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CIÊNCIA E PODER, CIÊNCIA COMO PODER

3. AVERIGUAÇÃO DAS POTENCIALIDADES NATURAIS DA COLÓNIA

3.1. OS NATURALISTAS E AS VIAGENS FILOSÓFICAS: A IMPLEMENTAÇÃO DE UM PROJETO DE PODER

Talvez possamos dizer que o projeto das Viagens Filosóficas tenha sido o que mais demonstrou o desejo da Coroa em implementar, em Portugal, as políticas de incentivos ao desenvolvimento da ciência. O projeto das Viagens Filosóficas foi uma possível conclusão de décadas de estudos, críticas e tentativas para se implementar uma escola de História Natural que pudesse auxiliar nos estudos sobre as potencia‑ lidades naturais das colónias de maneira organizada e científica209. Como projeto de

poder, as Viagens Filosóficas envolveram todos os âmbitos da política e economia, e movimentaram o cenário científico no Império. Desde o Estado, passando pela Universidade e partindo para os governos locais em território colonial, o empenho da Coroa em implementar tais estudos foi consistente210.

As Viagens Filosóficas tiveram início ao mesmo tempo em que a Coroa portu‑ guesa estava preocupada com a demarcação territorial da colónia. A princípio, pode‑se notar certa confluência entre os objetivos políticos e financeiros em relação à busca por reconhecimento e definição territorial, em associação com os objetivos científi‑ cos. Por isso, é possível encontrar trabalhos de catalogação e descrição de espécies

207 DOMINGUES, 2013: 369. 208 SANJAD, 2012: 225.

209 Como ocorreu em outros locais com as viagens de Louis‑Antoine de Bouganville (1766‑69); James Cook (1768‑

‑77); Jean‑François de La Pérouse (1785‑88); Alejandro Malaspina (1789‑1794); Charles‑Marie de La Condamine (1743‑1744); Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius (1781‑1826).

de animais e plantas escritos por engenheiros, médicos, militares, governadores de capitanias, e por homens não letrados que acompanhavam as expedições. Ou seja, o universo natural suscitava o interesse de todos211, além de ser uma questão primor‑

dial para o desenvolvimento da colónia, do reconhecimento territorial do ambiente americano, e do desenvolvimento científico.

As Viagens Filosóficas em si já foram exaustivamente estudas pela historiografia, que analisaram os aspectos de implementação das políticas e reformas, as expedições em si, e o resultado delas, ou seja, os trabalhos produzidos. Dois dos principais estu‑ dos neste sentido foram escritos por Ermelinda Pataca e por João Carlos Brigola212.

Contudo, sabemos que o universo bibliográfico é muito mais extenso. Os estudos sobre as Viagens envolveram, desde a contratação de Vandelli, as reformas da Uni‑ versidade, a formação dos naturalistas, a escolha dos agentes que as capitanearam, a formação dos jardins botânicos e dos museus, das academias científicas, a compra de inúmeros exemplares de livros e instrumentos científicos, o planejamento das viagens e a definição dos territórios que seriam estudados, e claro, a metodologia de recolha de dados, o modo como um naturalista deveria produzir as suas memórias, que espécies deveriam observar, como as observar e como as catalogar.

Foram muitas as viagens empreendidas para as colónias portuguesas, e muitos foram os trabalhos desenvolvidos ao longo das expedições. Além do território colonial brasileiro, foram estudados os territórios africano e indiano. Para Goa e Moçambi‑ que, as viagens foram capitaneadas por Manoel Galvão da Silva (1783‑1793); para Angola, foi sob o comando de Joaquim José da Silva (1783‑1808); e para o Cabo Verde, enviaram João da Silva Feijó (1783‑1790)213. No entanto, foi a viagem de Alexandre

Rodrigues Ferreira (1783‑1792) para o Brasil a que ganhou maior notoriedade, não apenas em seu período, mas também na historiografia que se debruçou sobre o tema nos últimos anos.

A viagem de Alexandre Rodrigues Ferreira, tomada como exemplo das expedi‑ ções portuguesas, foi, do ponto de vista financeiro, político e científico, a de maior importância em relação às que foram feitas em outros territórios. A viagem em si teve dimensões monumentais, nomeadamente pela distância percorrida em territó‑ rio colonial pouco explorado. Foram percorridos, aproximadamente, 39.372 km ao longo das regiões da bacia amazônica e da capitania do Mato Grosso214. Foi grande

também o volume de informações coletadas durante quase dez anos nas florestas da América portuguesa. São numerosíssimos os relatos e desenhos da fauna e flora tropical com riquezas de detalhes e que fornecem informações para os estudos

211 PATACA, 2007; SILVA, 1999; BRIGOLA, 2003.

212 Cito aqui apenas alguns dos trabalhos, mesmo sabendo que o universo de trabalhos produzidos sobre o tema é extenso. 213 PATACA, 2006.

filosóficos naturais. Também podemos notar um interesse constante pelos rios e regi‑ mes de marés. Apesar dos posteriores desencontros, que proporcionaram a pilhagem, perda e deterioração de boa parte do material coletado, a expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira demonstra a importância conferida, em termos estratégicos, ao estudo da natureza dentro do Império Português.

A expedição angariou quase a totalidade da atenção do Estado, e com isso, a maior parcela dos recursos financeiros. Tratarei do caso de Alexandre Rodrigues Ferreira, e depois de um contemporâneo seu, o também naturalista formado na escola de Vandelli João Machado Gaio, na tentativa de exemplificar este aspecto da ilustração portuguesa como parte de um projeto de poder que foi muito além das próprias Viagens Filosóficas. Ambos os naturalistas aqui descritos, apesar de terem a mesma formação acadêmica, tiveram papéis distintos no cenário político‑científico de seu período, e seus trabalhos têm alguma semelhança entre si. São representativos de um período em que havia uma maior organização na produção de conhecimentos

sobre o Mundo Natural colonial215, e as políticas de Estado estavam concentradas

em empreender um maior esforço para que este projeto pudesse ser implementado. Alexandre Rodrigues Ferreira esteve envolvido com os principais cientistas de seu período, e foi escolhido por Vandelli, com o qual mantinha estreita relação, para coordenar a viagem ao interior do Brasil216. O naturalista iniciou os seus estudos no

Convento das Mercês, na Bahia. Na Universidade de Coimbra, onde se matriculou no curso de Leis e depois no de Filosofia Natural e Matemática, bacharelou‑se aos 22 anos, prosseguindo os seus estudos nessa instituição, onde chegou a exercer a função de Preparador de História Natural. Trabalhou no Real Museu da Ajuda, e em 1780 foi admitido como membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa217.

Em sua viagem pelas capitanias do Grão‑Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, foi acompanhado por dois riscadores e um jardineiro, e suas observações deveriam levar em consideração todos os aspectos ligados a História Natural218, e todos os ele‑

mentos naturais que fossem úteis para a economia, tais como locais apropriados para a agricultura, criação de animais, extração de minérios e madeiras. Os custos para que essa viagem fosse empreendida foi considerável, e muitos agentes de governos locais foram mobilizados para dar todo o auxílio que fosse necessário. Vale lembrar que, naquele período, a Coroa ainda não tinha total conhecimento geográfico, popu‑ lacional e dos recursos naturais daquela região, o que denota que a escolha do local também considerou questões estratégicas para a política e a economia.

Mesmo sendo um naturalista formado em Coimbra sob a orientação de Vandelli, e talvez mesmo por essa razão, o trabalho de Alexandre Rodrigues Ferreira, assim como a maioria dos produzidos naquele período, não tinha um caráter puramente filosófico. A componente social e política esteve presente ao longo de seu trabalho e pode ser verificada em alguns textos219, nos quais Alexandre Rodrigues Ferreira

escreveu críticas às políticas do Estado, principalmente em relação ao corte desmen‑ surado de árvores nobres, às práticas de agricultura que envolviam queimadas para criar áreas de cultivo, e ao extermínio descontrolado de tartarugas, que representavam uma importante parcela da economia da região amazônica220.

Apesar de ter sido monumental, e de ser extenso o número de objetos reco‑ lhidos e enviados para Portugal221, o trabalho de Alexandre Rodrigues Ferreira

não conseguiu chegar à Metrópole por completo, pois muito do que o naturalista

215 BRIGOLA, 2003. 216 PÁDUA, 2004. 217 SILVA, 1999; SIMON, 1983. 218 PATACA, 2006; SILVA, 1999. 219 PRESTES, 2000; PÁDUA, 2004. 220 PÁDUA, 2004: 84‑90.

221 Há alguns anos, na Universidade de Coimbra, foram descobertos alguns objetos que haviam sido recolhidos por

Alexandre Rodrigues Ferreira e enviados para Portugal. Tais objetos encontram‑se catalogados e fazem parte de um acervo permanente da UC. Existem muitos fragmentos do trabalho do naturalista depositados nos arquivos nacionais

coletou se perdeu na viagem, ou foi roubado222. De início, pouco se fez com a cole‑

ção do naturalista, levando, aproximadamente, dois séculos para ser publicado223.

No entanto, segundo William Joel Simon (1983), intelectuais como Auguste de Saint‑ ‑Hilaire (1779‑1853)224, Joseph Banks (1743‑1820)225 e Casimiro Gómez Ortega (1741‑

‑1818)226, tiveram acesso a alguns exemplos de espécimes e de textos coletados por

Alexandre Rodrigues Ferreira em sua expedição, talvez por causa do intercâmbio de espécimes entre vários países e agentes, promovido por Vandelli, ou ainda, depois de 1808, porque os franceses recolheram parte do acervo português e levaram para o Museu de História Natural de Paris227. Tenha sido por estas ou outras vias, o que se

sabe é que parte do trabalho do naturalista foi estudado por estes intelectuais, o que significou que o acervo não ficou inutilizado nos arquivos da Metrópole.

Para os relatos feitos ao longo de suas viagens, Alexandre Rodrigues Ferreira utilizou uma vasta bibliografia, citando autores renomeados para o período, muitos do cenário intelectual europeu, e outros que escreveram anteriormente sobre o Mundo Natural brasileiro, como a obra já aqui mencionada de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio — Diario da Viagem que em visita, e correição das povoações da Capitania

de S. Joze do Rio Negro fez o ouvidor, e intendente geral da mesma Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio no anno de 1774 e 1775228. A transferência de conhecimento

a partir de outros trabalhos, também pode ser notada através do estudo feito por Baltasar da Silva Lisboa na Serra dos Órgãos relativo à mineralogia, que mais tarde serviram de base para Alexandre Rodrigues Ferreira, que não teve tempo de formar o seu próprio estudo em relação a essa matéria. E ainda, algumas observações astro‑ nômicas feitas em 1783 por Antonio Pires da Silva Pontes229, ou o texto do também

naturalista de formação João Machado Gaio, de que se tratará a seguir.

Alexandre Rodrigues Ferreira não utilizou como referência apenas este tipo de literatura, mas também buscou informações com indivíduos locais para escrever seu

portugueses. São objetos de coleção e fontes manuscritas. Alguns documentos também se encontram depositados em acervos brasileiros, como no caso da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

222 PRESTES, 2000. 223 PRESTES, 2000.

224 Botânico e naturalista francês (1779‑1853). 225 Naturalista e botânico inglês (1743‑1820). 226 Médico botânico espanhol (1741‑1818).

227 SIMON, 1983: 55‑58. William Joel Simon baseou‑se numa série de correspondências trocadas entre Vandelli e outros

agentes espalhados por vários centros europeus. O autor demonstrou que Vandelli e os intelectuais portugueses, estavam conectados com figuras de destaque no cenário ilustrado europeu. Como verificamos no início deste capítulo, esta conexão sempre existiu. A circulação de conhecimentos e ideias sempre esteve presente, e a formação do conhecimento científico no Império Português, se deu, também, graças a este intercâmbio de pessoas e ideias.

228 SILVA, 1999: 52; SIMON, 1983: 24.

229 Antonio Pires da Silva Paes Leme, nascido em Mariana, Minas Gerais em 1750. Era um matemático e astrônomo,

formado em Coimbra. Foi capitão de fragata pela Marinha Portuguesa, membro da Academia Real dos Guardas‑Marinhas e sócio da Real Academia das Ciências de Lisboa. Foi governador da Capitania do Espírito Santo de 1797 a 1804.

trabalho. No documento Memoria sobre os Gentios Guanaãs e Guaicurú, de 1791230,

o naturalista relatou que teve como «informante», uma jovem «de origem negra crioula», que o ajudava na comunicação com as tribos indígenas231. No contexto

das Viagens Filosóficas, o contato com os povos indígenas era primordial. Primeiro, porque havia a necessidade de se conhecer e dominar as populações, depois porque o conhecimento sobre o território e sobre tudo o que circundava o ambiente natural colonial poderia ser adquirido a partir dos saberes nativos.

Assim como os trabalhos que foram produzidos por indivíduos com variadas formações acadêmicas, os trabalhos dos naturalistas também apresentavam caracte‑ rísticas distintas, mesmo que estivessem de acordo com as principais teorias vigentes. A definição de conceitos em relação à atividade de naturalista, feita, por exemplo, por Lineu, que afirmava ser função do naturalista: «homem do visível estruturado e da denominação característica — Historiens naturalis —, distinguir, através da observação, as partes dos corpos naturais, descreve‑[l]as convenientemente segundo o número, a figura, a posição e a proporção, e nome[a]‑[las]»232. Ainda assim, poderia

não ter lugar em todos os trabalhos. Tais características, expressas nas obras escritas, tiveram seus traços delineados pelas condições em que o trabalho foi produzido, pelo ambiente observado, e por questões políticas, que envolviam, na maioria das vezes, fatores econômicos.

A rede de funcionários do Estado espalhados pelas capitanias, que tinham por função incentivar e dar condições para que as expedições fossem feitas, também pode ser compreendida como um fator determinante no processo de organização e execução dos estudos filosóficos233. Como já observado, a viagem de Alexandre

Rodrigues Ferreira, por exemplo, foi a que mais angariou fundos do Estado, e a que concentrou o maior esforço, em todos os aspectos. Outras expedições, no entanto, acabaram sendo feitas com poucos recursos, e isso também acabou por influenciar a produção de conhecimento e sua validação no ambiente científico. Um outro elemento importante relacionado com as questões políticas, pode ser notado na escolha do ter‑ ritório observado, e neste aspecto, Alexandre Rodrigues Ferreira ficou encarregado de avaliar a colónia que estava sob o maior enfoque da Coroa naquele período234.

Suas relações pessoais possivelmente foram influenciadoras para que fosse escolhido em detrimento de outros, como Manuel Galvão da Silva, que a princípio iria com Rodrigues Ferreira para o Brasil, mas, de última hora, acabou sendo enviado para Moçambique, onde morreu pobre e sem nenhum tipo de reconhecimento quanto

230 FERREIRA, 1791.

231 SILVA, 1999: 52; FERREIRA, 1791. 232 Apud FOUCAULT, 2014: 245. 233 DOMINGUES, 2001. 234 PATACA, 2006.

aos seus trabalhos como naturalista235. Não foi sequer tornado sócio correspondente

da Academia das Ciências de Lisboa.

Outro caso inserido nesta conjuntura, foi o de João Machado Gaio. Em 1784, um ano antes do início da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira, o naturalista João Machado Gaio (formado na primeira turma de História Natural pós‑reforma), a mando do Governador da capitania do Ceará, José Teles da Silva, capitaneou uma expedição pela serra da Ibiapaba, no atual estado do Ceará. Sua expedição deu origem ao trabalho: Viagem filozofica, que por ordem, e despeza do Ill.mo. Ex.mo. Snr. Joze Telles da Silva fes João Machado Gayo na Serra da Ibiapaba Capitania do Siera Grande termo de Villa Viçoza Real, desde 13 de Julho de 1784 the 6 de Agosto do d.º ano236.

Deste manuscrito, tenho conhecimento de uma cópia, que está na Academia das Ciências de Lisboa — nas Memorias Fizicas e Economicas que não tiveram lugar nas publicações das coleções da Academia. Há também, no Arquivo Histórico Ultrama‑ rino, nos papéis sobre a capitania do Maranhão, um ofício de 1785, enviado pelo governador da capitania — José Teles da Silva, para o então secretário de estado da Marinha e Ultramar — Martinho de Melo e Castro, contando sobre dois caixotes contendo produtos de História Natural pertencentes ao naturalista João Machado Gaio, encontrados nos sertões da capitania237.

Sobre a vida do naturalista pouco se sabe. No ano da produção de seu trabalho filosófico sobre a serra da Ibiapaba, somou mais uma função ao seu currículo, pois foi promovido a capitão da 6.ª Companhia do Regimento de Cavalaria Auxiliar daquela capitania238. Ao contrário de seu contemporâneo, Alexandre Rodrigues Ferreira, que

no ano da fundação da Academia das Ciências de Lisboa, 1789, foi tornado sócio, João Machado Gaio nunca alcançou esta posição. Alguns trabalhos recentes analisa‑ ram os relatos de sua viagem filosófica, ressaltando que esta expedição foi uma das primeiras a estudar aquela região239.

O trabalho filosófico‑natural de João Machado Gaio sobre a serra da Ibiapaba tem poucos pormenores (são 8 fólios), mas, do que é possível notar a partir de seus relatos, podemos dizer que, em termos metodológicos, a sistemática de recolha de dados foi feita de maneira muito próxima à de Alexandre Rodrigues Ferreira, dando enfoque aos Reinos da natureza, às populações nativas, e aos produtos que pudessem ser úteis para a economia, contudo, em um âmbito muito menor, tanto no que diz respeito ao território observado, quanto ao volume de espécies.

235 PATACA, 2006; BRACHT, 2017. 236 GAYO, [s.d.].

237 AHU_CU_009, Cx. 64, D. 5719.

238 AHU_CU_009, Cx. 62, D. 5611. O ofício foi expedido pelo governador do Maranhão e Piauí — José Teles da Silva.

O documento encontra‑se no Arquivo Histórico Ultramarino, nos papéis sobre a Capitania do Maranhão.

Em seu relatório, João Machado Gaio começou por determinar geograficamente a região que iria estudar, seguindo com uma descrição físico‑geográfica, onde até a qualidade do ar foi ressaltada:

Duzentas e vinte léguas a sul do Maranhão está firmada a famoza Serra Ibiapaba, ou lugar em que, descobrindoce o mar, pareceu ao gentio terminar-se a terra […] O ar atmosférico é puro, livre e isento de vapores e partículas danosas, apesar das minas de que abunda esta maravilhosa montanha. É saudável aos corpos igualmente animais que vegetais […]240.

Em sequência, o naturalista avisou o seu leitor sobre a maneira como organizou o seu trabalho. Vale ressaltar as menções a Lineu e Vandelli:

Passo agora à história natural das suas produções e, legando-me às regras que nos prescreve Lineu, explicadas e em parte corrigidas pelo sapientíssimo Domenico Vandelli, dividirei o meu escrito em quatro partes, ou reinos da natureza: Hidrologia; Zoologia; Botânica e Mineralogia241.

E assim, ele relatou tudo o que observou em relação aos quatro Reinos da natu‑ reza, sem dar grandes detalhes sobre nenhuma espécie. Deu ênfase à qualidade da água, a imensa quantidade de rios (segundo ele mais de quarenta), e à possibilidade de serem navegáveis. Ainda sobre o «Reino aquático», o naturalista ressaltou que a imensa quantidade de rios, poços e cisternas, era pouco utilizada pelas populações nativas.

Sobre o Reino Animal, curiosamente, ele afirmou não ter feito relatos ou cata‑ logação de espécies, mas sim, optou por tratar dos homens — os povos nativos da serra da Ibiapaba: 242

Sendo o reino animal tão interessante aos usos da vida que ministra ao homem até as matérias da primeira necessidade, pareceu-me justo individuar atentamente as suas produções, principiando pelo homem como animal que o soberano artífice da natureza distinguiu entre os mais pela sua construção, assim física como moral […]243.

240 GAYO, [s.d.]: fl. 202. 241 GAYO, [s.d.]: fl. 203v.

242 Utilizo este mapa, pois ele corresponde às designações usadas por João Machado Gaio no que diz respeito ao nome

da capitania, da serra da Ibiapaba e da cidade principal — Vila Viçosa Real, de onde o naturalista provavelmente partiu para fazer sua expedição. «Representa o território situado entre 2.º e 9.º de Latitude S.: e 20.º e 29.º de Longitude. Dimensões: 490x635mm» (Descrição constante no Catálogo dos manuscritos ultramarino da Biblioteca Pública do

Porto, 1988: 287).

Foi quando retratou o Reino Vegetal, que o naturalista deu algumas informa‑ ções interessantes, primeiro para percebemos a metodologia empregada por ele na construção de sua dissertação filosófica, depois, de que o trabalho a que temos acesso talvez não seja a dissertação filosófica completa.

João Machado Gaio deixou claro em seu texto a importância da Botânica para os naturalistas, e avisou ao seu leitor que utilizou o sistema lineano para classificar as espécies. Ele também observou as madeiras úteis para a construção de navios, e as plantas medicinais, buscando, desta forma, elementos úteis para o comércio.

A questão é que, sobre todos os aspectos acima mencionados, poucos foram os detalhes anotados, e isso me levou a ter algumas dúvidas quanto ao trabalho desen‑ volvido por João Machado Gaio e o manuscrito que está na Academia das Ciências de Lisboa. É possível aferir, por exemplo, que o trabalho é, na verdade, uma espécie de relatório, onde o naturalista está contando tudo o que fora feito ao longo de sua expedição, e não o trabalho completo. Em nenhum momento, ao longo do manuscrito,