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A dimensão intelectual e criativa nas atividades do magistério superior: possibilidades de prazer e sentido no trabalho

ANO DOCENTES

6. ENTRE AGRURAS E DELEITES: O SENTIDO DO TRABALHO E AS RELAÇÕES ENTRE SOFRIMENTO E PRAZER NO OFÍCIO DO PROFESSOR DA

6.3 O ofício do professor da pós-graduação da UNESP: as relações dialéticas e contraditórias entre sofrimento-prazer e as (im)possibilidades de construção de sentido

6.3.1 A dimensão intelectual e criativa nas atividades do magistério superior: possibilidades de prazer e sentido no trabalho

As atividades do magistério superior, especialmente as que se relacionam de forma mais vivaz com a construção e transmissão do conhecimento científico - como é o caso do ensino, da pesquisa, da orientação e da extensão, são dotadas de dimensões intelectuais e criativas interessantes para a aquisição de um ofício prazeroso, ainda que não destituível de sofrimento na sua acepção patogênica ou criativa, como Dejours discorre em distintas obras (DEJOURS, 2011a; DEJOURS, ABDOUCHELI, 2011). Todavia, conforme serão perscrutadas, tais dimensões, neste cotidiano laboral, se mostram limitadas, mas jamais suprimidas face aos constrangimentos da organização de trabalho na universidade,

especialmente, decorrentes das pressões, prescrições institucionais e da manipulação da subjetividade.

A natureza intelectual e, parcialmente, autônoma do trabalho do professor permite que, se identificado com o fazer, possa extrair importante fonte de prazer e de sentido pela ação da canalização da carga psíquica laboral. Nesse sentido, o gosto pelo desafio científico, o prazer pela descoberta, o prazer em transmitir e construir conhecimento com os alunos tem a capacidade de permitir que haja uma vazão da dimensão desejante e fantasmática no trabalho, contrabalanceando com a carga psíquica do trabalho advindo das dificuldades inerentes ao ofício, das prescrições etc. Com a fluidez e o equilíbrio entre as cargas positivas38 e negativas39 no trabalho, o professor pode vir a desenvolver um trabalho prazeroso:

Se um trabalho permite a diminuição da carga psíquica, ele é equilibrante. Se ele se opõe a essa diminuição, ele é fatigante. No trabalho por peças não há quase espaço para a atividade fantasmática; em todo o caso, as aptidões fantasmáticas não são utilizadas e a vida de descarga psíquica é fechada; a energia psíquica se acumula, tornando-se fonte de tensão e desprazer, a carga psíquica cresce até que aparecem a fadiga, a astenia, e a partir daí a patologia: é o trabalho fatigante. Inversamente, um trabalho livremente escolhido ou livremente organizado oferece, geralmente, vias de descarga mais adaptadas às necessidades: o trabalho torna-se então um meio de relaxamento, às vezes a um tal ponto que uma vez a tarefa terminada, o trabalhador se sente melhor que antes de tê-la começado: é o caso do artista, do pesquisador, do cirurgião, quando estão satisfeitos com seu trabalho. É preciso então postular a existência de uma carga psíquica negativa do trabalho que reverte em proveito da homeostasia. Estamos aqui dentro do enfoque do trabalho equilibrante (DEJOURS, 2011c, p.25).

O professor que possui a fluição da carga psíquica no trabalho não apenas tem maiores condições de não sucumbir ao adoecimento, mas pode vir a converter o sofrimento laboral em prazer. Conversão essa que depende de outras variáveis, como ecos de sentido, relevância social e de reconhecimento.

Adentrando na trilha da criatividade e da autonomia existente no fazer acadêmico do professor, destacamos primeiramente a interdependência entre o ensino e a pesquisa, ressaltando os processos de insights que o professor obtém no ato de ensinar:

38 Trabalhos que sejam demasiado controlado, repetitivo, entediante ou, ainda, intensificado, conduz o profissional ao acúmulo de carga psíquica no trabalho, visto que os interesses e desejos da pessoa tornam-se distantes do trabalho real (DEJOURS, 2011a; 2011c).

39 Um trabalho que possui uma rotina árdua - como os pilotos de caça investigados por Dejours (2011a; 2011c), mas que está em consonância com os valores e desejos do trabalhador, assim como possui autonomia necessária para a mobilização de seu agir, apresenta-se com pouca carga de trabalho e, consequentemente, com potencial sublimatório.

Então, a parte que eu gosto é a pesquisa, eu gosto muito de dar aula também, porque, eu acho que toda pesquisa que você faz, você consegue ver uma aplicação, não uma aplicação porque eu também não gosto disso, mas você consegue refletir mais sobre o seu processo de pesquisa quando você dá aula, quando você conta. Então, eu já tive muito insights dando aula [risos], muitas relações. Então, dar aula para mim é um processo cognitivo super importante [risos] para a pesquisa (BRUNA, 2014).

O ensino, sendo importante momento de construção de conhecimento e de trocas de saberes entre alunos e professores, revela-se como um interessante processo cognitivo para a pesquisa. O estudo para a preparação das aulas e a reflexão pedagógica elaborada no ensinar mostram-se como um processo cognitivo árduo, mas que possibilitam chegar as boas sistematizações analíticas. No caso específico de Bruna, em que a pesquisa assume maior centralidade em sua trajetória, tais insights são considerados prazerosos. Mas, o prazer da atividade intelectual que o ensino propicia por meio da preparação das aulas e da prática da docência não está desprovido de dificuldades, como as arguidas na narrativa:

Então, a graduação é um bom espaço, eu gosto muito de sala de aula. Mas eu não vou deixar de dizer que é um lugar que eu sofro muito, porque eu acho que a responsabilidade do docente na sala de aula é muito grande. Então, eu preciso preparar, eu preciso pensar se a prática vai dar certo com essa turma ou se não vai, pensar se vou propor seminário ou não vou propor, tudo isso me desgasta muito e quando eu entro em sala, os primeiros cinco minutos são de uma certa tensão, até hoje, ai depois flui, dá tudo mais ou menos certou, dependendo do dia. Então, eu gosto muito da prática docente mesmo. E se você me disser: “o que você mais gosta?”. Eu acho que é disso e dessas leituras prévias para preparar essas aulas. Então, eu adoro também preparar as aulas, ficar com os livros, fazer relações, fazer associações com o aluno que comenta alguma coisa e eu adoro quando isso acontece, porque me faz pensar em coisas que eu não tinha pensado, essa troca, mas nem sempre acontece (FERNANDA, 2014).

A leitura dos textos, o estabelecimento de associações de ideias e a reflexão didática são elementos criativos e intelectuais que o ensino e a pesquisa propiciam de forma intensa. Como apurado por Dejours (2011b; 2011c) fazeres dessa natureza permitem a canalização das energias pulsionais na realização de uma atividade útil, de forma que a satisfação obtida no término da tarefa assume um potencial sublimatório. O prazer envolto, no entanto, não é desprovido de sofrimento, ainda que seja criativo. A experiência com a realidade do trabalho conduz o profissional a invariavelmente deparar-se com as dificuldades da atividade e, tendo a liberdade para agir visando sua superação, encontra-se envolto no âmbito do sofrimento criativo:

Dependendo dos processos psicodinâmicos desenvolvidos no trabalho, o sofrimento pode encaminhar-se para diferentes destinos: um dos destinos possíveis é a criação e a engenhosidade, situação em que o sofrimento se torna criativo, conduzindo à invenção de soluções para os impasses. Nesse quadro, o sofrimento pode atuar como um mobilizador para mudanças, impulsionando para a busca de soluções, o que

beneficia a organização do trabalho e também contribui para a realização pessoal (MORAES, 2013, p. 415-416).

Tal sofrimento detentor de um potencial sublimatório, examinados por Dejours (2011b) e Dejours e Abdoucheli (2011), é mobilizado por meio do envolvimento afetivo e da busca por um sentido profissional, tendo aí a inteligência astuciosa como grande aliada. É nesse âmbito que interpretamos a dificuldade de Fernanda em planejar o curso e preparar as aulas, mobilizando seus conhecimentos específicos, didático-pedagógicos e a experiência – sua inteligência astuciosa. O sofrimento advindo de tais dificuldades converte-se em prazer por haver uma identificação com o trabalho e por estar imbuída de um sentido social e de trocas produtivas com os alunos.

A conversão do sofrimento em prazer pela via da inscrição da inteligência astuciosa e da mobilização subjetiva autêntica (não a fraudada pelas práticas de gestão) é visto na atividade de pesquisa. O trabalho de um pesquisador é árduo, por vezes, solitário, mas inscrito no processo de construção do conhecimento científico há um ingrediente prazeroso e dotador de sentido, como se vê no dizer:

Além disso, fazer pesquisa é muito gostoso também, é um outro tipo de trabalho, é um trabalho que exige um outro tipo de empenho. É um trabalho solitário, de reflexão, é muito gostoso de fazer, duro, difícil, mas materializar o pensamento na escrita, ser claro, buscar os argumentos, apropriar-se das referências e dos instrumentais corretos para determinados objetos requer uma elaboração mental muito fina, aguda, profunda e extensa. (...) Eu já fiz pós-doutorado e é um ano que você pode parar, né, [sim] e ficar fazendo só isso e é uma delícia, é muito bom. Eu percebo que, eu não sei se eu faria só isso da minha vida, mas que uma parte dela eu encararia fazer por muitos anos, provavelmente, eu sentiria falta de algo, de dar aula que eu gosto, mas essas são duas grandes fontes de prazer. A aula tem compromisso com horário, essa outra atividade fica por conta do pesquisador... (MARIO, 2014).

O estudo, a reflexão e a prática investigativa são fazeres que aglutinam grande investimento afetivo e mobilizam a adoção de capacidades intelectuais e criativas na realização do fazer. No plano da mobilização da inteligência astuciosa, do ponto de vista psíquico, ela está enraizada no corpo do profissional, perpassando os sentidos sensoriais, a experiência e o saber-fazer, conduzida pela utilização do improviso e da astúcia. A inteligência astuciosa é mobilizada em todo tipo de trabalho, inclusive no intelectual, como elucida Dejours:

A terceira característica psíquica da inteligência prática é de estar presente em todas as tarefas e em todas as atividades do trabalho. Ela não aparece apenas na esfera do trabalho manual. Está também no âmago da atividade intelectual e mesmo do trabalho teórico. Isso pode ser muito bem observado na atividade do pesquisador que apresenta as metas a serem alcançadas, suas intuições, suas aspirações e seus

objetivos antes de iniciar a demonstração A engenhosidade, as astúcias da inteligência, a métis aparecem na própria arte da demonstração, na habilidade, na elegância, às vezes no estilo que se conjugam na vertente retórica de todo discurso teórico e científico (DEJOURS, 2011b, p. 393 -394).

A inscrição da subjetividade no trabalho pela via da inteligência astuciosa pode ser depreendida pela fala de Mario: “buscar os argumentos, apropriar-se das referências e dos instrumentais corretos para determinados objetos requer uma elaboração mental muito fina, aguda, profunda e extensa”. Tal fato permite ao professor inscrever no trabalho suas aptidões fantasmáticas, uma vez que após a produção de texto consegue descarregar sua carga psíquica no trabalho, o que consequentemente abre possibilidades para se atingir um fazer sublimatório (DEJOURS, 2011c). A limitação desta descarga psíquica, conforme ainda veremos, ocorre quando o docente, pressionado por prazos e pela necessidade de elevada produção acadêmica, se vê “impelido” a antecipar publicações que requereriam revisões e reflexões mais pormenorizadas. Além disso, o sofrimento (aqui criativo), em face das dificuldades das tarefas, se relaciona dialética e contraditoriamente com o prazer, como se viu ocorrer com o ensino.

Na estreita inter-relação entre as atividades do magistério superior, vemos que a orientação dos estudantes e a atividade de pesquisa possibilitam o desenvolvimento de interlocuções criativas entre os atores: estudantes e professores. Fato percebido quando a entrevistada discorre sobre o prazer que possui quando trabalha junto a estes atores:

Gosto muito de orientar, gosto muito da parte de orientação, gosto muito quando o aluno descobre [risos], gosto de ver o antes e depois. Eu tenho alunos que começaram comigo na Iniciação e que estão fazendo doutorado agora, gosto muito de ver o percurso, de quanto ele desenvolveu. (...) [P: Você publica com eles esporadicamente?] E: Publico muito com eles. É, assim, justamente porque eu tinha inicialmente essa dificuldade de iniciar, de estabelecer uma relação com os pares, porque agora não, agora tudo bem, mas a minha intenção inicial foi, com essas pessoas que eu estou formando, eles vão ser meus interlocutores e eles vêm sendo os meus interlocutores. Então, assim, eu boto eles para trabalharem, então, assim, geralmente, quando, por exemplo, eles têm uma ideia de artigo ou “ai eu queria escrever sobre isso”, então eles escrevem e depois a gente vai discutindo. Então eu leio, a gente discute, eu participo, as vezes, participo reescrevendo, quando tem mais tempo eu só dou as sugestões, mas, assim, eu tenho conseguido fazer bastante com eles. Tanto que esses dois livros que eu acabei de lançar, eles são fruto de um trabalho conjunto com eles. Na verdade, como desde 2008, a gente vem definindo uma linha teórica dentro da minha área de pesquisa, então, é um amadurecimento que vem vindo junto, em conjunto. (...) Quando a gente teve esse aval [publicação de um artigo em revista A1] a gente decidiu que dava para partir para um livro. Eu convidei duas colegas aqui que eram mais próximas, porque eu tento fazer a junção de duas áreas e, como não sou especialista, embora eu venha lendo, eu convidei duas colegas daqui para me ajudarem nesse projeto, porque foi um projeto de dois livros que a gente acabou fazendo em dois anos, mais ou menos. Então, a ideia inicial era assim: eu e elas teríamos um trabalho nosso dentro do livro, mas eles também teriam os deles, mas que foram feitos a várias mãos. (...) E, eu acho que para eles foi super legal, para nós também, porque eles acabaram acrescentando ao livro a experiência deles como pesquisador e eu vejo que eles cresceram muito teoricamente, metodologicamente, tudo, assim, porque a hora que você tem que condensar, transformar em alguma coisa que seja compreensível para o outro,

tem um esforço [tem um esforço] que demanda certo tempo, amadurecimento [demanda mesmo, isso é inevitável], mas, assim, a gente ficou super feliz com o resultado e tem tido uma boa recepção (BRUNA, 2014).

Os trabalhos desenvolvidos coletivamente entre os estudantes e os professores são profícuos na efetivação de elevados diálogos intelectuais, agregando maior qualidade ao trabalho final, como também implicando na inscrição de expectativas e desejos nesse feito, como auxiliar na construção de uma nova abordagem teórica de pesquisa. As interlocuções permitem, ainda, a construção de laços de afinidades, graças a efetivação da dinâmica cooperação-reconhecimento - a ser reportada em seção posterior. Tem-se, ainda, envolto no relato, certa personalidade narcísica de superação de si e de destaque na pesquisa individual – que igualmente será foco de análise em vários outros momentos.

A dimensão intelectual e criativa existente nos fazeres mais afeitos à construção e à transmissão do conhecimento científico tem a possibilidade de angariar sentido e prazer ao trabalhador, pois elas se relacionam não só com a inventividade e a inteligência astuciosa, como também permite estreito envolvimento subjetivo no trabalho, mediatizado pela canalização de energias pulsionais no trabalho. Por sua vez, a dimensão formativa existente no ofício do magistério superior, aqui foi referenciada por meio da formação dos estudantes e do auxílio ao progresso científico, possui igual potencial sublimatório e gerador de sentido. É, este sentido ético-político inalienável ao ofício docente que será o foco de análise agora.

6.3.2 A dimensão ético-política nas atividades do magistério superior: possibilidades de

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