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A FUNDAMENTAÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO A PARTIR DA

Desde os primórdios do conhecimento humano sobre objetos e fatos da natureza e, mais tardiamente, sobre a conduta humana, o homem sempre procurou justificar seu conhecimento sobre a realidade, seja por provimentos divinos, seja por motivos racionais. Esta é uma característica humana, não aceitar que a própria natureza seja capaz de se autojustificar por razões próprias, que não estejam afetas ao homem. Portanto, fundamentar, legitimar, justificar, validar, para o homem é tão imprescindível quanto lhe é perceber as coisas em sua volta. Para ele, não basta simplesmente ver ou sentir as coisas, mas sim é fundamental compreendê-las. E compreender aqui significar conhecer o objeto e validá-lo perante sua razão. Neste sentido, conforme Heidegger, o homem é um ser que só existe compreendendo (HEIDEGGER, 2011).417

A Filosofia representa exatamente o esforço do homem em buscar compreender a si e o mundo, que, num primeiro momento, com a Filosofia da Natureza, pareceu ser mais descritiva do que normativa, mas que, a partir de Sócrates, a preocupação passou a ser pela justificação das ações humanas, ou seja, tornou-se a Filosofia um desafio para o homem ao procurar entender suas próprias ações.

Com isso, durante séculos, antes do advento das ciências modernas, a Filosofia agregou toda forma de conhecimento e durante muito tempo não havia distinção entre Filosofia e ciência, até Francis Bacon, com seu Novo Organon, na modernidade, definir que o conhecimento científico teria que basear-se em técnicas experimentais e ser útil ao homem. Assim sendo, houve a separação entre conhecimento filosófico, essencialmente teórico, racional, e o conhecimento científico, empírico e racional.

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Ver também: PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. 13. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1981.

Diante de tais transformações, agora um pouco mais tarde, já no final da modernidade, quando a Física, com seu determinismo, influenciava todas as áreas do saber humano, inclusive a própria Filosofia, Kant mostrou ao mundo que apesar de toda exatidão que o conhecimento científico poderia proporcionar ao homem quanto aos fenômenos, este conhecimento precisaria ser legitimado perante a consciência humana.

Desde então, é função da Filosofia fundamentar o conhecimento científico e compreender seus objetos de estudos além da explicação racional que se faz com base em verificações empíricas. Assim, compreender um objeto é muito mais do que descrevê-lo estatisticamente aos olhos de um estudo analítico dos fatos. É, sobretudo, penetrar na sua essência através de uma atitude fenomenológica que Husserl chamou de redução eidética.

No início desta tese mostramos que a preocupação central de nossa pesquisa não era a fundamentação da Ciência do Direito, apesar de também entendermos que os princípios, os métodos, os conceitos e os resultados de toda e qualquer ciência não devem prescindir da avaliação crítica da Filosofia, já que eles podem estar equivocados ou desprovidos de fundamento. Com isso, a Filosofia sempre se coloca na posição de reflexão última tanto das ciências quanto de seus objetos de conhecimento. Aliás, foram preocupações com a falta de rigor das ciências que levaram o filósofo alemão Husserl a propor que a Filosofia fosse o estudo e o conhecimento rigoroso da possibilidade do próprio conhecimento científico, examinando os fundamentos, os métodos e os resultados das ciências; como também fizeram Bertrand Russell e Quine quando estudaram a linguagem científica, discutiram os problemas lógicos das ciências e mostraram os paradoxos e os limites do conhecimento científico.

Portanto, não basta somente o conhecimento técnico e científico, distantes, muitas vezes, de propósitos que beneficiem a própria raça humana. É preciso, principalmente, uma reflexão profunda sobre os fins desses conhecimentos e da ação que, nos dias de hoje, está cada vez mais potencializada pelos avanços proporcionados pelo conhecimento científico e as tecnologias advindas desse saber.

Com isso, toma destaque essa importante função que a Filosofia desempenha, ao reavaliar constantemente os fins e métodos das ciências, buscando, no fundo, uma adequação ao próprio bem-estar do homem; porque essa visão crítica não é nada mais do que a exigência de um comportamento ético das pessoas diretamente responsáveis pela produção das ciências.

Nesse contexto, de reflexão sobre os limites éticos e jurídicos do conhecimento humano e sua aplicação em benefício, agora não só do homem, mas de todas as formas de vida existentes na natureza e de seus recursos naturais, que, aliás, estão todos abrigados num pequeno planeta que tem o privilégio de colher tantas admiráveis formas holísticas418 de manifestação do ser; entra em cena, como fator de primeira ordem, não mais atividades descritivas, explicativas e de quantificação, que caracterizam a produção científica, mas sim o observar com cautela, o olhar com cuidado, que caracteriza a conduta humana, sempre que se ver diante da incerteza ou do mal.419 Sim, porque o homem foge do mal e procura o bem. E uma maneira de caminhar sempre na direção do bem, pelo menos de forma idealista, é traçar regras normativas, de dever-ser, que racionalmente colocadas são capazes de porem limites para conhecimento sem freios.

Mas, para isso se tornar realidade, não basta que as duas principais forças normativas estejam colocadas separadamente, como ocorria até bem pouco tempo, até eclodir a Segunda Guerra Mundial. Faz-se necessário, agora que a humanidade aprendeu a duras penas, que as normas éticas e jurídicas caminhem juntas, compondo uma nova Ordem jurídico-moral.

Moral e Direito, unidos, são os únicos sistemas normativos potencialmente capazes de colocar freios necessários ao poder destrutivo que, infelizmente, é latente na conduta humana. Para se evitar que o homem destrua a si mesmo, quer através de guerras, quer através de políticas não humanitárias e de exploração do homem pelo homem, foi que filósofos da Ética do Discurso, como Apel, e juristas da Tópica, como Alexy, Müller, entre outros, pensaram numa saída jusfilosófica que

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Cada pessoa, cada animal, planta, objetos culturais, são resultados de toda evolução natural e cultural, respectivamente, que os antecederam, Por isso, são formas holísticas, por trazerem a totalidade dentro de si.

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colocasse em primeiro plano o fator humano, como imaginara Kant ao afirmar que o homem nunca deve ser meio, mas sempre fim em si mesmo.

E para tanto, surgiu no âmbito jurídico a Teoria da Argumentação Jurídica, que procura reinterpretar a Constituição (por ser esta a sede natural dos princípios, onde estão alojados os direitos fundamentais), à luz de uma nova Hermenêutica de índole mais concretista, cujo método dialético coloca a necessidade da efetivação do consenso racional que está presente, por excelência, na Ética do Discurso. E já que Moral e Direito são duas esferas mutuamente envolvidos num fim único de criar condições históricas de proteção à dignidade humana, nada mais racional que essas duas esferas normativas tenham a mesma natureza, ou seja, sejam argumentativas (OLIVEIRA, 2003).

Desse modo, a Ética do Discurso em Apel é a única teoria moral viável no sentido de manter uma relação de fundamentação mais adequadamente articulada com o Direito420; sendo por esse motivo que a presente pesquisa se prende ao ser do Direito e não ao conhecimento do Direito, do ponto de vista estritamente epistemológico. Porque, é no ser do Direito que está a normatividade jurídica, como atividade de regulação e não de conhecimento; apesar de conhecimento e conhecido, no mundo da cultura, se comunicarem num processo dialético de aperfeiçoamento do espírito objetivo.

A fundamentação do Direito enquanto espírito objetivo se dá através de sua positividade jurídica. Nesse caso, o Direito Positivo é o local de manifestação do ser do Direito, ou seja, é o próprio fenômeno jurídico colocado perante nossa consciência. É, portanto, através dele que se pode conhecer sua essência, quer dizer, que se dá sua fundamentação.

Bem, se hoje o Direito não é mais, simplesmente, forma jurídica, mas conteúdo e forma, sendo, a partir de então, uma Ordem normativa discursiva, entendemos, então, que a norma hipotética fundamental de Kelsen não mais dá

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Habermas (1997a), mesmo discordante da fundamentação última (aliás, esse é o principal ponto conflitante entre sua versão da Ética do Discurso e a de Apel), compreende que a legitimidade de normas jurídicas passa pelos pontos de vista pragmáticos, éticos e morais [sic].