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A HERMENÊUTICA GERAL DE SCHLEIERMACHER

8 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA: DA PREPARAÇÃO

8.1 A HERMENÊUTICA GERAL DE SCHLEIERMACHER

Schleiermacher dedica-se ao estudo de sua Hermenêutica Geral a partir das conclusões de dois proeminentes filólogos de sua época: Friedrich A. Wolf e Friedrich Ast. Do primeiro, que defendia a existência de várias Hermenêuticas especiais, propõe sua Hermenêutica Geral, baseada num ato fundante que valeria para qualquer tipo de texto, constatando ser este ato fundante a compreensão,268 como se verá mais adiante. Ainda de Wolf, capta a ideia de que compreender é entender as ideias do autor quando da elaboração de sua obra.

De Ast, ele capta as ideias iniciais de seu círculo hermenêutico, pois Ast defendia que o espírito (Geist) de um autor individual somente pode ser captado se colocado na relação que há com o todo espiritual da comunidade onde o autor produziu sua obra, assim como, reciprocamente, a totalidade espiritual da comunidade antiga depende do espírito individual de cada autor.269

Schleiermacher, partindo, então, das ideias de seus predecessores, percebe que a expressão linguística é o que há por trás de toda e qualquer mensagem (sagrada, profana ou jurídica), escrita ou falada, levando-o a questionar como o homem é capaz de compreender essas expressões. Para ele, compreender é saber

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Para (CORETH, E. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1973, p. 45), “o problema da hermenêutica é o problema da ‘compreensão’?”. E continua (Op. cit., p. 45): “Compreensão’ vem de ‘compreender’, que quer dizer ‘tomar junto’, ‘abranger com’, entendido evidentemente aqui no sentido teórico e não material. Assim é que se diz: compreendo o que dizes, compreendo esta língua ou este livro [...]. Toda compreensão é apreensão de um sentido. “O verbo ‘compreender’ e o substantivo ‘compreensão’ referem-se à clássica dualidade de ratio e

intellectus, mas a distinção tornou-se obscura em alemão, porque enquanto ‘compreensão’ (verstand)

correspondia mais ao ratio, o verbo ‘compreender’ (verstehen) significa antes uma intuição (vernunft), ou seja, o intellectus. É neste último sentido que se toma a palavra alemã (i e, como verstehen e não

verstand) nas ciências históricas e do espírito, bem como na hermenêutica geral”.

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Observamos aqui a existência de um círculo virtuoso na arte da compreensão, pois o espírito coletivo, que é formado pela unidade espiritual de cada indivíduo, transforma-se num todo hegemônico, tido agora como espírito do povo (volksgeist), compondo um arquétipo que influencia a ideia de cada autor.

ouvir o outro, captando de forma misteriosa os sentidos das palavras. Neste sentido, ele assevera:

[...] como é que toda ou qualquer expressão lingüística, falada ou escrita é

compreendida? A situação de compreensão pertence a uma relação de diálogo. Em todas as situações desse tipo há uma pessoa que fala, que constrói uma frase com sentido, e há uma pessoa que ouve. O ouvinte recebe uma série de meras palavras, e subitamente, através de um processo misterioso, consegue adivinhar o seu sentido. Este processo misterioso, um processo de adivinhação, é o processo hermenêutico. É o verdadeiro lugar da hermenêutica. A hermenêutica é a arte de ouvir.270

Portanto, sendo a Hermenêutica a arte de escutar, então, compreender é voltar a experimentar os processos mentais do autor; é o reverso do que este fez, pois o intérprete começa com uma expressão já pronta e recua ao espírito do autor quando produziu o texto. Na verdade, trata-se de um duplo processo,271 pois quando o intérprete penetra na estrutura do texto, primeiro ele se depara com a linguagem, momento gramatical, e depois com a vida psíquica do autor, momento psicológico. Esse processo, que se revela nessa reconstrução, quer seja gramatical quer seja psicológica, é o círculo hermenêutico.

O círculo hermenêutico opera tanto no nível linguístico como no nível temático do discurso. Compreende-se o sentido de uma palavra individual no contexto da totalidade da frase e esta no contexto da totalidade do texto; reciprocamente, o sentido do texto, como um todo, depende do sentido de cada frase, e o sentido de cada frase depende do sentido individual das palavras. Isso quer dizer que o sujeito compreende a partir do horizonte272 no qual se situa, e este horizonte constrói-se com as próprias partes que lhe dão sentido. Trata-se de um processo dialético entre

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PALMER, Richard E. Op. cit., p. 93.

271 Esse duplo processo é feito através de dois tipos de interpretação: a gramatical e a técnica ou psicológica. A primeira refere-se ao entendimento do texto, revelando o que lhe é próprio, através de seus signos linguísticos. Neste sentido, é uma interpretação objetiva, pois trata de caracteres linguísticos distintos do autor. Já a segunda procura atingir a subjetividade de quem produziu o texto, ficando neste momento a língua esquecida. Procura-se a individualidade do autor, seu gênio particular. Ela, a interpretação técnica, pode ser atingida através de dois processos de compreensão: adivinhatório e comparativo. O Adivinhatório consistia no intérprete procurar colocar-se no lugar do autor, enfatizando seu caráter psicológico (com isso, a Hermenêutica Jurídica Clássica foi diretamente influenciada ao se valorizar na interpretação da lei a vontade do legislador). A compreensão comparativa fazia uma comparação entre o texto analisado e os diversos escritos do autor.

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Neste caso, horizonte significa a visão geral de mundo que o intérprete tem, quando dá início ao processo de compreensão.

o todo e a parte, que não passa de um círculo hermenêutico. O mesmo processo vale para o tema do discurso, pois, para entender o espírito do autor, é preciso conhecer o conjunto das obras produzidas por ele e de outros de sua época; como também, para compreender toda unidade espiritual de uma comunidade é preciso conhecer cada uma de suas partes.

Com isso, conclui-se que, para compreender, é preciso antes pré- compreender,273 ou seja, ter um conhecimento prévio sobre o tema em causa, que funciona como ponto de partida para que o intérprete adentre o círculo hermenêutico. Com as palavras de Palmer:

Visto que a comunicação é uma relação dialógica, presume-se desde o início uma comunidade de sentido, partilhada por quem fala e por quem houve [...]. Temos que previamente possuir, até certo ponto, um conhecimento do tema em causa. Isso pode ser designado como o conhecimento prévio, minimamente necessário à compreensão, sem o qual não podemos saltar para o círculo hermenêutico.274

Assim sendo, Schleiermacher, por esse inovador projeto de subordinação das regras particulares inerentes às diversas Hermenêuticas especiais à problemática geral do compreender, inaugurou uma reviravolta inteiramente análoga à que fora operada pela filosofia kantiana com referência à Filosofia da Natureza.275 No entanto, não se sabe ao certo se Schleiermacher tinha consciência de ter operado tal revolução copernicana na Hermenêutica, mas é certo que Dilthey tinha essa consciência no final do século XIX.

8.2 A PROPOSTA DE DILTHEY PARA UMA EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS DO