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A fraude do reconhecimento no magistério superior: o prazer narcísico e fetichizado

ANO DOCENTES

6. ENTRE AGRURAS E DELEITES: O SENTIDO DO TRABALHO E AS RELAÇÕES ENTRE SOFRIMENTO E PRAZER NO OFÍCIO DO PROFESSOR DA

6.3 O ofício do professor da pós-graduação da UNESP: as relações dialéticas e contraditórias entre sofrimento-prazer e as (im)possibilidades de construção de sentido

6.3.4 A fraude do reconhecimento no magistério superior: o prazer narcísico e fetichizado

O reconhecimento, na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, assume importante papel na construção de sentido e na conversão do sofrimento em prazer no trabalho: “a construção do sentido do trabalho pelo reconhecimento - premiando o indivíduo quanto a suas expectativas com respeito à sua realização pessoal (edificação da identidade no campo social) - pode transformar o sofrimento em prazer” (DEJOURS, 2011a, p. 88). Mas, tanto o prazer como o reconhecimento no trabalho podem encontrar entraves. O prazer pode se aprisionar em sua forma agressiva, senão fetichizada, caindo nas armadilhas do que Freud denominou como uma situação para além do princípio do prazer (FREUD, 1996). Neste caso, as condições sublimatórias, como a de reconhecimento, solidariedade-cooperação e autonomia são, de alguma forma, suplantadas por modelos de gestão avessos à autonomia do profissional e ao real sentido do trabalho. As teias manipuladoras do trabalho e da subjetividade serão examinadas com maior vagar na seção 7. Por ora, a investigamos sob o foco de como a malversação da dinâmica do reconhecimento tem implicado certa limitação do prazer e do sentido no trabalho, a que convive de forma dialética com o sofrimento patogênico e tipos de prazer e sentido fraudados.

A Psicossociologia do Trabalho (AUBERT; GAULEJAC, 1991; GAULEJAC, 2007; PAGÈS et al., 1990) nos mostra que o paradigma gerencial tem utilizado o reconhecimento como importante ferramenta de manipulação da subjetividade. Como resultado dessa manipulação a literatura é convergente frente às tessituras e efeitos deletérios para o professor universitário, ainda que sejam compreendidos por meio de ênfases e denominações distintas. Bernardo (2014) refere-se à precariedade subjetiva e seu efeito pernicioso: o desgaste. Já Mancebo (2007) dá ênfase à sobreimplicação do trabalho (vínculo afetivo e psíquico demasiado no trabalho) daí decorrente. E Silva (2013a) faz alusão à manipulação/“cooptação” da subjetividade, abordando dimensões referentes a tal processo, como as injunções paradoxais, o fetiche do prazer, o attachment entre indivíduo-instituição, a sobreadaptação defensiva etc.

O professor universitário, ao ter sua subjetividade manipulada institucionalmente, passa a naturalizar o tipo de sociabilidade existente na universidade, a identificar-se com a ideologia organizacional pautada na fraudada excelência acadêmica, a introjetar as normas e mecanismos avaliativos - com destaque para os formulados pela CAPES e pela CPA, dentre

outras consequências. O motor que conduz o docente a inscrever-se nos fenômenos acima referenciados e a criar uma dedicação desmensurada no trabalho obedece a um estreito vínculo entre o profissional e o seu trabalho (attachment). Ele liga-se ao trabalho motivado pelas vantagens econômicas, pelos valores institucionais e por laços psicológicos. Seus impulsos pela obtenção de prazer e seus mecanismos defensivos são fraudados pela instituição no sentido de serem utilizados como ferramentas para reforçar esse liame (AUBERT; GAULJEJAC, 1991; PAGÈS et al., 1990). A defesa, neste caso, na visão dejouriana estaria expropriada (DEJOURS, 2011a, 2011d; 2013) pela instituição se apresentar como espécie de máquina de angústia e prazer. Com efeito, a busca por um prazer agressivo de superação de si e de todos, o desejo de ascensão na carreira, a sobrecarga laboral e a identificação com inalcançável perfeição profissional estão na base desse movimento. O resultado dessa manipulação está na identificação de si, imiscuída à imagem proposta pela instituição universitária: ideal de onipotência, normas, valores etc. O funcionamento do mecanismo que leva o profissional a consagrar-se inteiramente no trabalho obedece a tal processo:

O imaginário do indivíduo torna-se o objeto principal do gerenciamento, tendo como objetivo canalizar suas aspirações sobre objetivos econômicos. Dois processos maiores provocam a mobilização psíquica:

 a identificação, por introjeção, da organização, imagem de onipotência ou de excelência, e por projeção sobre ela das qualidades que ele queria para seu próprio Ego;

 a idealização, por interiorização, do ideal de perfeição e de expansão que a organização propõe. Desse modo, o Ideal do Ego encontra na empresa multinacional uma formidável caixa de ressonância para expandir seus limites e satisfazer o “Ego grandioso” (Kohut, 1974) (GAULEJAC, 2007, p. 121-122).

O poder gerencial, ao apresentar a instituição universitária como um aparelho de prazer e de angústia, utiliza o reconhecimento como ferramenta de dominação. A problemática do pacto narcísico, estabelecido entre o profissional e o seu trabalho/instituição, está na essência dos procedimentos de forja da subjetividade e de fraude da dimensão desejante e dos valores do profissional.

Por sua vez, o reconhecimento autêntico, sendo mediador da instância psíquica do profissional e da realidade do trabalho, assume grande centralidade na consecução do bem- estar laboral. A retribuição simbólica obtida pelo professor, por exemplo, no oferecimento de uma boa aula ou na produção de um artigo de elevada qualidade e contribuição social, permite que ele galgue uma estabilização psíquica frente às adversidades do trabalho, podendo converter o sofrimento em prazer pela linha da significação social de sua tarefa, como aludiu

Dejours na análise de diversas categorias profissionais (DEJOURS, 2011a; GERNET; DEJOURS, 2011).

O reconhecimento na universidade desvela-se, nesse sentido, em uma inter-relação dialética e contraditória entre sua acepção autêntica e a sua malversação pelo ideário gerencial, como forma de manipulação da subjetividade docente. O vínculo subjetivo estabelecido entre o professor e a universidade, adotado de seus ideais e normas, centra-se, também, na relativa apropriação indevida de parte dos valores e do sentido social do professor atribuído ao trabalho. Esse movimento pode ser depreendido do relato a seguir, no qual o docente expressa seu desejo de fazer carreira e, a partir daí, atender a sua vaidade e conceder melhores condições de trabalho a si e aos seus orientandos. Condição subjetiva atrelado ao social e as formas históricas de sociabilidade:

P: Porque você almeja ser um pesquisador de excelência? E: Eu acho que tem uma coisa de vaidade pessoal, de meta pessoal. Eu acho que é uma coisa importante. Agora, associado a isso tem toda uma questão social. Quanto mais você tem produção, você é um pesquisador de ponta, mais você pode facultar a alunos bolsa, facultar auxílio, facultar mesmo pontuação pra faculdade, facultar uma nota melhor pro programa. Isso resulta em auxílio, em dinheiro do governo, investimento. Tem uma parte de vaidade e tem uma parte assim, já que você pode fazer uma coisa melhor, pode contribuir de fato para a sua instituição, pros alunos e com os colegas, por que não? O ruim é você, assim... sei lá, você tá no time, você quer ser um jogador que contribua, você não quer ser o sujeito que o técnico no segundo tempo fala, ó, vamos colocar outro, vamos por a revelação, que você já não dá mais. Acho que tem uma coisa de protagonismo, você quer contribuir de fato para as coisas aconteceram pra sua instituição. E pra você, é claro. Por que você consegue a verba... assim, a meta pra ser um professor que tem uma bolsa PQ, que é um dos meus horizontes, é uma coisa de um salário a mais, um dinheiro a mais pra fazer o que você faz. E com mais condições de financiamento e tal. E isso é importante? Eu acho interessante. É melhor fazer isso do que fazer outros trabalhos de assessoria que são mais mesquinhos, que subestimam aquilo que você pode fazer na sua pesquisa (CARLOS, 2015).

A atual sociabilidade existente na universidade tem se apregoado por intermédio do pacto narcísico entre o indivíduo e a instituição. No binômio prazer e angústia, a universidade reforça uma situação de angústia por meio de discursos, normas e metas de produtividade, ao mesmo tempo que busca aplicá-las por meio de mecanismos de aceitação e identificação desse sistema que incentiva o profissional a almejar um tipo de prazer agressivo e fetichizado. Essa paixão pelo trabalho, que se imiscui com uma naturalização das normas e regras institucionais, configura-se em um fetiche do prazer:

A gestão heterônoma possibilita a manipulação e o uso útil, para o capital, do trabalho do professor, nele incutindo o ideário e o enaltecimento da nova cultura da instituição universitária, ao qual ele é induzido a perseguir e à qual ele procura, manipulada e ilusoriamente, se assemelhar. O que poderia ser denominado como gestão do prazer/angústia (PAGÉS, 1986) se objetiva em um fetiche do prazer, acompanhado por ilusão de privilégios e de imposição, tão sorrateira quanto

insidiosa, de fortes restrições (jornadas de trabalho prolongadas, disposição integral à universidade, limitada vida sociofamiliar etc.). Engendra-se uma complexa (auto) submissão à nova cultura universitária, aos ditames heterônomos da gestão, de modo a propiciar a negação do sujeito e traços rasgados de uma instituição totalitária (SILVA; SILVA JÚNIOR, 2010, p. 229).

A busca por um ideal de perfeição, de superação de si e do outrem, a procura em ascender na carreira são os motores para tal sedução, como bem nos ilumina o entrevistado ao discorrer sobre o desejo de ser um pesquisador de excelência, de cooperar para o progresso do programa de pós-graduação, de facultar a si e aos alunos melhores condições de trabalho, relevando que o reconhecimento atua em sua satisfação narcísica. Ademais, nessa tessitura manipulatória existe uma tergiversação ideológica dos valores e do sentido social atribuído ao trabalho, com o propósito de garantir a adesão à sociabilidade produtiva. Dito em outras palavras, a sociabilidade produtiva da universidade tem aquilatado a atuação dos professores, inclusive, condicionando financiamentos para bem desenvolver suas pesquisas e fornecer melhores condições de vida aos alunos, a aceitação dos ditames de produção acadêmica amplamente difundidos e naturalizados pelas instituições que compõem o sistema universitário brasileiro. O docente passa a viver, assim, imerso em uma situação de conflitos e contradições permanentes.

A manipulação da subjetividade em prol de um místico e forjado ideal de excelência acadêmica nas múltiplas dimensões do magistério, mas em especial na pesquisa e produção científica, aliada a sobrecarga e aos inúmeros constrangimentos institucionais (normas rígidas e elevadas de desempenho, universo paradoxal etc.) tem cooperado para a existência de um sofrimento patogênico, para a limitação das dimensões prazerosas do trabalho (autonomia, criatividade, reconhecimento, sentido social) e para a convivência com tipos de prazeres menos nobres, como o narcísico e fetichizado. Neste contexto, o prazer e o sofrimento no trabalho se desvelam em complexo interjogo dialético e contraditório, como daremos ênfase no próximo item.

6.3.5 Os constrangimentos institucionais no magistério superior: o sofrimento

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