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A formação do Imaginário e do Campo de Possibilidades

O ser humano, como sujeito cultural, constrói signos que revelam a maneira como se relaciona com o meio em que está inserido. Gilbert Durand (2012) analisa essa forma de interação para explicar a formação do imaginário que, de acordo com o autor, está intimamente ligada aos estímulos a que os indivíduos estão suscetíveis, através de diversas fontes (visuais, auditivas, olfativas, gustativas e/ou tácteis). Para

ele, elementos como inconsciente, mito, fantasia, subjetividade ou imaginação fazem parte da realidade, mas que a teoria da racionalidade não consegue explicar sozinha.

De fato, Durand (2012) afirma que esses elementos não apenas compõem a realidade, mas a ressignificam através de um conjunto de imagens simbólicas. Essas imagens, formadas através da percepção contínua do que está ao redor, se traduzem em uma espécie de museu, um acervo, que conserva as representações simbólicas daquilo que vivenciamos.

Durand (2012) acrescenta que esse acervo tem um caráter dinâmico. Ele carrega a necessidade de ser alimentado constantemente através de elementos imagéticos e simbólicos externos ao próprio indivíduo. Desta forma, a construção do imaginário se desvincula do individual para se tornar um fenômeno coletivo com uma certa interdependência entre os agentes e a presença de outros acervos de imagens ou simbolismos.

Araújo e Teixeira (2009) ressaltam que ao longo do tempo, esses símbolos deixaram de ser monopolizados por estruturas religiosas ou estatais e ganharam outros contornos, difusos e mutáveis. As narrativas e imagens em movimento, como as produções midiáticas, por exemplo, se tornaram parte desse acervo, influenciando seu espectador ao mesmo tempo em que se reconstrói ininterruptamente baseado nos simbolismos do público alvo.

As imagens, portanto, possuem aquilo que Durand (2012, p. 29) denomina como uma “motivação intrínseca” que necessitam de análise de seus simbolismos a partir de si mesmas. Isto significa que o simbolismo está introjetado na própria imagem, não há compreensão dos símbolos a que as imagens remetem sem partir da análise da própria imagem. A presença dos signos não está associada a uma medida arbitrária, mas ao sentido que ele possui para a própria imagem simbólica.

Como a sociedade se transforma continuamente, as imagens mudam, ganhando novas simbologias. Isso permite que os indivíduos se transformem também. Os signos podem não ser os mesmos desde quando Durand (2012) concebeu seu trabalho, mas os aspectos simbólicos estão presentes. A necessidade de sucesso, aparência de virilidade e busca da felicidade constante, permanecem vivas no imaginário social.

O significado desses símbolos, portanto, corresponde ao significado da própria realidade, com uma importância tão grande, que impulsiona as ações nos campos objetivo e subjetivo, mesmo que estes campos pareçam indissociáveis e opostos. Para Durand (2012, p. 41), portanto “o imaginário não é outra coisa que este trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito” em que as “[...] representações subjetivas explicam-se ‘pelas acomodações anteriores do sujeito’ ao meio objetivo”. Por isso, antes de identificar quais são os símbolos utilizados nas propagandas publicitárias que iremos analisar mais a frente, se faz necessário que se compreenda como essas imagens ajudam a compor o imaginário do público e de que forma elas estão presentes aproveitando o contexto em que foram concebidas.

Com a comunicação de massa, a formação de um imaginário em torno do consumo se tornou cada vez mais importante para a sociedade, a ponto de se confundir aquilo que se deseja com o que é necessário. As imagens projetadas nos anúncios publicitários procuram atender uma demanda criada pelo mercado expressando ao mesmo tempo o simbolismo presente no imaginário social. Para Durand (2004), com a sobreposição de imagens com uma velocidade maior do que se pode acompanhar, a sedimentação da informação através da contemplação fica prejudicada. Ele denomina isso como “o efeito perverso e a explosão do vídeo” (DURAND, 2004, p. 31) em que os elementos diferentes das produções audiovisuais perdem sua posição central como as principais fontes de conhecimento, contato com o mundo exterior e transmissão de valores.

Ao problematizar as consequências dos meios mais atuais de produção de imagem e construção do imaginário, Durand (2004) aponta a transformação gradativa de simbologias que antes estavam presentes em elementos consolidados ao longo da história humana. Anteriormente, o imaginário se devia às influências das artes clássicas, das narrativas sacras e da convivência comunitária, que alimentavam a alma humana e concebiam formas de sociabilidade diferentes das atuais.

Com a popularização das imagens em movimento, essa relação com o mundo se transformou e lançou a sociedade em uma espécie de espiral, dinamizando os processos de significação e ressignificação humana. As mídias audiovisuais passaram a ter uma relação de ambivalência com esta sociedade moderna, em que

ao mesmo tempo que idolatra a imagem em movimento, apresenta certa incredulidade por não compreender que “ela própria (a sociedade) esteja sedenta de imagens e de sonhos”, de acordo com Araújo e Teixeira (2009, p.07).

O fascínio, portanto, com esse novo tipo de reproduções imagéticas fez com que o próprio sentido das imagens se torne fluido, muitas vezes difícil de mensurar e mutante com velocidade maior que os elementos clássicos. A interatividade entre as produções e a sociedade alteram esse ritmo, com o acesso ampliado aos meios de comunicação e, no caso dos últimos vinte anos, com a expansão da produção e divulgação de conteúdos.

Se a imagem simbólica assume um papel de destaque na concepção do imaginário para os indivíduos, a construção de campo de possibilidades pode ser compreendida como um processo paralelo e complementar desse imaginário, que em ambos estão diretamente ligados à materialização dos desejos do indivíduo. Gilberto Velho (2003, p.31), em seu trabalho “Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas”, procura estabelecer uma definição que traga luz sobre os termos “campo de possibilidades” e “projeto”. Esta ação acaba por distingui-los e ao mesmo tempo propor uma forma de trabalhar os conceitos de “unidade” e “fragmentação”.

Na busca de elucidar quais são as razões que envolvem o “campo de possibilidades” e o “projeto de vida”, presentes na sociedade e que contribuem para a investigação empreendida neste trabalho, os apontamentos do autor norteiam questões que envolvem categorias humanas como opções e alternativas.

Os projetos individuais sempre interagem com outros dentro de um campo de possibilidades. Não operam num vácuo, mas sim a partir de premissas e paradigmas culturais compartilhados por universos específicos. Por isso mesmo são complexos e os indivíduos, em princípio, podem ser portadores de projetos diferentes, até contraditórios (Velho, 2003, p. 46).

Segundo Velho (2003), o projeto está presente na vida do indivíduo de maneira pessoal e coletiva. Ambas operam dentro de situações que envolvem opções, sem que necessite de anulação entre si, mesmo que o indivíduo interaja com o grupo em ações especificamente coletivas, ele fará escolhas pessoais, que trarão, invariavelmente, consequências tanto para si quanto para os demais. A construção

desses projetos, portanto, depende de um repertório, como o próprio autor classifica “finito, mas repleto de variáveis e combinações” (VELHO, 2003, pág. 27-28).

No entanto, mesmo que os projetos coletivos apontem para objetivos considerados comuns a todos os envolvidos, não há necessariamente uma unidade entre os indivíduos, pois os elementos que envolvem as opções diferem de um para o outro. Em pequenos grupos, inclusive, a interpretação individual terá um grande impacto nas decisões, vindo, inclusive a fazer com que os projetos se modifiquem. À essa possibilidade, Velho (2003, p.29) dá o nome de “potencial de metamorfose”. Pois os indivíduos podem alterar suas trajetórias, de acordo com sua possibilidade de negociação da realidade. O domínio desta performance será preponderante para que o projeto se defina de acordo com os objetivos, dependendo, também do campo de possibilidades de cada um.

As alternativas que cada indivíduo possui para fazer suas opções não dependem apenas de um conjunto de fatores da sociedade, como condição social, renda, raça/cor, entre outros, mas da maneira como estes fatores são interpretados, alterando o significado deles. Os projetos de vida estão baseados nas decisões coletivas e pessoais, estabelecendo interações diversas entre os agentes sociais. Essas escolhas, portanto, se processam no campo de possibilidades de acordo com a realidade de cada grupo ou indivíduo, mas que não necessariamente limitam o campo.

Para Velho (2003, p.28), “o potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura e o processo sócio histórico” definem a gama de possibilidades presentes no campo, fazendo com que a dinâmica que envolve o que os sujeitos desejam e o que eles podem alcançar esteja diretamente ligada à forma como concebem o mundo e como interagem com as demais influências. Para o autor, “campo de possibilidades” e “projeto de vida” não limitam a capacidade humana à mera reprodução das condições estabelecidas, nem tampouco encerram um determinismo nas relações locais ou parentais. Eles apontam para um processo de interação entre os indivíduos, evidenciando que as sociedades não são estáticas ou monolíticas.

A ação dos sujeitos, de acordo com a concepção de significados diversos aos elementos que compõem a própria sociedade, faz com que tanto os projetos de vida,

de certa forma limitados pelas alternativas encontradas no campo de possibilidades, quanto o próprio campo de possibilidades, possam ser alterados. Isso mostra um caráter mutável e vivo na medida em que esses os sujeitos dialogam com diferentes realidades, sendo capazes de elaborar conceitos novos e reinterpretações de si e do coletivo, alterando inclusive a própria realidade.

Gilberto Velho (2003, p. 29) estabelece também a “permanente reconstrução” dos indivíduos, que os leva a uma convergência de múltiplas possibilidades que pode fazer com que se apropriem de diferentes influências e dialoguem com as realidades, sem que se fragmentem em sua organização e sua concepção cultural. Esta concepção torna possível a defesa de uma construção de trajetórias individuais de maneira ativa, percebendo que os indivíduos não se constituem como seres meramente receptores dos conjuntos de signos culturais, mas que reinterpretam, ressignificam e negociam plenamente para alcançar seus objetivos.

O “campo de possibilidades”, portanto, é o terreno pelo qual percorrem as trajetórias individuais e onde são forjados os projetos. Há uma possibilidade real de que os sujeitos envolvidos nos processos de negociação com a realidade apresentem, entre si, não apenas divergências, mas desigualdades. Isto é, em uma sociedade em que determinados bens culturais são estabelecidos como condição necessária para a distinção, terão mais probabilidade de sucesso aqueles que tem mais acesso à essas produções.

Por isso, o outro lado dessa discussão reside na limitação do próprio repertório de imagens e simbologias dos grupos em que os indivíduos estão inseridos. Pois, mesmo que não estabeleçam determinismos, o ambiente e os produtos culturais exercem forte influência nessa dinâmica. Isso ocorre, por exemplo, com as diferentes expressões artísticas, com a educação oferecida nos diferentes espaços educativos, com os diversos tipos de direcionamentos das campanhas publicitárias, entre outros. Isso significa que os indivíduos constroem trajetórias que estão ligadas aos elementos de seu cotidiano, atribuindo sentidos, mas também sendo influenciados por eles. Uma limitação que não é permanente, podendo o indivíduo ter contato com outras realidades e isto transformar sua trajetória. A negociação de sua realidade é constante e permanente de acordo com os elementos que estiverem disponíveis ao longo da trajetória.

As teorias de Gilberto Velho (2003) e Gilbert Durand (2012) se alinham com a ideia de uma identificação com os grupos e signos que o indivíduo passa a construir como uma característica que pode garantir sua inserção e/ou adaptação ao ambiente que transita. É possível constatar que as imagens simbólicas sobre a sociedade, surgem como elementos fundadores para projetar expectativas e/ou frustrações que podem impulsionar ou agir como agravante dos obstáculos encontrados pelo caminho. Para Durand (2012), o imaginário não se restringe a interpretar aquilo que foi “coisificado” no ambiente real, ou como elemento mnésico que está sujeito unicamente a abstração dos conceitos e formas. O imaginário, portanto, pode impulsionar significações do que se compreende como realidade.

No campo das mídias audiovisuais as imagens veiculadas como publicidade ajudam a compor o acervo que, ao lado de discursos presentes em campanhas educativas de associações ou grupos sociais diversos, como a própria família. Um desses discursos, a promessa de mudança de vida através da educação, que acompanha a sociedade brasileira há muito tempo (GHANEM, 2012), está presente nas propagandas oficiais de acesso ao ensino superior projetando o prosseguimento dos estudos como uma possibilidade para muitos, mesmo que não se configure realidade para todos.

De acordo com Ghanem (2012, p. 225), “a educação leva a uma mudança social (por inconformismo, por exemplo), que leva a uma consequente necessidade de especialização, que, por sua vez, reclama uma educação que solucione o problema”, formando um ciclo que atenderia às demandas da divisão do trabalho que requer cada vez mais especialização.

Isso tem um grande potencial de transformação dos projetos dos jovens. O desejo de fazer parte de uma “cultura universitária” (BOSI, 1996), principalmente para aqueles jovens que pertencem às classes populares, passou a ser considerado integrante dos seus desejos e sonhos. Tudo o que essa “cultura” representa, faz com que o campo de possibilidades se torne um desafio a ser vencido. Pois, para os jovens das classes mais altas, acessar a educação superior pode ser considerado como “uma demanda”, mas para os jovens menos privilegiados torna-se “uma necessidade” (BOSI, 1996).

Segundo Ghanem (2012, p. 226), a formação superior para as famílias da classe mais alta representa uma “consolidação da trajetória ascensional percorrida pela família”, ao passo que o caráter de ascensão social está vinculado aos projetos de indivíduos pertencentes a famílias com menor escolarização.

Em tal enfoque, o processo educacional, principalmente do nível superior, remete à ideia de qualificação, requisito básico de ascensão, ratificando uma trajetória já realizada que firma uma posição social específica e privilegiada, a da pequena burguesia. [...] A educação estabelecida como mecanismo e requisito de ascensão estaria associada a processos amplos (urbanização, secularização da cultura etc.), no impulso a movimentos individuais e grupais de transformação da situação de classe de origem. (GHANEM, 2012, p. 226)

A inserção no meio acadêmico não possui apenas o simbolismo da busca pelo espaço que outros jovens ocupam. A ascensão está refletida na expectativa de quebra de paradigmas sociais através de sua trajetória individual. Esse objetivo, desejável do ponto de vista do desenvolvimento econômico e social, reflete a mudança ao longo das décadas na própria sociedade ao mesmo tempo em que constrói imagens que perpetuam essa máxima de “vencer através da educação”.

Como Ghanem (2012) afirma, a mudança de perspectiva está vinculada a fatores como o crescimento da economia, universalização da educação básica e ascensão da nova classe média. Essa nova relação com a qualificação profissional tem sido agregada a outro valor muito difundido pela própria linguagem da propaganda comercial e oficial, o consumo. A educação passou a ser objeto de desejo de um público que há quinze ou vinte anos não considerava possível acessar bens que até então estavam disponíveis a uma parcela da população mais privilegiada. Os aspectos simbólicos de itens como aumento da renda familiar ou acesso a financiamento imobiliário, ocupam o mesmo lugar que “a entrada do filho na universidade ou na era da informática” (NERI, 2010, p.26), carregando valores sociais de distinção.

Os aspectos que possibilitam a construção de “projetos de vida” através do “campo de possibilidades” individual estão relacionados com o meio (VELHO, 2003). Esse meio, que se expande a medida em que a informação se torna mais acessível, sobretudo para as camadas populares, contribui para a formação de um simbolismo através das imagens projetadas que ganham interpretações de acordo com a forma

que se concebe a própria imagem e como o simbolismo se constrói. Em relação aos projetos de vida, especificamente no campo da educação superior nos últimos quinze anos, passaram a se concretizar se transformando de um desejo para uma demanda e posteriormente para um projeto viável, possível para uma população que antes não se permitia sonhar com esse nível de ensino.

A maneira com que os veículos de comunicação de massa são utilizados pelos anunciantes fazem com que os símbolos se transformem e ganhem formas e sentidos, que tem a possibilidade de serem agregados pelo público. Com isso, a concepção de mundo se reorganiza e se torna diferente para quem divulga a informação e quem recebe. A linguagem e o acesso aos meios de comunicação de massa estão descritos a seguir para amparar a discussão sobre a forma com que as produções audiovisuais afetam a sociedade.