema. A ordem dinâmica kelseniana, de produção normativa, pode ser representada por um silogismo, na qual a premissa maior consiste na norma objetivamente válida autorizadora de um ato subjetivo de produção normativa, e a premissa menor o ato subjetivo propriamente dito, e a conclusão a norma produzida. Quando aplicado esse silogismo para a Constituição, a premissa maior consiste na norma fundamental pressuposta ou hipotética, enquanto a premissa menor o ato constituinte, e a conclusão a Constituição positivada. Mas quando aplicado o mesmo procedimento lógico para a norma fundamental pressuposta, não se encontra outra, ou mesmo um ato subjetivo ordenador, razão que é colocada como premissa maior, sem que ela mesma consista na conclusão de outra.

Se, porém, a norma fundamental não pode ser o sentido subjetivo de um ato de vontade, então apenas pode ser o conteúdo de um ato do pensamento. Em outras palavras: se a norma fundamental não pode ser uma norma querida, mas a sua afirmação na premissa maior de um silogismo é logicamente indispensável para a fundamentação da validade objetiva das normas, ela apenas pode ser uma norma pensada140.

Essa concepção permite algumas caracterizações. Entre elas, a de que primeiramente a Constituição recolhe o fundamento de validade em si mesma, não necessitando de nenhum outro para valer. Possui um valor formal implícito, que exige a conformidade de todos os atos normativos inferiores com suas disposições. Segundo, e razão da primeira característica, é uma fonte de determinantes negativas e positivas à legislação inferior, ou seja, enquanto restrição e regulação parcial do conteúdo daquelas.

Ora, quando se está diante de uma concepção tal de Constituição, pouca importância terá a discussão de estabilidade, ao menos da forma como aqui se trata. Mas

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de outro lado, a rigidez constitucional desvincula-se enquanto categoria de preservação de estabilidade de uma Constituição, para se transformar em instrumento de garantia de direitos e liberdades públicas.

Contudo, se a “liberdade” ou o “direito” concebido pela Constituição pode ser restringido ou até mesmo abolido por uma simples lei, a norma constitucional que concede a “liberdade” ou o “direito” não tem, na realidade, qualquer valor. O propósito de uma norma constitucional que concede uma liberdade ou direito particular é precisamente de impedir que os órgãos do poder executivo sejam autorizados por lei simples a ultrapassar os limites da esfera de interesse determinada pela ‘liberdade” ou “direito”141.

Em resumo, enquanto instrumento de investigação da estabilidade ou instabilidade, a concepção normativa-kelseniana de Constituição é de relevância nenhuma, porque seu sistema é neutro em relação aos valores e fatos relevantes para o Direito. Fatos e valores são ignorados porque comprometem a pureza epistemológica do sistema edificado, por isso não é útil investigar sua permanência em um dado sistema constitucional.

Mas, como se colocou antes, as Constituições Rígidas são analisadas hoje enquanto categoria desvinculada de estabilidade ou permanência. Os debates sobre sua importância centram-se na sua capacidade de concretização de um projeto constitucional de preservação de direitos fundamentais, que somente são factíveis pela existência da supremacia constitucional, que por sua vez tem por pressuposto um condicionamento reforçado de reforma e um controle de constitucionalidade. Para essas questões, os postulados de Kelsen são de grande importância:

Se o direito positivo conhece uma forma constitucional especial, distinta da forma legal, nada se opõe a que essa forma também seja empregada para normas que não entram na Constituição no sentido estrito, e antes de mais nada, para normas que regulam, não a criação, mas o conteúdo das leis. Daí resulta a noção de Constituição no sentido lato. É ela que está em jogo quando as Constituições modernas contêm não apenas regras sobre órgãos e o procedimento da legislação, mas também um catálogo de direitos fundamentais dos indivíduos ou de liberdades individuais. Com isso — é o sentido primordial, senão exclusivo, dessa prática — a Constituição traça princípios, diretivas, limites, para o conteúdo das leis vindouras. Proclamando a igualdade dos cidadãos diante da lei, a liberdade de consciência, a inviolabilidade da propriedade, na forma habitual de uma garantia aos sujeitos de um direito subjetivo à igualdade, à liberdade, à propriedade, etc., a Constituição dispõe, no fundo, que as leis não apenas deverão ser elaboradas de acordo com o modo que ela prescreve, mas também não poderão conter disposição que atente contra a igualdade, a liberdade, a propriedade, etc.142

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KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. op. cit. p.259.

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