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4.3 UMA ANÁLISE CRÍTICO-INTERPRETATIVA DOS TEXTOS CIENTÍFICOS

4.3.2 O ensino de filosofia

Após termos refletido sobre a filosofia e o filosofar nas produções científico- acadêmicas, tratamos acerca das concepções de ensino de filosofia presentes nesses documentos. Entendemos que determinar em que consiste a filosofia e a atividade filosófica é algo que repercute na concepção de ensino que será adotada, assim como na maneira que essa filosofia deverá ser ensinada. Nesse sentido, saber em que consiste o “fazer” filosófico nos coloca diante de um horizonte, para onde podemos olhar à medida que caminhamos pelas trilhas do filosofar.

Dos textos estudados, identificamos alguns desses horizontes, a partir da análise das principais concepções de ensino neles defendida, reconhecendo sua estreita ligação com as concepções da filosofia e do filosofar analisadas. Assim como fizemos ao refletir sobre as características dessas concepções, apresentamos as principais características acerca do ensino de filosofia contida nos documentos: o ensino de filosofia como produção filosófica e o ensino de filosofia e a formação crítica.

4.3.2.1 Ensino de filosofia como produção filosófica

A primeira ideia acerca do ensino de filosofia que refletimos a partir dos textos analisados afirma que a aula de filosofia deve ser um espaço da experiência e produção filosófica. Assim como filósofo é aquele que produz filosofia, o ensino de filosofia dever

capaz de levar os estudantes a produzirem uma determinada “filosofia aprendiz” e isso torna

cada participante envolvido nessa produção um filósofo também.

Dos documentos analisados, aquele que melhor aborda tal compreensão é o A5, dedicado a refletir sobre a figura do professor e o ensino de filosofia no Ensino Médio como experiência do filosofar. As ideias contidas nesse texto vêm sendo desenvolvidas, há alguns anos, por importantes pesquisadores dessa temática, e muitas das ideias que eles têm refletido e discutido, também estão presentes nesse trabalho de doutorado. Relembramos a importância dos textos de Gallo (2012) para essa abordagem, onde, por exemplo, fala-se das aulas de

filosofia como uma “oficina de conceitos”.

Em todos os textos o ensino de filosofia deve ser “prático”, no sentido de que não se

trata de aprender filosofia sem experimentá-la, sem ser filósofo de verdade. Está claro para nós que os documentos analisados não separam o ensino e aprendizagem da filosofia da experiência de filosofar. Há pouco víamos uma definição de filosofia como questionamento.

A partir dessa afirmação, o ensino de filosofia deve levar os alunos a questionarem, a fazerem perguntas, deve suscitar essa habilidade de investigação. Um das maiores referências sobre a investigação filosófica como modelo de ensino foi o filósofo norte-americano Matthew Lipman.

Para Lipman (1985, p. 37) a sala de aula deveria converte-se em uma comunidade reflexiva, “que pensa nas disciplinas relativas ao mundo e sobre os seus pensamentos sobre o

mundo”. Nesse tipo de aprendizagem busca-se aguçar o raciocínio e as habilidades de

investigação, através da discussão, da conversação, com vistas a uma educação para o pensar. O ensino de filosofia enquanto produção da filosofia é um ensino ativo. Para Gallo, esse tipo de ensino consiste em uma postura. Ele assevera:

Trata-se, isso sim, de assumir uma outra postura perante o ensino. Uma postura que não implique na transmissão direta de saberes, que seriam assimilados diretamente por aquele que aprende; uma postura que não implique uma submissão daquele que aprende àquele que ensina; enfim, uma postura de abertura ao outro, ao aprendizado como encontro com os signos e como criação. (GALLO, 2012a, p. 48).

O ensino de filosofia em uma perspectiva ativa se opõe ao modelo de ensino dominado pela lógica da explicação (RANCIÈRE, 2002). Nessa lógica “não há apenas uma atividade intelectual (do aprender), mas também uma atividade social de renúncia e resignação” (GALLO, op. cit. p. 49).

[...] eis que, agora, o mestre toma a palavra para explicar o livro. Ele faz um conjunto de raciocínios para explicar o conjunto de raciocínios em que o livro se constitui. Mas, por que teria o livro necessidade de tal assistência? Ao invés de pagar um explicador, o pai de família não poderia, simplesmente, dar o livro a seu filho, não poderia este compreender, diretamente, os raciocínios do livro? E, caso não o fizesse, por que, então, compreenderia melhor os raciocínios que lhe explicarão aquilo que não compreendeu? Teriam esses últimos uma natureza diferente? E não seria necessário, nesse caso, explicar, ainda, a forma de compreendê-los? A lógica da explicação comporta, assim, o princípio de uma regressão ao infinito: a reduplicação das razões não tem jamais razão de se deter. O que detém a regressão e concede ao sistema seu fundamento é, simplesmente, que o explicador é o único juiz do ponto em que a explica ção está, ela própria, explicada. Ele é o único juiz dessa questão, em si mesma vertiginosa: teria o aluno compreendido os raciocínios que lhe ensinam a compreender os raciocínios? (RANCIÈRI, 2002, p. 18, grifo nosso).

A perspectiva do ensino de filosofia como produção filosófica procura instaurar uma outra ordem, para além da explicação, na qual o professor, a escola, o currículo se tornam o

“único juiz”.

Como lugar da criação filosófica, não há manuais para as aulas de filosofia e cada dia surge como algo novo. Segundo Gallo (2012a), educar não é uma questão de método e refletindo sobre o método como uma das utopias da modernidade, ele volta novamente a Rancière (op. cit.) para refletir sobre a sociedade pedagogizada moderna. Assim afirma Gallo:

Segundo o filósofo contemporâneo, a sociedade moderna está baseada na ideia de que as inteligências são desiguais e que a construção de uma sociedade democrática, republicana, precisa proceder a uma “redução” dessa desigualdade. Daí a construção dos sistemas de instrução pública, como forma de levar a emancipação intelectual a todos e a cada um. [...] A emancipação intelectual, de fato, só pode acontecer quando se toma por premissa outro princípio: a igualdade de inteligências. Uma relação de igualdade entre quem ensina e que aprende, na qual não há submissão ou assimetria. (GALLO, op. cit. p. 87).

No entanto, Gallo alerta que a crítica ao método está associada à crítica a uma relação pedagógica de dependência do aprendiz para com o mestre. Ao relembrar Deleuze (2003), quando este afirma que nunca se sabe como alguém aprende, Gallo enfatiza que para Deleuze aprende-se filosofia fazendo com o professor e não como ele. No entanto, nem todas as produções analisadas refletem esta concepção.

Mesmo reconhecendo que o ensino de filosofia deve propiciar aos alunos uma prática do filosofar, algumas vão afirmar que é justamente porque a filosofia não traz em si a maneira de sua transmissão, que se requer um método e técnica didática para o seu ensino. Nesse

sentido, vai questionar Horn (2009, p. 35) se, por exemplo, “é possível falar em um ensino da

disciplina de Filosofia que porventura não leve em conta a questão da própria história dessa disciplina, ignorando-se assim todo pensamento filosófico clássico expresso pela tradição?”

Em um dos documentos (A5) afirma-se que é a prática do filosofar na sala de aula consiste em um diálogo com a tradição filosófica, a partir do encontro com o texto e com a prática da leitura. Segundo o documento não é possível ensinar filosofia sem filosofar, da mesma forma que não se pode filosofar sem ensinar filosofia. Ou seja, a filosofia como dado,

conteúdo, tradição, enquanto uma forma de saber incompleto, afirma A5, só se “completa” no

exercício de produção filosófica. No entanto, esse exercício não parte do nada, mas, do diálogo com os sistemas filosóficos existentes.

A metodologia e a didática do ensino de filosofia são temas muito importantes e o fato de pensarmos esse ensino como experiência de criação filosófica não esvazia essa

preocupação. Sem correr o risco “pedagogizar” esse ensino, pensar em meios eficientes de

como tornar aula um verdadeiro espaço de criação é fundamental para o sucesso dessa disciplina, especialmente no escolar. Nessa direção, o próximo tópico, que trata sobre o ensino significativo da filosofia, pode oferecer ideias importantes para a elaboração de estratégias didático-pedagógicas.

4.3.2.2 Ensino significativo da filosofia

Os textos também discutem da importância de um ensino significativo da filosofia, isto é, um ensino que tem origem e repercute na vida do estudante. Trata-se de estabelecer uma ligação com a vida. Uma filosofia significativa é uma filosofia viva, cuja investigação resulta dos problemas vivenciados e elaborados pelos alunos. Para os que defendem essa compreensão, o aprendizado do filosofar, através das próprias vivências, contribui para a redescoberta ou reinvenção da própria postura diante da vida.

Muitos pensadores do ensino de filosofia defendem um aprendizado significativo no qual os processos educacionais são motivados e/ou perpassados por vivências, problemas humanos. Filosofias como as de Lipman e Dewey demonstram que, quanto menor a faixa etárias dos estudantes, mais devem-se criar laços entre os conteúdos filosóficos e a vida pessoal. No entanto essa filosofia de si não deve ser reduzida a uma postura metodológica, é o que dizem os documentos analisados, com os quais concordamos. Trata-se de uma filosofia a partir de si e volta para si. Mas, o que isso quer dizer?

Como dizíamos, entendemos que o ensino significativo de filosofia não se reduz a uma estratégia didático-pedagógica, cuja finalidade é atrair a atenção do estudante para a aula. Uma maneira mais interessante de conceber significado ao aprendizado filosófico é proposta que reflete sobre o aprendizado de filosofia como “exercício de si” (GALLO, 2012b).

Segundo o Gallo, com a presença da filosofia nas escolas dá-se muita e a ênfase a questão do ensino, a partir de uma perspectiva da transmissão de conteúdos. O ensino de filosofia como transmissão consiste no conhecimento da tradição do pensamento filosófico, cujo acesso se dá através da leitura dos textos filosóficos. Porém, sem menosprezar toda a história e produção filosóficas existentes, Gallo propõe alguns desvios nessa proposta de ensino, apoiado pelas ideias de Rancière (2002), Deleuze (1988) e Foucault (2011).

Ele recorda que para Rancière é fundamental viver uma experiência da ignorância, conforme o sentido que esse termo na filosofia socrática. Vai dizer Rancière que “a prática dos pedagogos se apoia na oposição da ciência e da ignorância. Eles se distinguem pelos meios escolhidos para tornar sábio o ignorante: métodos duros ou suaves, tradicionais ou modernos, passivos ou ativos, mas cujo rendimento se pode comparar” (op. cit. p. 26, grifo nosso).

“Tornar sábio o ignorante”, isto, ensinar. Contra a lógica da explicação, princípio do

embrutecimento da sociedade pedagogizada, Rancière reflete sobre a ignorância visando a emancipação intelectual do sujeito. Para Gallo, essa emancipação aponta para o aprendizado, mais do que para o ensino. Voltando-se para o pensamento de Deleuze, este afirma a anterioridade do pensamento frente ao saber.

Para Deleuze pensamento e conhecimento não são idênticos. O pensamento é um processo criador, uma experiência, uma experimentação. Aprende-se processualmente, isto, enquanto se pensa. Por essa razão aprender e pensar são atividades correlatas. Quando se enfatiza o ensino (do conhecimento), privilegia-se o resultado, produto do pensar. A filosofia enquanto experimentação do pensamento é criação, é aprendizado. A filosofia como produto é dado a ser ensinado. Uma filosofia significativa é uma atividade de experimentação, é uma

experiência, que Foucault vai chamar de “espiritualidade” (2011, passim).

Os últimos textos de Foucault voltam-se para o tema da subjetividade do sujeito. Suas reflexões sobre a Filosofia Antiga levam-no a resgatar uma ideia de filosofia como espiritualidade, onde o pensar filosófico consiste em um trabalho consigo mesmo. Segundo Gallo, Foucault ao postular uma apresentação da filosofia como espiritualidade vai mostrar que para que o sujeito alcance o conhecimento é preciso haver uma transformação de si, uma

“conversão”, pois, “a verdade não é algo exterior ao sujeito, mas algo que parte dele e age

sobre ele transformando-o” Gallo (2012b, p. 11). A partir dessa perspectiva, o ensino significativo da filosofia deve basear-se na prática da filosofia como espiritualidade, no sentido foucaultiano, se constituindo como um exercício sobre si mesmo.

4.3.2.3 Ensino de filosofia e formação crítica

No quesito ensino de filosofia, nenhum dos tópicos anteriores foi mais refletido pelas produções acadêmicas que o relativo à formação crítica. Nos documentos trata-se da necessidade do ensino de filosofia priorizar uma formação filosófica consciente, isto é, a filosofia como postura, atitude do espírito humano diante da existência histórica, social e

cultural, em todos os segmentos escolares. A partir de diferentes narrações, os textos têm em comum a necessidade de desenvolver, através da filosofia, o pensamento crítico.

Um ensino e aprendizado filosófico para o desenvolvimento de um espírito crítico deve educar o aluno para que seja ele mesmo e não a reprodução de um modelo de ser humano preestabelecido ou pré-determinado. Sendo assim, por meio de um pensamento radical e preciso, os estudantes podem ser preparados para construir uma nova realidade, transformando a atual. A ideia de transformação da realidade pela razão filosófica está na base dessa compreensão do ensino de filosofia.