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QUESTÕES TEÓRICAS, CONCEITUAIS E

2. CONTEXTOS DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO E UNIVERSO DE

2.1. TRABALHOS DE FILOSOFIA NATURAL SOBRE O BRASIL

Para compreendermos de que maneira as políticas de incentivo aos trabalhos de recolha de dados acerca do Mundo Natural foram empreendidas, é preciso observar o universo geral de trabalhos escritos ao logo do século XVIII, e tentarmos perceber qual era o perfil dos produtores envolvidos nesse processo e quais foram os fatores que contribuíram para a construção de um vasto universo de trabalhos durante todo o século.

Não apenas do fomento promovido pela Coroa e dos indivíduos com formação acadêmica viveu a investigação da natureza e o pensamento crítico no mundo lusó‑ fono setecentista. Não foram poucos os indivíduos que, mesmo sem uma formação acadêmica voltada para os estudos filosófico‑naturais, produziram trabalhos sobre a natureza das colónias. Muitos foram os documentos produzidos antes e durante o período das Expedições Filosóficas organizadas pelas instituições científicas e pelo Estado. Os trabalhos desenvolvidos nesta altura podem ser peças fundamentais para montarmos o quadro de informações sobre o ambiente científico de Portugal e do Brasil, principalmente na segunda metade do século XVIII.

Neste contexto, é importante salientar a participação de funcionários estatais que, impulsionados pelas políticas do Estado, realizaram notáveis trabalhos à frente da administração pública, importantes para a produção e promoção de saberes acerca do Mundo Natural153. Uma parcela considerável destes esforços foi direcionada às

colónias, na Ásia e África, mas principalmente, ao Brasil. Os objetivos de tal política eram diversificados e iam desde a intenção de racionalizar e superar as dificuldades relativas à produção de bens em território colonial, quanto à de consolidar e sustentar o ainda corrente processo de expansão e domínio territorial.

Foi neste período que a cátedra de História Natural da Universidade de Coim‑ bra foi ocupada pelo médico e filósofo natural italiano Domenico Vandelli (1735‑ ‑1816). A partir de 1764, quando contratado, Vandelli foi o principal idealizador

de uma série de viagens pelo Reino e possessões ultramarinas, todas elas ligando o caráter científico às intenções de cunho econômico e político, tais como as de fazer um inventário dos recursos naturais que pudessem ser explorados no futuro. Van‑ delli tentou implementar algumas transformações na Universidade de Coimbra para posicioná‑la como um relevante centro de ensino e investigação na Europa. Seus discípulos estavam espalhados por Portugal e outras nações, estudando as particu‑ laridades naturais que pudessem ser relevantes para a economia e a ciência. Suas instruções eram claras: catalogar e classificar do mais minúsculo musgo ao metal mais brilhante e precioso. Para Vandelli, as pesquisas que coordenava tinham caráter científico, político e patriótico, e o conhecimento científico poderia significar poder, no próprio Reino, mas principalmente, nas colónias154.

É de fato relevante compreendermos a logística das Viagens Filosóficas organi‑ zadas por Vandelli e as redes de contatos e intercâmbio de informações que a partir delas foram estabelecidas, uma vez que estas faziam com que um grande volume de espécies de animais, plantas e minerais fossem coletados e enviados para análise na Metrópole155. Ainda podemos ressaltar o grande volume de informações relatadas

em diários, tratados, cartas e correspondências que circulavam dentro do Império Português, e fora dele. O próprio Vandelli fazia uso desses meios para que essas infor‑ mações fossem divulgadas, organizadas e analisadas de maneira minuciosa. Um de seus correspondentes, enquanto estava a serviço da Coroa portuguesa, foi o sueco Karl von Lineu (1707‑1778).

Dentro deste princípio foram planeadas as Viagens Filosóficas às colónias. Para a mais importante, e que recebeu o maior financiamento e atenção do Estado, o comando foi incumbido a Alexandre Rodrigues Ferreira, que estudara Filosofia Natural na Universidade de Coimbra, sob orientação de Vandelli156. Além disso, não

podemos deixar de considerar que a expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira foi planeada para percorrer o território que, naquele momento, precisava de maior aten‑ ção por parte do Estado, em tempos de demarcação e disputa de limites territoriais e políticos157. Por norma, os naturalistas de formação, mas principalmente aqueles

que não haviam estudado História Natural, deveriam ter consigo um manual que lhes fornecesse as instruções acerca de como fazer, de maneira correta e produtiva, a observação, a coleta, a descrição e, por fim, a classificação dos espécimes. Vandelli e seus discípulos acreditavam que esta seria a maneira mais eficiente de efetuar os trabalhos filosóficos nas colónias158.

154 BRIGOLA, 2003; DOMINGUES, 2001; DOMINGUES, 2006; PATACA, 2006; RAMINELLI, 2008. 155 BRIGOLA, 2003; DOMINGUES, 2001; DOMINGUES, 2006; PATACA, 2006; RAMINELLI, 2008. 156 BRIGOLA, 2003.

157 KANTOR, 2012. 158 BRIGOLA, 2003.

Neste contexto, há que considerar, ainda, o importante papel do Estado159,

essencial para o empreendimento das expedições científicas. E isso de duas formas: agentes do Estado faziam parte da construção de uma rede de informações que permitia o acesso e a circulação do conhecimento produzido e, sobretudo no Brasil, contribuíam para uma melhor compreensão e, consequentemente, exploração dos recursos naturais de suas possessões160.

Outra orientação sistemática adotada pela Coroa portuguesa, que visava uma melhor compreensão dos recursos coloniais e, assim, fortalecer a posição de Portugal no cenário político internacional, foi a criação de instituições responsáveis pelo estudo e divulgação das ciências naturais na Metrópole e na colónia. Mesmo que inaugurada já no final do século, uma dessas instituições foi a Casa Literária do Arco do Cego, que funcionou de 1799 a 1801. Idealizada pelo então Secretário de Estado de Negócios da Marinha e Ultramar D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755‑1812), e concretizada a partir da ação do luso‑brasileiro Frei José Mariano da Conceição Veloso (1742‑ ‑1811). A Casa Literária do Arco do Cego contribuiu para um claro empreendimento do enciclopedismo português. Seu principal objetivo era o de fomentar as ciências, sua publicação e a otimização do uso das potencialidades econômicas do Império e da colónia a partir de uma perspectiva ilustrada. Apesar de seu curto período de funcionamento, a Casa Literária do Arco do Cego contribuiu para a construção, em Portugal, de novas perspectivas, além de uma nova maneira de se compreender a natureza do Brasil161.

Não é possível enumerar todos os pontos impulsionados pelo trabalho desenvol‑ vido no Arco do Cego, mas é certo que houve uma mudança expressiva na posição que a colónia americana ocupava, quer em termos estratégicos, quer políticos. Dentro do contexto iluminista, portanto, era cada vez maior a preocupação das nações com o reconhecimento do Mundo Natural e a racionalização dos respectivos processos exploratórios162. Um dos pontos principais desta política referiu‑se ao incentivo e

preocupação com a deficiente exploração dos recursos naturais na colónia, e também em com a aclimatação de novas espécies. A exploração das árvores para a construção civil, mas principalmente naval, estava entre as preocupações de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que previa uma escassez desse recurso. Segundo ele, no final do século XVIII, algumas espécies já estavam ameaçadas de «extinção»163.

159 Embora o debate sobre o conceito de «Estado» esteja em aberto na historiografia portuguesa e europeia, de que a

obra de António Manuel Hespanha e seus discípulos dão prova, cremos não haver dúvida acerca da sua aceitação para o século XVIII, em particular durante e após o consulado do Marquês de Pombal (HESPANHA, 2010).

160 DOMINGUES, 2001. 161 PATACA, 2006. 162 PATACA, 2006. 163 SILVA, 1999.

Muitos outros setores estavam conectados direta ou indiretamente com o objetivo de reconhecimento das potencialidades naturais das colónias portuguesas. Advogados, militares, clérigos, médicos, pessoas ligadas aos setores administrativos, todos poderiam contribuir para esta formação de conhecimento. Deles falarei adiante. Neste domínio, o papel dos militares e do clero foi relevante. Muitos empregaram esforços nos processos de coleta de dados relativos ao Mundo Natural do Brasil164.

Além disso, os militares tinham alguma formação técnica em Engenharia, o que facilitava o trabalho de reconhecimento territorial e formação de mapas geográficos e hidrográficos. A própria formação dos clérigos contemplava, também, por vezes, uma cadeira de História Natural165, e muitos destes indivíduos ligados à Igreja desen‑

volveram trabalhos sobre essas temáticas.

Nestes contextos, as fontes documentais podem revelar, em diversos aspectos, alguma relação com os princípios filosófico‑naturais vigentes ao longo do período iluminista (como a sistemática lineana, por exemplo). Muitos trabalhos contêm descrições e/ou inventariação da fauna e flora do Brasil, e foram produzidas no período em que Portu‑ gal buscava um maior conhecimento acerca das potencialidades naturais dos domínios coloniais, e nestes casos é comum encontrarmos trabalhos que contêm listas de animais, plantas, rios e sua navegabilidade, qualidade do solo, e descrições das populações nativas, que não envolviam, necessariamente, descrições detalhadas. Exemplos deste tipo de tra‑ balho podem ser encontrados nos roteiros de viagens, como os de Alexandre Rodrigues Ferreira166, de Antônio Rolim de Moura Tavares (1709‑1782) — Conde de Azambuja167,

a de Francisco José de Lacerda e Almeida (1753‑1798)168, ou o de José Monteiro de Noro‑

nha (?‑1794)169. Para este período, como já mencionei, o acervo de fontes documentais

que possam constituir a base de análise para os nossos propósitos é vasto, principalmente se contabilizarmos aquelas produzidas a partir do reinado de D. Maria I170.

O percurso de pesquisa para este livro passou por muitos dos acervos docu‑ mentais que potencialmente continham esses trabalhos. Posso começar destacando a grande quantidade de trabalhos que estão em bibliotecas e arquivos portugueses e brasileiros, como o Arquivo Histórico Ultramarino, a Biblioteca Nacional de Portu‑ gal, o Arquivo Histórico do Museu Bocage, a Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, a Biblioteca Pública Municipal do Porto, a Torre do Tombo, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o acervo do Arco do Cego, além de coleções particula‑ res, como as de Joseph Roland van Deck (?‑1773?), e as do Visconde de Balsemão.

164 SILVA, 1999: 62‑65. 165 SILVA, 1999: 62‑65. 166 FERREIRA, 1938. 167 TAVARES, 1751. 168 ALMEIDA, 1788. 169 NORONHA, 1862.

Nestes arquivos, é possível encontrar uma ampla diversidade de trabalhos, tais como relatos de viajantes, tratados escritos por moradores da colónia, funcionários da Coroa, militares, clérigos, médicos e acadêmicos, enfim, muitos foram os trabalhos desenvolvidos com o intuito de reconhecer o ambiente natural do Novo Mundo.

A partir da análise de trabalhos sobre a natureza do Brasil, é quase infinito o campo de análise que se abre. O número de obras é de fato extensa, o que me levou a adotar critérios de seleção documental que auxiliassem uma análise conjunta e comparativa dos trabalhos, de acordo com alguns critérios mais restritivos como, por exemplo, o reconhecimento da circulação desses trabalhos no meio científico colonial e europeu. Levemos em consideração que muitos dos textos que fazem refe‑ rência à natureza do Brasil no século XVIII não foram produzidos por discípulos de Vandelli, ou seja, não foram produzidos por naturalistas formados na Universidade de Coimbra, mas sim por homens que tinham as mais variadas funções e profissões e que dedicaram parte de seu tempo a descrever o ambiente natural, tais como sar‑ gentos, capitães, coronéis, clérigos, engenheiros e médicos.

A partir desse problema inicial, busquei então selecionar as fontes documentais a partir de critérios que pudessem, de uma forma global, reuni‑las em grupos a partir de aproximações relativas à profissão e formação de quem as produziu, bem como a sua atuação profissional. O conteúdo do trabalho, e os objetivos que levaram estes agentes a escrever sobre Filosofia Natural do Brasil constituem outros critérios de separação/ /classificação dessas obras. Ao subscrever que não só as Viagens Filosóficas produziram conhecimento sobre Filosofia Natural, abriram‑se campos dilatados para a inclusão de obras não produzidas no âmbito desse registro de conhecimento. A partir deste critério, cheguei à seleção das fontes consideradas como representativas dos vários segmentos a considerar e, assim, compor o corpus documental para a análise proposta.

Questões relacionadas com a forma como a natureza da América portuguesa foi observada; porquê e para quem essas observações foram feitas; como é que essas informações chegavam até a Metrópole; e que tipo de circulação, se houve, esses tra‑ balhos tiveram, incorporaram um inquérito a que foram submetidas todas as obras.

Foi possível identificar uma ampla participação de indivíduos segundo a sua formação intelectual e funções que desempenhavam. O seu agrupamento fez‑se, para conveniência de análise, num número limitado de grupos. Como cenário geral, em relação aos produtores171, verifica‑se que uma parcela considerável destes autores

possuía alguma formação acadêmica, sendo as mais recorrentes nas áreas de Direito, Engenharia, Teologia, Medicina e/ou Cirurgia, e História Natural (que conferia habi‑ litações em Química e Botânica)172.

171 Vd. Anexo 1 e Fig. 2.

Muitos deles eram formados pela Universidade de Coimbra, e alguns em ins‑ tituições de outros países da Europa, como Espanha, Inglaterra, Holanda e França. Em termos de ocupação profissional, muitos encontravam‑se ligados ao serviço militar (e possuíam formação em Engenharia e História Natural); a cargos eclesiás‑ ticos (e detinham algum conhecimento específico em História Natural); ou eram acadêmicos formados em Coimbra (e poderiam ser bacharéis em Direito, Medicina e Filosofia Natural). Havia ainda os funcionários da Coroa titulares de cargos polí‑ ticos ou administrativos, que comumente poderiam desempenhar alguma função ligada ao reconhecimento das potencialidades naturais do território. Por fim, são de referenciar os médicos e/ou cirurgiões, que normalmente desenvolviam trabalhos de registro e análise do Mundo Natural que pudessem ser úteis para os conhecimentos farmacêuticos173.

A partir deste quadro geral das formações e ocupações dos produtores de tra‑ balhos, pude, de forma esquemática, representar e tipificar o universo dos trabalhos produzidos sobre a natureza do Brasil, e assim, criar um critério de seleção de fon‑ tes documentais que abrangesse, por amostragem, as mesmas características. Serão essas amostragens, por vezes tratadas como estudos de caso, que tornarão possível a compreensão global dos trabalhos produzidos ao longo do século XVIII.

A figura 1 pretende ilustrar o universo global dos produtores, a distribuição das suas formações e atuações em relação aos trabalhos produzidos, no âmbito da recolha de dados e da produção de conhecimento acerca do Mundo Natural das colónias, principalmente na segunda metade do século XVIII.

A formação deste quadro tipológico não foi baseada apenas na observação das fontes documentais consultadas depositadas nos arquivos portugueses e brasileiros, mas também, e principalmente, recorrendo a estudos feitos por outros pesquisadores, como Maria Beatriz Nizza da Silva, Maria Odila da Silva Dias, João Carlos Brigola e Ermelinda Pataca174. Para além das obras e autores supracitados, também pudemos

recorrer a trabalhos que não tinham como objetivo principal esta grande recolha e sistematização das fontes documentais, mas que fizeram estudos específicos sobre o tema e o espaço geográfico que aqui nos interessa, tais como William Joel Simon175,

Lorelai Kury176, Nelson Papavero177, Ângela Domingues178, Iris Kantor179. A partir

de análises dos dados contidos nesses trabalhos e da pesquisa realizada nos arquivos já citados, pode‑se, a partir dos parâmetros classificatórios estabelecidos na figura 1,

174 SILVA, 1999; PATACA, 2006; DIAS, 1968; BRIGOLA, 2003. 175 SIMON, 1983.

176 KURY, 2008; KURY, 2015.

177 TEIXEIRA & PAPAVERO, 2014: 35‑44; PAPAVERO & TEIXEIRA, 2011: 83‑131; PAPAVERO & TEIXEIRA, 2013:

185‑209.

178 DOMINGUES, 2001; DOMINGUES, 2006. 179 KANTOR, 2012.

compreender as relações de proporcionalidade, contidas no cenário geral dos produ‑ tores de trabalhos filosófico‑naturais sobre o Brasil. Na figura 2, temos as proporções aproximadas referentes a este universo de agentes.

Fig. 1. Fontes documentais de caráter científico produzidas sobre a América portuguesa durante o século XVIII:

relação entre os objetivos dos trabalhos e as características de seus produtores Fonte: SILVA, 1999; PATACA, 2006; DIAS, 1968; BRIGOLA, 2003

Outros Funcionários da Coroa Acadêmicos Clérigos Militares Médicos e/ou Cirurgiões

Direito História Natural Medicina Engenharia Trabalhos executados de forma autônoma Trabalhos Comissionados pela Coroa Trabalhos com propósitos Acadêmicos Natureza do Trabalho Campo de Atuação dos Autores Formação Acadêmica dos Autores &)&1/"0Ѹуфہ 2+ &,+û/&,0!, 01!,Ѹтъہ )ğ/&$,0Ѹтшہ  !Ġ*& ,0Ѹ тшہ ğ!& ,0Ѹтхہ 21/,0Ѹтсہ

Fig. 2. Composição do cenário geral de produtores de trabalhos filosófico-naturais sobre o Brasil: relação entre

Este cenário, representado no gráfico acima, revela um panorama reconhe‑ cido pelos diversos historiadores do tema180. Pela mesma historiografia é também

amplamente aceite que, a partir da segunda metade do século XVIII, houve um expressivo aumento do interesse na produção de estudos filosófico‑naturais sobre o Brasil. As figuras 1 e 2 são representativas do universo de produtores relacionados exclusivamente com o Brasil. Não computei aqui os produtores que foram enviados para outros espaços geográficos, e tão pouco contei com aqueles que produziram estudos sobre o Mundo Natural em Portugal.

Em ordem à criação destes quadros de classificação dos autores e da tipologia de obras, até para fins comparativos, recorri, para além dos autores já citados, também a Júnia Ferreira Furtado181, para o cenário português, e a Roger Chartier182, para o

cenário francês. Com isso, o intuito é demonstrar outras tentativas de se delinear um perfil dos homens de letras, e provar que estes grupos, tão diversos, participaram da formação de um complexo de trabalhos que iam, dos de caráter filosófico‑natural, aos de caráter mais político, econômico e social.

Roger Chartier, que delineou o perfil dos homens de letras para o caso fran‑ cês, na primeira metade do século XVIII, assumiu um quadro dividido em quatro grupos, formados, respetivamente por: 1. Clérigos, nobres, oficiais, administradores e engenheiros; 2. Advogados, médicos, boticários e professores; 3. Indivíduos que dependiam exclusivamente dos financiamentos estatais; e, 4. «Nobres de gosto». Por outro lado, Júnia Ferreira Furtado, que tipificou o cenário de produtores de traba‑ lhos para o caso português, também para a primeira metade do século, assumiu que as classes estariam divididas em três grupos: 1. Nobres de gosto; 2. Letrados; e 3. Oficiais183. As composições dos cenários gerais de produtores de trabalhos, tanto

para o caso de Chartier, quanto para o de Furtado, não foram pensadas especifica‑ mente para o universo de produtores de trabalhos filosófico‑naturais, mas sim para os indivíduos que estavam, na primeira metade do século XVIII, conectados com os ideais do Estado de criar um circuito de agentes que pudessem compor uma

República de Letras184.

A comparação entre o panorama que delineamos na figura 1, que demonstra o cenário de produtores de trabalhos filosófico‑naturais para o caso do Brasil, com aquelas criadas por Furtado, sugere que, para a segunda metade do século XVIII,

180 SILVA, 1999; PATACA, 2006; DIAS, 1968; BRIGOLA, 2003; DOMINGUES, 2001; DOMINGUES, 2006; KURY,

2008; KURY, 2015; SIMON, 1983; KANTOR, 2012; TEIXEIRA & PAPAVERO, 2014.

181 FURTADO, 2012: 122. 182 CHARTIER, 1996.

183 TEIXEIRA & PAPAVERO, 2014.

184 Segundo José Pardo‑Tomás: «La cultura científica de la República de las Letras se fue identificando progresivamente

(al tempo que, podríamos decir, se construía a sí misma) com una serie de prácticas culturales originales o, em todo caso, renovadas com componentes típicos de la época» (PARDO‑TOMÁS, 2010).

que é o período da produção da ampla maioria das obras que compõe minha base de dados, é necessário criar uma sensível alteração na classificação da composição do grupo de produtores de conhecimento. A partir da análise dos dados expressos nas figuras 1 e 2, que sugere a tipologia de agentes, verifica‑se que, no cenário portu‑ guês, relacionado especificamente com os trabalhos filosófico‑naturais sobre o Brasil, o universo de agentes que compunham esta República de Letras, foi composto por uma variedade de indivíduos com condição e estatuto muito similares aos enuncia‑ dos por Chartier (para o caso francês na primeira metade do século XVIII). Isto, apesar das mudanças iniciadas na segunda metade do século — a implementação de reformas no ensino, as políticas de fomento aos estudos, e o aumento significativo do volume de trabalhos escritos. Em concreto, no caso dos estudos para este livro, optei por uma classificação mais diversificada, próxima da de Chartier. Escalonei os autores em seis categorias, por me parecer que melhor abrangia a multiplicidade de perfis identificados: 1. Militares; 2. Clérigos; 3. Médicos/Cirurgiões; 4. Funcionários do Estado; 5. Acadêmicos e 6. Outros (em ordem a poder integrar, e reconhecer, a grande multiplicidade de agentes, cuja formação/ocupação é difícil de precisar ou agrupar de forma específica). Em parte, foi esta variedade de agentes, funções e