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A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO SOBRE O

5. PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO, RECONFIGURAÇÃO E CIRCULAÇÃO

DE CONHECIMENTO

Novas correntes historiográficas têm traçado perfis mais complexos para a produção de conhecimento em espaços coloniais, a partir de análises não apenas dos contextos que as envolveram, mas também das relações do autor com outros indivíduos, com a circulação de trabalhos, com questões políticas e sociais locais, com os processos de trocas, negociação e resistência em relação ao conhecimento que apreendiam a partir do contato com diversos locais e indivíduos. Tudo isso sob a imposição dos jogos de poder483.

Para compreendermos a produção de conhecimento daquele período, é pre‑ ciso, pois, traçar um panorama sobre o agente produtor, o porquê de ter escrito o trabalho, para quem escreveu, e confrontá‑los com os contextos aos quais ele estava inserido. A produção de conhecimento seria então baseada em muito mais do que as simples trocas culturais, onde as culturas dos povos dominadores eram impos‑ tas e incorporadas pelos dominados, quase sem nenhuma resistência. Procurarei a partir daqui iniciar esta linha de análise a partir das propostas de Kapil Raj, que percebeu esses processos de construção de conhecimento nos espaços coloniais como sincréticos484.

Raj, analisando o caso das possessões inglesas e francesas na Índia, compreen‑ deu que tais processos sincréticos são intrínsecos à própria formação da ciência, e que este processo de formação pressupõe trocas, negociações, escolhas, e inter‑ câmbio de elementos entre culturas distintas. Todos estes elementos são inerentes às relações de comunicação entre grupos sociais heterogêneos, ou seja, envolvem diferentes culturas, costumes e tradições. Quando ocorre o contato entre estas par‑ tes, e se desenvolve um convívio entre estes grupos distintos, surgem «adaptações» nos vários aspectos culturais ou científicos, fazendo com que um grupo incorpore o sistema do outro, sem que isso pressuponha a eliminação de um ou outro sistema. Este processo sincrético não tem um fim marcado, ele é contínuo485. É também uma

via de múltiplas direções, na qual importam os desequilíbrios nas relações de força, sem que isso signifique que a cultura dos dominadores prevaleceu, inalterada, sobre a dos dominados.

483 LIVINGSTONE, 2013; PRATT, 1992; RAJ, 2010; RAJ, 2013. 484 RAJ, 2010; RAJ, 2013.

A partir desta ideia, abre‑se espaço para uma outra perspectiva, influenciada por Mary Louise Pratt486. Para Pratt, a ideia de transculturação487 pode explicar a

formação da cultura e da ciência nos espaços coloniais, especialmente na América colonial. Este processo, resultante da influência de elementos de outras culturas, que ocorre quando um indivíduo adota uma cultura diferente da sua, não implicaria, necessariamente, conflitos entre os grupos. Neste caso, o receptor não pode contro‑ lar facilmente o que provém da cultura dominante, pois esta acaba por determinar, em graus diferentes, o que deve ou não ser absorvido pelo receptor. Este seria um fenômeno de enriquecimento cultural, que está ligado às transformações de padrões culturais locais, a partir da adoção de novos padrões vindos através das fronteiras culturais, em encontros envolvendo sempre diferentes etnias e elementos. Os pro‑ cessos de transculturação não podem ser analisados baseados apenas em uma única característica, unilateralmente, como sugeriu Mary Louise Pratt, mas sim em com‑ binação com as propostas de Raj. Considero, portanto, que ambas as perspectivas são complementares, no sentido de que se processam trocas entre ambos os lados, em diálogo constante, que apesar das relações de poder, das dimensões políticas, sociais e econômicas, acabavam por se traduzir em processos sincréticos de produção de conhecimento. Neste sentido, a ideia de que o receptor não tem domínio sobre aquilo que recebe do grupo dominante, não se encaixaria em todos os casos, princi‑ palmente no âmbito da produção científica, fato comprovado a partir da análise das fontes documentais aqui proposta. Nos processos de construção do conhecimento, a escolha dos modelos, teorias, referenciais, métodos, ferramentas, esteve sempre presente. Observando as fontes, é possível perceber este processo como sendo sin‑ crético e transcultural488.

Se tentarmos transferir este conceito e aplicá‑lo para o caso da formação de conhecimento sobre o Mundo Natural do Brasil, podemos dizer que este processo sincrético se iniciou ainda no século XVI, quando os portugueses desembarcaram no Novo Mundo, e continuou ao longo de todo o período colonial. Tais processos podem ser relacionados com vários elementos: ciência europeia; conhecimento nativo (indígena e dos colonos); observação empírica; relações de poder.

Ainda de acordo com as propostas de Kapil Raj, podemos referir o conceito que, de fato, auxiliou na compreensão dos processos de construção de conhecimento formados pelos dois estudos de caso que aqui tratarei: o conceito de reconfiguração.

486 PRATT, 1992.

487 Termo pensado por Mary Louise Pratt da seguinte forma: «The term “transculturation” […] in the title sums up my

efforts in this direction. Ethnographers have used this term to describe how subordinated or marginal groups select and invent from materials transmitted to them by a dominant or metropolitan culture» (PRATT, 1992: 6).

Os processos de reconfiguração do conhecimento, que também acontecem em

zonas de contato (conceito estabelecido por Pratt)489, distinguem‑se dos processos

sincréticos, que são contínuos. Neste entendimento, a reconfiguração gera necessa‑ riamente um produto final, ou seja, existe um desfecho materializado. Tais processos acontecem em um momento específico, e em um locus específico. A reconfigura‑ ção se dá a partir do encontro de vários elementos, que juntos são utilizados pelo produtor do trabalho, que os incorpora e ressignifica, gerando assim um trabalho concluído. O desafio nas análises que se seguem, foi o de compreender quais foram os elementos que estiveram envolvidos no processo de construção de conhecimento nos trabalhos de Domingos Alves Branco Muniz Barreto e de Francisco António de Sampaio.

Para tanto, e associado a este processo de reconfiguração, incorporei um outro elemento de análise, a importância do local490 — o locus, onde acontece a reconfi‑

guração. Compreender a ciência produzida na colónia como fruto destes processos de reconfiguração e circulação de conhecimento, associados à influência de fatores locais que são únicos de cada comunidade, tornou‑se fundamental. Cada local e o local em si, contém pessoas que estão envolvidos em contextos sociais, religiosos e geográficos distintos entre si. Tais pessoas, por sua vez são pragmáticas na escolha daquilo que querem apreender, e definem reconfigurar o conhecimento de acordo com uma série de fatores que acreditam fazer sentido, não apenas para si próprios, mas também para a comunidade que irá receber e validar o trabalho produzido.

Como o processo de construção do conhecimento não é linear e tão‑pouco pro‑ duzido a partir de um modelo único para todas as comunidades, a influência de fatores externos: ideias, padrões, teorias vindas de outras localidades, de outros indivíduos; tornam a produção científica com características próprias do local no qual ela foi produzida, levando‑se em conta as características específicas do produtor do trabalho, para quem ele produziu, assim como questões políticas, sociais e econômicas, além das ferramentas que utilizou para construir o seu trabalho/conhecimento. Assim, a ciência pode ser praticada e formada em diferentes espaços, e a partir destes fatores variados. O caráter local (espaço como constituinte do sistema de interações entre os agentes) da produção científica leva em consideração processos de resistência, de trocas, de negociação491, que são estabelecidos a partir da relação entre os indivíduos

e entre a ciência e poder.

489 O conceito de zona de contato foi formulado e utilizado por Mary Louise Pratt, no livro Imperial eyes: studies in

travel writing and transculturation. Pratt assim o definiu: «[…] contact zones, social spaces where disparate cultures

meet, clash, and grapple with each other, often in highly asymmetrical relations of domination and subordination — like colonialism, slavery, or their aftermaths as they are lived out across the globe today […]» (PRATT, 1992: 4).

490 LIVINGSTONE, 2013.

Exposto isto, passo para a análise das fontes, partindo dos pressupostos do con‑ ceito de reconfiguração, levando em consideração a importância do local de produção como determinante nos processos de construção de conhecimento sobre o Mundo Natural do Brasil. Por produção local de conhecimento, refiro‑me não apenas à inte‑ ração entre o produtor do trabalho e os agentes locais, fossem indígenas ou colonos, mas à sua própria localização geográfica e à sua posição dentro do sistema científico e político em que estava inserido492.

Os dois estudos de caso que se seguem, podem representar parte do cenário de produção de conhecimento do espaço colonial do Brasil na segunda metade do século XVIII. Eles representam também uma específica tipologia de conhecimento produzido no Império Português sobre Filosofia Natural: um conhecimento sincré‑ tico, em que a reconfiguração envolveu trabalhos anteriores, do Brasil e da Europa, e onde os conhecimentos locais, de indígenas ou colonos, se misturaram com aqueles que vinham de fora da colónia. Com estas ferramentas teóricas, creio poder provar, com mais propriedade, que a produção de conhecimento filosófico‑natural sobre o Brasil no século XVIII, extrapola, em muito, quer os agentes, quer os trabalhos, quer os propósitos das chamadas Viagens Filosóficas que têm absorvido a atenção de tantos trabalhos historiográficos. Estas fazem parte de um todo mais vasto, a cuja complexidade este livro vem procurando aproximar‑se.

6. UM MANUAL QUE TODOS POSSAM