• Nenhum resultado encontrado

ANO DOCENTES

5. TRABALHO E SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR UNIVERSITÁRIO: algumas interlocuções teóricas

5.2 As dinâmicas do trabalho docente na universidade

O trabalho e a subjetividade do professor da pós-graduação, na perspectiva que o analisamos, precisa para sua compreensão considerar tanto as tessituras que abrangem os mecanismos de manipulação da subjetividade, inqueridas pela Psicossociologia do Trabalho (AUBERT; GAULEJAC, 1991; GAULEJAC, 2007; PAGÈS et al., 1990), quanto aprofundar na dinâmica real deste trabalho que pode vir a auxiliar na existência de certas fissuras nesta sedução. A escola criada por Christophe Dejours, a Psicodinâmica do Trabalho, contribui no desvelamento das complexas relações existentes na dimensão real do trabalho. Nesta subseção, tomaremos como referência para a compreensão do par trabalho e subjetividade uma série de definições deste campo que nos apontam para existência dialética e contraditória entre sofrimento criativo, sofrimento patogênico e prazer no trabalho, a qual é perpassada pela dinâmica real do trabalho, pelo reconhecimento, pelas relações de trabalho, pelo sentido do trabalho, dentre outros.

O sofrimento e o prazer, segundo a Psicodinâmica do Trabalho, integra todo ato de trabalhar, pois toda experiência laboral invariavelmente é permeada por vivências de prazer e de sofrimento. O prazer advém pela possibilidade do indivíduo destinar as suas pulsões, inicialmente de origem sexual, a uma finalidade útil e socialmente reconhecida. O sofrimento, por sua vez, advém pelo conflito inevitável que existe entre a organização de trabalho (dotada de normas e prescrições) e o funcionamento da estrutura psíquica da pessoa que se pauta pela dimensão do desejo (DEJOURS, 2011a; 2011d). Nesta relação, o sofrimento e prazer possuem uma dinâmica que ultrapassa a mera dicotomia, apresentando entre si relações indissociáveis e irredutíveis, as quais são constituídas mediante uma relação dialética e, por vezes, contraditória.

Nesta inter-relação, o trabalho tem a possibilidade de se constituir em fonte de prazer quando implicado pelo sofrimento, mas não limitado por ele, o profissional tem condições de agir de forma criativa rumo a adequações benéficas à realidade do trabalho. O sofrimento criativo, neste sentido, se desvela como condição fulcral para o bem-estar dos atores, sendo empreendido quando a contribuição fornecida pelo trabalhador para a organização do trabalho é reconhecida. Caso em que ela se traduz em ganho identitário e em prazer ao profissional:

Quando o sofrimento pode ser transformado em criatividade ele traz urna contribuição que beneficia a identidade. Ele aumenta a resistência do sujeito ao risco

de desestabilização psíquica e social. O trabalho funciona então como um mediador para a saúde (DEJOURS; ABDOUCHELI, 2011, p. 137).

O sofrimento e o prazer, neste sentido, não são pares opostos. Inclusive, o prazer sublimatório, ainda que não destituído de certo grau de sofrimento, vem a ser sustentado por um sofrimento criativo. No âmbito acadêmico, o sofrimento criativo se realiza quando o professor atua com fim de melhorar o funcionamento na universidade ou quando reivindica melhorias nas condições de trabalho. O grande desafio das investigações filiadas a Psicodinâmica do Trabalho (a qual, incluímos esta pesquisa) é definir “as ações suscetíveis de modificar o destino do sofrimento e favorecer sua transformação” (DEJOURS; ABDOUCHELI, 2011, p. 137). Tarefa que se conseguida traria ganhos ao bem-estar dos profissionais e inclusive às organizações.

O sofrimento pode, ainda, se apresentar em sua acepção patogênica, em especial, quando a organização de trabalho impede a realização de certos ajustes necessários para a superação de tais adversidades. O sofrimento patogênico na concepção dejouriana:

Aparece quando todas as margens de liberdade na transformação, gestão e aperfeiçoamento da organização do trabalho já foram utilizadas. Isto é, quando não há nada além de pressões fixas, rígidas e incontornáveis, inaugurando a repetição e a frustração, o aborrecimento, o medo, ou o sentimento de impotência. Quando foram explorados todos os recursos defensivos, o sofrimento residual, não compensado, continua seu trabalho de solapar e começa a destruir o aparelho mental e o equilíbrio psíquico do sujeito, empurrando-o lentamente ou brutalmente para uma descompensação (mental ou psicossomática) e para a doença (DEJOURS; ABDOUCHELI, 2011, p. 137).

O trabalho é um intermediador entre a saúde e a doença. Neste último, o sofrimento patogênico surge quando a individualização das relações de trabalho vem a limitar as relações de solidariedade e confiança necessárias ao reconhecimento. Surge, ainda, quando os atores estão impedidos de empreender rearranjos na organização de trabalho. Aqui se vislumbra a convergência desta abordagem com as contribuições da Clínica da Atividade. Clot (2010), neste sentido, igualmente considera que a desafetação do trabalhador advém quando sua atividade torna-se impedida, ou seja, quando os limites de atuação dos profissionais se apresentam reduzidos. Isto se caracteriza, para o autor, quando os trabalhadores perdem a prerrogativa de discutir os critérios de qualidade, quando o coletivo de trabalho está fragmentado por conflitos e quando as condições de trabalho inviabilizam ao ator atingir suas aspirações no trabalho, adversidade tributária, por exemplo, pela elevação das cadências laborais ao ponto de afetar a sua qualidade. No âmbito acadêmico este tipo de sofrimento

apresenta-se face à intensificação do trabalho, ao recrudescimento dos processos avaliativos, à fragilização das relações de trabalho e às ações de manipulação da subjetividade, caso que o sofrimento pode vir a conviver com as já referidas formas de prazer fetichizadas (SILVA, 2013a; 2013b). Mas, a especificidade do trabalho docente, a ser analisada nas seções seguintes, é que sua dimensão relacional, seu sentido ético-político e sua dimensão intelectual e formativa são fontes preciosas de prazer, embora estejam acompanhadas de fontes de sofrimento patogênico.

O trabalho real se desvela em complexa dinâmica. No plano do sofrimento criativo, a engenhosidade humana ao buscar soluções e rearranjos benéficos ao trabalho se utiliza de uma modalidade específica de inteligência. A inteligência astuciosa, centrada em seu saber- fazer, assume este papel:

A inteligência astuciosa funciona sempre em relação a uma regulamentação feita anteriormente (pela organização oficial do trabalho) que ela subverte pelas necessidades do trabalho e para atender aos objetivos com procedimentos mais eficazes, ao invés da utilização estrita dos modos operatórios prescritos. A psicopatologia do trabalho insiste sobre as fontes fundamentais dessa inteligência astuciosa em atividade, que situamos precisamente no próprio sofrimento, do que ela é um dos resultados, com a diferença de que ela leva não apenas à atenuação do sofrimento, mas a atingir, como contrapartida de seu exercício, bem sucedido, o prazer (DEJOURS; ABDOUCHELI, 2011, p. 134).

Impulsionado pelo sofrimento, o profissional pode se envolver afetivamente no trabalho, mobilizando sua inteligência para agir contra tais adversidades. Esta centrada no corpo do profissional perpassa seus sentidos, sua experiência e seu saber-fazer. No âmbito acadêmico, Dejours (2011b) exemplifica que ela se apresenta quando o pesquisador apresenta suas hipóteses, metas e objetivos na elaboração prévia de um projeto - o que seria a princípio uma aparente “intuição” do pesquisador, se fundamenta em complexa rede de saberes e experiências previamente acumuladas.

A inscrição da inteligência astuciosa no trabalho prescinde o envolvimento do profissional nele. A contribuição fornecida ao trabalho, quando retribuída pelos pares, se converte em importante fonte de canalização de energias pulsionais, desse modo, o trabalho se encontra no âmbito do prazer sublimatório e dotado de sentido (DEJOURS, 2011b).

O reconhecimento na Psicodinâmica do Trabalho (DEJOURS, 2008; 2011a; GERNET; DEJOURS, 2011) é importante intermediador na relação sofrimento e prazer. Este participa de forma ativa desta relação, permitindo a transformação do sofrimento em fonte de prazer profissional. O reconhecimento dos pares, graças à dinâmica cooperação-retribuição,

pode contribuir de maneira significativa para fomentar uma mobilização autêntica no trabalho, caso que se apresentaria como uma alternativa de resistência a certas injunções organizacionais, assim como permitiria a inscrição da subjetividade do profissional no trabalho. Tal potencialidade advém pelo reconhecimento ter a função de validar de forma exitosa uma descoberta de si na confrontação com o real do trabalho:

A mobilização subjetiva está ligada a uma dinâmica que, acredito, é bem conhecida atualmente. Ela se baseia no binômio contribuição-retribuição. Em troca da contribuição que traz à ação do trabalho, cada indivíduo espera uma retribuição. Ao contrário do que se pensa geralmente, o componente da retribuição que mais conta não é sua dimensão material (salário, prêmios, promoção etc.), mas sua dimensão simbólica. Dimensão esta que nos leva a trabalhar e que se expressa de uma forma principal: o reconhecimento, tanto o reconhecimento como gratidão quanto o reconhecimento como sinal de recebimento da contribuição. O reconhecimento, insisto, diz respeito ao fazer, não ao ser, ao trabalho e não à pessoa. Em um segundo momento, o reconhecimento do trabalho, o reconhecimento por outrem no registro do fazer, pode eventualmente ser deslocado pelo próprio sujeito para o registro da pessoa, para o registro do ser (DEJOURS, 2008, p. 84).

O reconhecimento no trabalho, embora seja uma atribuição social, ele recai diretamente sobre o registro individual da pessoa, permitindo que ela formule uma validação exitosa de sua atuação profissional e sua consequente inscrição identitária na tarefa - o julgamento não é atribuído à pessoa em si, mas ao trabalho que ela realiza. Essa condição básica para a retribuição simbólica advém pelo indivíduo se constituir em meio a relações intersubjetivas, onde o “olhar” do outro é fulcral para a constituição da pessoa (para si) – processo este de atribuição identitária sempre incompleto e problemático (DUBAR, 2005).

O reconhecimento no trabalho, elemento central para o prazer e a constituição identitária, se realiza, grosso modo, por meio de dois critérios: o de estética e o de utilidade (DEJOURS, 2008; 2011a; GERNET; DEJOURS, 2011). O primeiro é atribuído diretamente pelos pares, sendo os critérios de sua retribuição mais rigorosos, motivo que leva a atuar de forma mais diretiva na construção identitária do trabalho. Nesse ponto, o reconhecimento da estética "expressa simultaneamente a conformidade do trabalho com as regras da arte tanto quanto sua originalidade no tocante à execução conforme as regras do ofício, testemunhada por colegas da mesma profissão" (GERNET; DEJOURS, 2011, p. 65). Na universidade, este reconhecimento, por exemplo, se evidencia pela sua qualidade enquanto pesquisador e professor etc., sendo ele traduzido por meio diretos na forma de elogios, ou ainda indiretos, na forma de convites de trabalho (publicações, bancas etc.).

O segundo assume caráter mais utilitário. Este se expressa ora pela concordância do trabalhador às normas instituídas na organização de trabalho, ora pela relevância social do

trabalho realizado: “a apreciação relativa à utilidade técnica, social ou econômica, é formulada pela hierarquia da organização, pelos funcionários ou, algumas vezes, até mesmo pelos clientes” (GERNET; DEJOURS, 2011, p. 65). A apreciação da utilidade no trabalho não se refere unicamente às forjadas prerrogativas de desempenho profissionais, embora as contemple face sua malversação pelas instituições. Mas, a supera, no sentido de expressar, também, a contribuição social do trabalho desenvolvido, relacionando-se invariavelmente com reconhecimento social das profissões. Na universidade, por exemplo, se desvela em ganhos financeiros decorrentes da progressão de carreira, da obtenção de financiamentos de pesquisa, mas pode ser atribuído, também, pela relevância que a sociedade atribui ao seu trabalho.

Contribuindo ao debate do reconhecimento, Clot (2010) argumenta que a busca dos profissionais pelo reconhecimento dos pares e da hierarquia é uma forma de compensação fictícia pela possibilidade do reconhecimento de si na sua atividade estar prejudicado face as condições heterônomas do trabalho. Injunções externas e limitações do agir que, inclusive vem a implicar no enfraquecimento do gênero profissional e sua memória coletiva:

Quando o gênero profissional – designamos, assim, a memória coletiva – é maltratado, os trabalhadores deixam de se reconhecer naquilo que fazem. Sua atividade é desestabilizada. E é, antes de tudo, nesse ponto que tem origem um desejo de reconhecimento sem fundo, deslocado para hierarquias que lhe atribuem o destino dos “reconhecimentos falseados” tão sobejamente conhecidos. Aliás, sem a mínima possibilidade de chegar a responder a esse desejo de reconhecimento, mas com todos os riscos de alimentar mal-entendidos a respeito de seu objeto (CLOT, 2010, p. 287).

A amputação do poder de agir e do reconhecer-se no trabalho realizado coopera para que o profissional passe a buscar o reconhecimento em suas múltiplas acepções, inclusive a malversada pelos procedimentos institucionais de controle e sedução. Daí decorre que na compreensão da dinâmica do reconhecimento há de se destacar tanto a importância do “olhar do outro”, em que se evidencia a contribuição da Psicodinâmica do Trabalho, quanto a importância do trabalhador reconhecer-se naquilo que faz e no fruto de seu trabalho, em que se destaca a contribuição da Clínica da Atividade. Nesta análise, Clot (2010) carrega uma crítica à Psicodinâmica do Trabalho, ao considerar que a centralidade do reconhecimento dos pares e da hierarquia advém como efeito do enfraquecimento do coletivo de trabalho. Mas tão importante quanto o reconhecimento de si na atividade laboral se tem a retribuição simbólica do “outrem”, sendo ela condição fulcral para reforçar a percepção de que a ação do trabalho

está em consonância com os critérios de qualidade da profissão, atuando ainda, positivamente na dimensão do desejo que é irredutível ao humano.

A sociabilidade produtiva construída na universidade, fruto das práticas de manipulação da subjetividade ao culto à “excelência acadêmica”, tem limitado a autonomia, as possibilidades de rearranjos na organização do trabalho e de adquirir um reconhecimento autêntico. Silva (2015b) discute que a quantofrenia e tais práticas de gestão da subjetividade têm fomentado pressões e acúmulo de trabalho que limitam o agir pleno do professor, assim como promovem situações de conflito, individualismo e competividade. No reino da excelência, em que a competição é incentivada e naturalizada (GAULEJAC, 2007), o interesse individual antecede o do coletivo. A razão individualizante e instrumental que rege as ações humanas na coletividade, autocentradas nas vantagens individuais e na acepção de custo versus benefício tem implicado em dificuldades para a construção de acordos coletivos (OLSON, 2014). Racionalidade hoje muito solicitada no âmbito do paradigma gerencial.

O desenvolvimento fragmentado do coletivo de trabalho impacta de forma diretiva nas possibilidades da contribuição ao trabalho serem reconhecidas. Quando a contribuição ao trabalho não é reconhecida, o sujeito pode tanto vir a se desinvestir afetivamente da tarefa, quanto pode passar a colocar em dúvida sua qualidade profissional (GERNET; DEJOURS, 2011). Acrescenta, ainda, que hoje com as relações de confiança e solidariedade fragilizadas em vários grupos profissionais, inclusive no universitário (conforme desvelaremos na seção 8), as trocas profissionais, o saber-fazer e as experiências passam a pouco se socializar entre os atores. Situação que pode vir a dificultar a própria renovação do grupo profissional (CLOT, 2010).

Hoje, com a desoxidação dos coletivos profissionais, os trabalhadores gradativamente passam a aproximarem-se de formas de reconhecimento institucionais, por vezes, descompromissadas com o trabalho real. A dinâmica do reconhecimento, neste sentido, tem sido, muitas vezes, malversada pelas práticas de manipulação da subjetividade, anteriormente discorridas com apoio da Psicossociologia do Trabalho. Estas promovem um prazer narcísico e fetichizado que longe de se retribuir de forma exitosa para o bem-estar do profissional, podendo conduzir a expropriação (AUBERT; GAULEJAC, 1991; PAGÈS et al., 1990). O indivíduo torna-se, assim, preso em uma armadilha organizacional que o expropria.

O professor universitário se inscreve no cotidiano alienado de trabalho na universidade, por vezes, iniciado na graduação e agudizado nas socializações subsequentes quando o docente se torna partícipe da sociabilidade produtiva. A Psicossociologia do

Trabalho nos mostrou a eficiência destas teias de dominação. Ainda assim, Dejours (2011a; 2011b) lembra-nos que o real do trabalho possui uma dinâmica viva e criativa que pode sempre contribuir com a ruptura ao prescrito. Lukács (2010), por sua vez, em sua ontologia do ser social, nos apresenta que diante da naturalização e adesão à sociabilidade produtiva, construída no caso desta pesquisa com auxílio das práticas de gestão institucional, pode a pessoa estranhar a sua condição e por extensão mobilizar formas de enfrentamento e subversão a elas.

A mobilização da subjetividade, digamos “autêntica”, frente às amarras do poder, da “captura”, da dominação e da manipulação (termo por nós adotado) se coaduna à capacidade criativa do trabalho vivo e real apontado por Dejours (2011a), a que participa das suas considerações sobre a trapaça ou subversão criativa. Tais aspectos já foram abordados por Silva (2013a, 2013b) em sua proposição de uma interpolação interpelante entre os campos do materialismo histórico-dialético, da Psicossociologia e Psicodinâmica do Trabalho.

Por fim, em trajetórias díspares de aceitação plena, adaptação ou resistência ao produtivismo acadêmico estão inscritas relações dialéticas e contraditórias entre o sofrimento e prazer no trabalho. Podemos nos referir, portanto, a uma concorrência entre a adesão, estranhamento e mobilização/imobilização de resistências em relação à sociabilidade produtiva, bem como entre as possibilidades e impedimentos de construção de sentido no e pelo trabalho. É na esteira destas possibilidades e contradições que a conversão do sofrimento em prazer pode ser construída ou impedida, com distintos graus e nuanças. Porém, considerando sempre que não há prazer destituído de sofrimento, seja ele criativo ou o patogênico. Sob o olhar atento a estas múltiplas possibilidades, pretendemos melhor sistematizar tais considerações nas seções de análise a seguir.

6. ENTRE AGRURAS E DELEITES: O SENTIDO DO TRABALHO E AS

Documentos relacionados