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QUESTÕES TEÓRICAS, CONCEITUAIS E

85 KUHN, 2009; HANKINS, 2002; GRANT, 2009.

1.2. O LOCUS DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Na sequência das discussões acerca da ciência normal e dos processos de forma‑ ção e circulação de conhecimento científico, centro as discussões em teorias recentes que comungam dos mesmos princípios, e procuram compreender a formação do pensamento científico a partir de aspectos mais amplos, relacionados com processos de circulação e reconfiguração do conhecimento.

Quando procuramos compreender estes processos de transformação retroce‑ dendo às análises da historiografia tradicional positivista do século XIX‑XX, depa‑ ramo‑nos com interpretações inclinadas a considerar a produção de conhecimento nos universos coloniais como tendo sido produto de percursos lineares de dissemi‑ nação das ciências a partir da Europa98. Para parte desta historiografia tradicional, a

ciência é um sistema linear de proposições e descobertas. Pensavam‑se os princípios norteadores da produção de conhecimento científico como universalmente aplicáveis. Assim, as particularidades da produção científica em um local específico tendiam a ser consideradas secundárias, já que, afinal, a ciência deveria compreender séries de processos unificadores, e comuns para todos99. Se nos limitarmos a essa linha de

raciocínio, poderíamos dizer, por exemplo, que a Filosofia Natural deveria compreen‑ der princípios universais, igualmente aplicáveis aos mais diversos territórios, tanto no ambiente europeu, como nos espaços coloniais.

Parte da historiografia que se vem dedicando aos estudos em História das Ciên‑ cias contribuiu para o reforço dessa ideia100. A partir de seus princípios universais de

racionalidade, o conhecimento científico deveria ser passível de reprodução em qual‑ quer lugar, e por qualquer indivíduo que dominasse as suas ferramentas de análise. Por essa perspectiva, a ciência produzida em outros locais, que não os seus centros iniciais de difusão, poderia ser considerada uma mera cópia, por vezes de validade inferior, em relação aos originais universais101. Contudo, novos estudos têm procu‑

rado compreender os processos de formação do pensamento científico de maneira mais dilatada, partindo do princípio de que o conhecimento pode se desenvolver com características distintas em territórios variados102, sendo o resultado final rela‑

tivamente próximo no que se refere ao seu grau de racionalidade.

98 RAJ, 2013; RAJ, 2010.

99 RAJ, 2013; RAJ, 2010; KUHN, 2009. 100 RAJ, 2013; RAJ, 2010.

101 RAJ, 2013; RAJ, 2010.

Essas novas vertentes historiográficas têm buscado reformular os entendimentos acerca de alguns aspectos das diversas dimensões históricas da produção do conheci‑ mento científico. Para historiadores como Kapil Raj103, David Livingstone104 e Steven

Shapin105, por exemplo, ciência seria algo muito mais complexo, menos um sistema

unificado de conhecimentos, e mais uma série de conjuntos que, entre outros, envol‑ veria aspectos históricos relacionados com a identidade cultural dos seus produtores, materiais e instrumentais a eles disponíveis, e com as práticas sociais, conjunturas políticas e dimensões cognitivas106. A produção de conhecimento, então, seria tam‑

bém influenciada pelos processos de circulação deste entre os diferentes produtores, associados a fatores locais, a processos de troca e negociação e de reconfiguração, frequentemente implicando relações de poder. Desse ponto de vista, a produção de conhecimento deixaria de estar relacionada apenas com os aspectos materiais e instrumentais, como defendiam os positivistas, e passaria a envolver um complexo mais amplo de atividades humanas, juntamente com a circulação destes de maneira global, permitindo que a ciência pudesse, de certa maneira, se tornar mais regional, sem perder a característica de conhecimento amplo e universalmente aplicável107.

É neste contexto que procuro orientar esta discussão, centrando‑me no caso específico de Portugal e seus territórios coloniais. A Filosofia Natural, neste contexto, foi desenvolvida nesses espaços de maneira distinta, com características próprias em cada local, de acordo com especificidades de cada contexto, gerando diferenças que podem ser observadas nos trabalhos escritos como indicadores da racionalidade presente nos seus processos produção. Este é o caso da produção de conhecimento no âmbito do Império Português. Diante deste contexto, torna‑se fundamental a compreensão das diversas variáveis, relativas ao universo específico das comunidades em que estavam inseridos os agentes produtores de conhecimento, nas suas condi‑ ções locais, nas suas relações com os contextos mais amplos do Império e nas suas dimensões geográficas, políticas e sociais108.

E quando me refiro à circulação de conhecimento, estou pensando, por exem‑ plo, no encontro entre o conhecimento vindo através de portugueses que foram se especializar fora do Reino e depois voltaram, assim como nos encontros e trocas de conhecimentos entre os povos europeus e os nativos das colónias.

Deste modo, por circulação, não entendo apenas a simples disseminação ou transmissão de ideias, mas, como entendido por Mary Louise Pratt109, em interações

103 RAJ, 2013; RAJ, 2010. 104 LIVINGSTONE, 2013. 105 SHAPIN, 1999. 106 RAJ, 2013; RAJ, 2010. 107 RAJ, 2013; RAJ, 2010. 108 RAJ, 2013; RAJ, 2010. 109 PRATT, 1992.

transculturais que ocorreram em zonas de contato, onde os conhecimentos dos euro‑ peus e dos povos nativos, ou colonos, teriam se encontrado em processos sincréticos, dando origem a um novo conhecimento, que, entretanto, não pode ser compreendido como puramente europeu. Neste aspecto, a ideia de transculturação de Pratt vai de encontro à de Kapil Raj, que procurou compreender os processos de construção de conhecimento a partir de análises de produções locais, conferindo importância às variáveis representadas pela circulação e reconfiguração, processadas a partir dos encontros, negociações e trocas.

Partindo deste princípio, é possível levar adiante diversos estudos de caso, com o objetivo de compreender qual a validade dessas trajetórias interpretativas para a análise de componentes pertencentes ao universo dos trabalhos filosófico‑naturais sobre o Brasil, produzidos ao longo do século XVIII. No caso específico do objeto deste livro, é preciso ter em mente as características essenciais do Iluminismo, e as especificidades, em relação a este contexto, do Império Português. É o encontro entre diversas características mais gerais do Iluminismo, a realidade científica portuguesa, e a dos contextos coloniais, nomeadamente do Brasil, que configura o locus110, isto é,

o local de construção, extensão e reconfiguração do conhecimento, desenvolvida, de forma permanente, através de seus muitos e complexos canais de circulação.

Diversos autores vêm analisando a formação do pensamento científico em Por‑ tugal e seu Império ao longo do século XVIII. Estudos sobre as iniciativas do Estado e dos principais intelectuais que buscaram fora do Reino conhecimentos para trazer luz à ciência portuguesa, também são numerosos111. Diversas possibilidades de aná‑

lise seguidas por filósofos, sociólogos e historiadores das ciências que se dedicaram a compreender os aspectos relativos a Portugal e seu Império, muitas vezes focaram‑se nos espaços confinados de produção de saber (gabinetes, laboratórios, bibliotecas, etc.), bem como em indivíduos, objetos, populações, ou mesmo trabalhos individuais. Tomemos como exemplo os trabalhos que analisaram gabinetes de curiosidades, espólios particulares, técnicas de observação, descrição, catalogação, desenhos112.

Outros analisaram os laboratórios e bibliotecas, particulares ou não. Tais análises são primordiais para compreendermos as especificidades da formação do pensamento científico, relativo em concreto àquele objeto de estudo. Contudo, muitas vezes, este tipo de análise pressupõe o que a historiografia recente questiona: que certos aspectos instrumentais e materiais estiveram igualmente disponíveis a todas as comunidades de produtores de conhecimento.

110 Locus seria o local de encontro, não necessariamente físico, entre variados conhecimentos científicos, e é neste

locus que a ciência, propriamente dita, se forma. Sendo assim, podem existir muitos loci, e estes podem produzir

conhecimentos científicos específicos variados (RAJ, 2013; RAJ, 2010; LIVINGSTONE, 2013).

111 KANTOR, 2012; DOMINGUES, 2001; DOMINGUES, 2006; KURY, 2008; KURY, 2015; PATACA, 2006. 112 KANTOR, 2012; DOMINGUES, 2001; DOMINGUES, 2006; KURY, 2008; KURY, 2015; PATACA, 2006.

O que pretendo aqui é seguir um caminho diverso, sem deixar de reconhecer os méritos e contributos desses trabalhos. O foco será a compreensão da produção de conhecimento filosófico‑natural sobre o Brasil, considerando aspectos relaciona‑ dos à circulação do conhecimento entre Portugal e sua colónia americana, tendo em mente as suas consequentes dimensões sociais, políticas, econômicas e as relações de poder que lhes eram correspondentes. Por esta perspectiva, entendo ser possível compor uma análise a partir de um conjunto de fontes documentais que forneçam dados a respeito destes processos de circulação de conhecimento, e sobre a forma como os modelos de compreensão da natureza foram sendo propostos e aplicados de maneira distinta por diferentes agentes, no Brasil e na Metrópole. Este é um processo entendido por Steven Shapin como

[…] um leque diversificado de práticas culturais empenhadas em compreender,

explicar e controlar o mundo natural, cada uma delas com diferentes características e cada uma experimentando diferentes modalidades de mudança113.

Entretanto, neste contexto, as variadas fontes documentais selecionadas (as quais tratarei pormenorizadamente mais adiante), terão que ser analisadas levando em consideração a grande variedade dos universos teóricos transversais à produção de conhecimento deste período. Com base nos pressupostos enunciados, delinearei, em seguida, de forma condensada, o universo dos referenciais historiográficos rela‑ tivos aos contextos pertinentes para este trabalho, e relativos ao Império Português, à sua colónia americana e ao cenário de produção dos trabalhos filosófico‑naturais circunscritos a estes contextos.

2. CONTEXTOS DE PRODUÇÃO DE