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4.3 UMA ANÁLISE CRÍTICO-INTERPRETATIVA DOS TEXTOS CIENTÍFICOS

4.3.1 A filosofia e o filosofar

4.3.1.5 A filosofia como pensamento rigoroso

Ainda na esteira de uma caracterização racionalista da filosofia e do filosofar, a quarta característica contida nos textos afirma que a filosofia consiste de um pensamento radical, por se tratar de um pensamento que vai às raízes dos problemas e por atender a uma série de critérios de precisão e clareza, como: capacidade de se posicionar e de justificar seu próprio posicionamento, a partir da exposição articulada da razoabilidade das próprias afirmações. Nesse sentido, filosofar nunca é opinar.

Segundo Baggini e Fosl (2008, p. 9), a filosofia pode ser uma atividade extremamente técnica e complexa e que, por essa razão exige um domínio de algumas ferramentas

“conceituais”, que “podem ser usadas para analisar, manipular e avaliar conceitos,

argumentos e teorias filosóficas”. Entre as principais ferramentas da filosofia está a argumentação. Para Savian Filho (2010), o filósofo é, antes de tudo, um especialista da

argumentação e da demonstração e “como sua atividade é sempre feita em diálogo com outros

pensadores, cientistas, artistas etc., ele desenvolve a habilidade própria de analisar a maneira

como argumentamos para justificar nossas certezas e opiniões” (p. 11, grifo nosso). A partir

disso, depreende-se que o filosofar exige expertise argumentativa, e, mesmo no Ensino Médio, momento em que a maioria dos jovens no Brasil estão entrando em contato com a filosofia pela primeira vez, os estudantes de filosofa devem ser preparados para lidar com esse instrumental filosófico. Para esse autor, do mesmo modo que um corpo bem treinado, além de se sentir bem fazendo exercício, tem a necessidade de continuar a exercitar-se, um

pensamento habituado a refletir, uma mente preparada “tem prazer em exercitar-se e quer

expandir-se sempre mais” (SAVIAN FILHO, p. 7). Na mesma linha de raciocínio, Chauí afirma:

As indagações fundamentais da atitude filosófica e da reflexão filosófica não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões de cada um de nós. A

Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de

opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores, a fim de montar uma propaganda. As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático. (CHAUÍ, 2010a, p. 31).

Todas essas afirmações revelam um horror da filosofia ao pensamento mal elaborado e superficial. Algo que também remonta aos antigos filósofos gregos, como Platão, por exemplo. No Timeu, o pai da Academia, vai dizer que a ciência (episteme) e a opinião (doxa)

não se igualam e, na sua famosa Alegoria da Caverna, – ao descrever a libertação do prisioneiro do mundo subterrâneo/inferior das sombras, em sua árdua subida para fora da caverna, onde, desde um plano superior é possível contemplar as coisas como elas na realidade são – Platão vai mostrar que o verdadeiro conhecimento só pode ser alcançando pela inteligência, única capaz de reconhecer a verdade, isto é, somente pela inteligência pode-se chegar à essência (raiz) de tudo. A opinião, regida pelo mundo das aparências, só é capaz de dizer aquilo que a realidade parece ser e não o que ela é.

Todavia, o filósofo que mais se ocupou na Antiguidade com a forma correta de pensar foi Aristóteles, o fundador da Lógica. Para o Estagirita não haveria nenhuma ciência sem uma propedêutica da Lógica ou da análise lógica, composta basicamente pela doutrina do silogismo17. Com o uso da lógica ou domínio do silogismo mantinha-se a regra do exercício de um pensamento rigoroso. Descartes destacava a da necessidade de se desfazer de todas as opiniões para poder estabelecer algo de firme e constante na filosofia.

Platão, Aristóteles e Descartes são apenas três exemplos da preocupação que todo filósofo tem para com um pensamento bem elaborado. Deleuze e Guattari afirmam que:

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. [...] É por isso que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. Pedimos somente que nossas ideias se encandeiem segundo um mínimo de regras constantes [...]. (DELEUZE, GUATTARI, 2009, p. 259).

No entanto, assim como dizer que o questionar e o refletir não são, segundo nosso entendimento, suficientes para definir o filosofar, embora sejam operações ligadas à atividade filosófica, também entendemos como insuficiente compreender o pensamento rigoroso como uma característica definidora da filosofia. A precisão no raciocínio e/ou pensamento rigoroso não é uma exclusividade da filosofia. Toda ciência empírico-experimental também se baseia nesse tipo de pensamento. Não há matemática, por exemplo, sem rigor, sem um raciocínio correto.

Dizer que o filósofo dever ser um especialista da argumentação e da demonstração, como afirma Savian Filho (2010), não quer dizer que seja apenas por essa especialidade que

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Nos Primeiros Analíticos (A 1, 24 B 18-22 apud REALE, 1994, p. 458), explica Aristóteles: “Silogismo é um discurso (isto é, um raciocínio) no qual, postos alguns dados (isto é, premissas) segue necessariamente algo diferente deles, pelo simples fato de terem sido postos. E com a expressão ‘pelo simples fato de terem sido postos’ entendo o que se segue por força deles e, ulteriormente, com a expressão ‘o que segue por força deles’, entendo o fato de não precisar de nenhum termo estranho em acréscimo para que tenha lugar a necessidade”.

alguém é filósofo ou que filosofa. Argumentar com eloquência e demonstrar precisão não são privilégios da filosofia.

Além do rigor, fala-se da profundidade do filosofar, isto é, da radicalidade do pensamento filosófico, como um pensamento que vai até a raiz18 das questões. Nesse sentido, só se filosofa conhecendo profundamente, identificando as premissas por traz das conclusões, analisando o raciocínio parte por parte, descortinando os argumentos falaciosos, descobrindo os equívocos dos falsos pensamentos. O processo analítico é útil, pois, evita o engano e o erro. A análise instaura a ordem e afasta o caos.

No entanto, como afirmam Deleuze e Guattari, agarrar-se à opinião é justamente prender nosso pensamento a um conjunto mínimo de regras, nos proteger do caos e de toda vertigem no pensar que ele provoca, “impedindo nossa ‘fantasia’ (o delírio, a loucura) de

percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos alados e dragões de fogo”

(DELEUZE, GUATTARI, 2009, p. 259). O lirismo desses filósofos critica um tipo de opinião que pode muito ser entendida como argumentação, como demonstração, como silogismo, pois se trata de pensar formalmente, quando aquilo que provoca o pensar surge como um acontecimento, em uma instância pré-filosófica. Buscar a raiz é ir ao encontro do caos, sem uma lógica subjacente, tecido tal qual um rizoma, sem início ou fim, mas, conectado, entrelaçado, desviante. Essa é uma imagem que não combina com a ideia tradicional que se tem sobre um pensamento profundo e rigoroso.

Para finalizar, quando lidamos com o ensino de filosofia para o nível médio na perspectiva do filosofar, sabendo que se está diante de jovens, cuja etapa do desenvolvimento psíquico é perpassada pelas inúmeras incertezas, inseguranças e seguidas confusões do adolescer, a ideia de associarmos a atividade filosófica a um pensamento rigoroso ou preciso,

livre dos “achismos” e “pontos de vistas” não parece tão boa assim; particularmente, no

aspecto didático. Acreditamos que, em um primeiro momento, todas as opiniões são bem- vindas e que mesmo depois, substituir opiniões pessoais por fórmulas filosóficas não é fazer uma experiência do filosofar. As opiniões não devem ser afastadas porque são opiniões. Elas devem revistas quando se fazem absolutas, impedindo uma abertura para diálogo com outros discursos e linguagens existentes. Acreditamos que toda forma de absolutismo impede o exercício filosófico, seja ele o do domínio da opinião ou do discurso bem elaborado, pronto e acabado.

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