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QUESTÕES TEÓRICAS, CONCEITUAIS E

1. A FILOSOFIA NATURAL

Algumas das principais características da ciência, tal qual as conhecemos hoje, desenvolveram‑se a partir do século XIX6 com a consolidação de algumas áreas

científicas específicas e de transformações nas técnicas de observação e análise de dados. Isso ocorreu, em parte, através de processos de longa duração, pelos quais os parâmetros da produção do conhecimento científico foram gradualmente trans‑ formados. Embora estes não tenham sido processos lineares, em um único sentido de desenvolvimento, é certo que diversas correspondências podem ser encontradas. Em relação a alguns aspectos de tais processos, pode‑se mesmo retroceder à Anti‑ guidade Clássica, passando pelo período medieval até a Idade Moderna7. Boa parte

destes desenvolvimentos deram‑se através da constante circulação e reinterpretação de textos dos grandes filósofos da Antiguidade, que conservaram grande parte de sua influência até aos séculos XVIII e XIX8.

Até o século XVIII, grande parte do que se compreendia por ciência, de forma geral, fazia parte do complexo epistemológico da Filosofia Natural, que, por sua vez, englobava conhecimentos a respeito de animais, plantas e minerais, além da Mate‑ mática aplicada aos fenômenos naturais (que modernamente chamamos de Física), Astronomia, Química, e a Medicina. Os estudos de Filosofia Natural tendiam a ten‑ tar compreender o funcionamento do Universo como um todo interligado. É nesse âmbito que se incluíam os estudos sobre a flora, os usos médicos das plantas, os conhecimentos acerca dos animais, e a maneira como se articulavam as relações entre o Homem e a natureza9. As configurações gerais da Filosofia Natural, em termos dos

objetos de estudo que esta englobava, sofreram modificações desde a Antiguidade até o século XVIII, quando, por diferentes processos, diversos campos do conhecimento passaram a ganhar cada vez mais independência10. Começo, então, a tentar delinear

a trajetória da Filosofia Natural.

Desde a Antiguidade Clássica, o Homem buscou compreender o funcionamento do Universo e a relação de si próprio com o ambiente que o circundava. Aristóte‑ les (384 a. C.–322 a. C.) foi um dos precursores dos estudos sobre a natureza como parte do mundo físico que se forma e funciona sem o artifício do Homem11. Suas

ideias foram influentes ao longo de toda a Idade Média, mas principalmente a partir do século XII, chegando, ainda no século XVIII, a ser matéria de análise. Seus pre‑ ceitos, sobre a compreensão do Mundo Natural, foram utilizados nas universidades medievais como base para o ensino dos filósofos12. Para Aristóteles, os estudos de

Filosofia Natural, deveriam compreender a estrutura e o funcionamento do Universo

e tudo aquilo que nele estava contido. Sua chave mestra era pensar na Física13 do

Universo em sua totalidade, e assim formulou as bases de compreensão da Filosofia Natural que permearam o ideário dos filósofos medievais14. Para estes filósofos — que

tinham nos princípios aristotélicos o norte para a compreensão das coisas — a ideia de experimentação e empiria não era, na maioria dos casos, ferramenta necessária e primordial. A Filosofia Natural medieval desenvolvia‑se, parcialmente, através de debates a respeito do conteúdo dos textos dos autores antigos. Frequentemente, a inserção de novas informações, a partir da observação experimental, era feita com reservada parcimônia15. A observação e a experimentação, neste caso, tornavam‑se

sensivelmente menos relevantes, servindo, muitas vezes, apenas como ferramenta para refutar ou comprovar, em última análise, uma hipótese ou ideia. O raciocínio, a lógica formal e as discussões filosóficas em torno dela, dominavam o ambiente acadêmico‑científico do medievo16.

Já não podemos dizer o mesmo quando observamos a estrutura da Filosofia Natural no início da Idade Moderna. A grande diferença entre os filósofos naturais da Idade Média e os primeiros filósofos naturais do início do período moderno, estava, justamente, na importância que estes conferiam à observação e à empiria. Esta mudança pode ser observada, gradualmente, a partir do século XV, e de forma mais densa e acelerada a partir do século XVI, em parte influenciada pela descoberta dos Novos Mundos e a chegada dos relatos feitos pelos europeus sobre as terras recém‑descobertas17. A partir deste momento, parte cada vez mais significativa dos

filósofos e homens empenhados em descrever e classificar o ambiente natural adotou a observação e a verificação empírica como ferramenta basilar para a compreensão das coisas18; seja o funcionamento do Universo, o posicionamento das estrelas, as

espécies de animais, ou a utilização de plantas e minerais como medicamentos. Ao questionar a validade das discussões puramente filosóficas como ferramenta única da construção do conhecimento, o Homem passou a ver na empiria a chave para compreender o mundo que o circundava.

As representações e descrições de animais e plantas, por exemplo, ficaram ainda mais precisas aquando do início das viagens ao continente americano, no século XVI. Fosse por pura inquietação e anseio científico, fosse por questões utilitárias, os homens passaram a observar o mundo de novas maneiras. Ao mesmo tempo que

13 Física é a ciência que estuda a natureza e seus fenômenos em seus aspectos mais gerais. O físico era, portanto, o

filósofo que estudava a natureza (HANKINS, 2002: 11).

14 GRANT, 2002: 63‑80.

15 Uma das principais características da crítica humanista exercida sobre os trabalhos dos eruditos antigos é a total

falta de acréscimos aos textos. Os humanistas faziam a crítica literária, apontavam os erros, mas não acrescentavam conhecimento novo (DEBUS, 2002: 1‑36).

16 GRANT, 2002: 185; KUHN, 2009: 172. 17 ALMEIDA, 2009: 78‑92.

houve um estranhamento inicial face às espécies encontradas, também elas não se encaixavam, totalmente, dentro dos paradigmas previamente conhecidos. O contato com o novo Mundo Natural e toda a sua diversidade foi relevante para que os indiví‑ duos, nos séculos XVI e XVII, iniciassem novas discussões que pudessem construir uma Filosofia Natural baseada na observação e descrição das coisas o mais próximo possível da realidade observável. Mesmo que algumas das suas características iniciais pudessem conter resquícios aristotélicos, principalmente relativos às representações, esse avanço proporcionou evolução no estudo da natureza19. Parte disso podemos

observar quando analisamos as mudanças ocorridas durante o período que hoje é denominado de Revolução Científica, pois não houve, até certo ponto, uma ruptura total com os preceitos antigos. As transformações ocorreram de maneira lenta e gradual, e não é possível determinar ou marcar o fim de uma corrente filosófica que tome o lugar de outra20. Contudo, o que podemos dizer é que as novas perspectivas

da Filosofia Natural do período moderno modificaram a maneira como os filósofos compreendiam o Mundo Natural, e iniciaram transformações nas mais variadas áreas do conhecimento, sem que isso representasse, muitas vezes, uma ruptura abrupta com os preceitos anteriores.

A tentativa de afastamento em relação aos preceitos antigos pode ser observada com mais clareza a partir de meados do século XVII, com as transformações ocor‑ ridas em campos como a Astronomia, a Matemática aplicada ao estudo da natureza e a Medicina (através de suas auxiliares, Botânica, Anatomia e Química), ligadas diretamente ao desenvolvimento dos estudos empíricos — observação e trabalho de campo21. É neste período que os intelectuais que buscavam mudanças nas bases

filosóficas anteriores e ainda dominantes, as quais tinham nos preceitos de Aristóteles e Galeno22 (ca. 129–ca. 199 ou 217) as suas bases de estudos e compreensão, come‑

çam a formar grupos de estudos locais desligados dos grandes centros de formação intelectual23, ou seja, as universidades24. E os resultados dos seus estudos circulavam

entre os homens de ciência, e assim o conhecimento era divulgado e validado. Aca‑ demias privadas e epistolografia, a par de um intenso labor da Imprensa, ao serviço dos homens de cultura e de saber, tão própria do Humanismo europeu, contribuíram para esta dinâmica25.

19 DEBUS, 2002: 40.