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Neste último estudo de caso, procuro demonstrar uma outra face da produção e dos produtores de conhecimento filosófico‑natural sobre o Brasil, e que, a exem‑ plo dos militares, está igualmente representada no universo de análise: os médicos/ cirurgiões. Francisco António de Sampaio e os trabalhos produzidos por ele estão inseridos dentro do contexto de uma produção compartilhada, mas onde a variabili‑ dade de elementos envolvidos tem uma complexidade diversa da do caso anterior. Na verdade, Sampaio e Muniz Barreto estavam próximos, temporal e geograficamente, contudo os seus trabalhos têm características distintas.

Primeiro, apresento o autor e sua obra, que envolve importante troca de cor‑ respondência, e processos de circulação de conhecimento entre Sampaio e vários agentes em território colonial e europeu.

Em sequência, analiso sua obra, dividida em duas partes (Reino Vegetal e Reino Animal), na tentativa de compreender como os processos de reconfiguração do conhecimento podem ser observados em seu trabalho. A análise dos tomos I e II será feita de maneira separada, pois foram produzidos com alguma diferença temporal, o primeiro em 1782, e o segundo em 1789, e porque foram produzidos a partir de metodologias diferentes.

7.1. O AUTOR, A OBRA E A BUSCA DE VALIDAÇÃO DO

CONHECIMENTO PRODUZIDO

Francisco António de Sampaio nunca frequentou o curso de Medicina, apesar de ter recebido autorização para atuar como cirurgião e médico em 1762595. Dizia‑se

«partidista em ambas as Faculdades do Senado e no Hospital de São João de Deus», um dos mais antigos do Brasil, o que me leva a crer que ele era o médico oficial da Vila da Cachoeira596, e provavelmente o único. Nasceu em Vila Real, Portugal, e

595 ANTT — CHR. D. José I, liv. 70, fl. 282v.

596 Elevada ao status de «vila» em 1698, a Vila da Cachoeira teve seu apogeu no final do século XVIII, pois, sua

economia viveu períodos efervescentes, que consequentemente favoreceram a sociedade como um todo. Houve um certo aumento no volume populacional, e a Vila chamou a atenção como um centro em expansão. Pelo porto da Vila de Cachoeira transitaram produtos importantes para a economia colonial, como o tabaco, a farinha de mandioca, o ouro, e a carne‑seca. Um episódio interessante também chama atenção para a relevância da Vila de Cachoeira, pois em 1817, Carl Friedrich Philipp von Martius (1794‑1868), que foi um médico, botânico, antropólogo e um dos mais importantes pesquisadores alemães que estudaram o Brasil, especialmente a região da Amazônia, e Johann Baptist von Spix (1781‑1826), naturalista alemão, aportaram na Vila da Cachoeira, que usaram como ponto estratégico para planejar e iniciar as expedições pelo interior daquela região, e também para realizar alguns estudos filosófico‑naturais (PESSOA, 2007).

mudou‑se para o Brasil possivelmente em 1748. Mais tarde estabeleceu‑se na Vila da Cachoeira — capitania da Bahia. Das poucas informações sobre a sua vida e trajetória profissional, algumas foram dadas por ele próprio, através de sua troca de corres‑ pondência com a Academia das Ciências de Lisboa. Sabe‑se, por exemplo, que ele nunca voltou a Portugal, que trabalhou e escreveu seu texto na Vila da Cachoeira, e que viajou pelas capitanias do Rio de Janeiro e Espírito Santo, passando algum tempo nestes locais, onde aprendeu métodos de cura locais597.

O seu trabalho não é inédito para a comunidade científica atual, já foi citado em alguns textos598. Talvez a mais antiga referência tenha sido feita por William Joel

Simon599, que ressaltou o fato de Francisco António de Sampaio600 já estar desen‑

volvendo estudos baseados nos princípios de Lineu, mesmo antes de Alexandre Rodrigues Ferreira aportar no Brasil para desenvolver seus estudos filosóficos. Em 2008, parte dos manuscritos foi publicado no Brasil pela editora Dantes601, com título

modificado para Eu observo e descrevo602. Segundo os pesquisadores envolvidos no

livro, os conteúdos publicados seriam parte de uma cópia do trabalho de Sampaio encontrado na Biblioteca do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Nesta edição, a obra não está completa, contendo apenas seleções de alguns trechos do trabalho de Sampaio, e cópias das cartas que ele enviou para a Academia das Ciências de Lisboa.

Algumas décadas antes, em 1969, uma versão transcrita de maneira completa, porém, com as estampas em preto e branco, foi publicada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com introdução e pesquisa do então chefe da divisão de manus‑ critos, Darcy Damasceno603. Contudo, existem poucos trabalhos604 onde os textos de

Francisco António de Sampaio tenham sido objeto de uma análise pormenorizada, não apenas de sua obra e da sua importância para o cenário científico do período, mas também dos contextos nos quais esteve envolvida.

Para a análise que proponho, o que me chamou atenção, não foram os coloridos desenhos de plantas e animais contidos nas obras de Sampaio, mas sim os conteú‑ dos descritivos dos Reinos Vegetal e Animal, e a metodologia utilizada por ele, que foi baseada na associação de conhecimentos locais pré‑estabelecidos, na utilização

597 CONCEIÇÃO, 2018a.

598 RIBEIRO, 2006: 59‑84; PEREIRA & DENIPOTI, 2016: 170‑183; KURY & NOGUEIRA, 2018; PATACA, 2006. 599 SIMON, 1983.

600 SIMON, 1983.

601 A publicação faz parte do mesmo complexo onde foi publicado o texto de Domingos Alves Branco Muniz Barreto,

no livro O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli, 2008.

602 MARTINS, 2008b.

603 Os originais encontram‑se depositados e disponíveis em versão online na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro:

SAMPAIO, 1782; SAMPAIO, 1789; DAMASCENO, 1782.

604 Timothy D. Walker é um dos pesquisadores que se refere a Francisco António de Sampaio como um exemplo dos

agentes produtores de conhecimento sobre plantas medicinais no Brasil. O professor da University of Massachusetts Dartmouth tem publicado e apresentado alguns trabalhos em que Sampaio é figura de destaque entre os agentes produtores de conhecimento sobre plantas medicinais. Ver em: WALKER, 2016: 161‑192; WALKER, 2018.

e incorporação de alguns trabalhos e teorias de extrema relevância para o período, assim como na rede de relações interpessoais estabelecidas por ele com agentes em território colonial e na Metrópole.

Em primeiro lugar, é preciso salientar que a sistemática lineana é utilizada na obra de Sampaio em muitas das descrições de animais. O autor procurou classifi‑ car as espécies que viu, de acordo com o sistema lineano, e quando não encontrou correspondência avisou o seu leitor que a espécie não havia sido classificada pelo botânico sueco, partindo, assim, para a sua própria descrição, e tentativa de clas‑ sificação da espécie. Por exemplo, quando tratou dos Quadrúpedes e descreveu a espécie de Bugio chamado Guariba, Francisco António de Sampaio primeiro apre‑ sentou a classificação que encontrou no sistema lineano: «Linneu a descreve: Simia Belzebul, cauda barbara nigra, cauda prehensili, extremo pedibus bruneis etc», e depois fez a sua própria: «Eu a vejo, e descrevo: Guariba, o maior dos Bogios Bra‑ silienses…»605. Além da incorporação da classificação lineana para as espécies que

fossem compatíveis, ele as descrevia anatomicamente, e dava os usos medicinais, quando isso se aplicava.

No caso das plantas, Sampaio anotou as virtudes e usos medicinais, e separou as 83 plantas de acordo com suas características fármaco‑médicas: «dos resolutivos; dos detergentes; dos incrassantes para o uso interno; dos adstringentes; dos purgantes e emético; dos desobstruentes; dos contravenenos, e febrífugos; dos diaforéticos; dos antivenéreos; dos anticolicos; dos antiespasmódicos; dos refrigerantes, e temperantes para o uso externo».

Quanto às descrições e usos das plantas, ainda é possível destacar um outro ponto relevante. Sampaio citou dois autores e suas obras — os médicos Manoel Rodrigues Coelho — Pharcopeia Tubalense (1735) e Francisco da Fonseca Henriques — Ancora Medicinal (1731). Ambos os autores, e suas obras, já eram amplamente conhecidos no final do século XVIII, e seus trabalhos sofriam críticas por parte dos estudiosos do período606. Inserido neste contexto, ele adotou uma abordagem

diferente daquela que utilizou com a sistemática lineana; ao invés de adotar a abor‑ dagem teórica ou a metodologia de Coelho e Henriques, Sampaio advertiu sobre alguns pormenores em relação a determinadas plantas e seus usos na Medicina. Em alguns casos, ele deixou claro que o seu conhecimento era mais preciso em relação ao de Coelho e Henriques.

Por exemplo, na página 176 do tomo I sobre o Reino Vegetal, Francisco António de Sampaio descreveu e deu as virtudes e usos dos mundobins de acordo com seus

605 SAMPAIO, 1789. 606 DIAS, 2007.