• Nenhum resultado encontrado

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA PRAGMÁTICO-TRANSCENDENTAL

10 DO FORMALISMO JURÍDICO AO MATERIALISMO

11.1 INTRODUÇÃO À FILOSOFIA PRAGMÁTICO-TRANSCENDENTAL

O início da Filosofia, há 2.600 anos, foi marcado pela necessidade intrínseca do homem de conhecer, primeiro a natureza, depois a si mesmo e a polis. Para tanto, diversas foram as teorias filosóficas que surgiram tentando explicar racionalmente o cosmo (o mundo perceptível e o imperceptível – Filosofia Teórica) e justificar o comportamento humano (Filosofia Prática).

Nessa busca incessante, o homem, através dessas teorias, proporcionou incontestáveis avanços ao conhecimento humano, que em muitos casos, ora comprovavam teses já existentes, ora as rejeitavam completamente, mudando radicalmente de paradigma. Assim foi a revolução copernicana na Astronomia, que refutou séculos de uma verdade incontestável que defendia a terra como o centro do universo; a descoberta do inconsciente por Freud; a Teoria da Evolução das Espécies de Darwin, entre outras. No campo da Filosofia houve, também, importantes conquistas, tais como a chamada revolução copernicana da Filosofia proporcionada por Kant com sua Filosofia da Consciência; a reviravolta linguística (OLIVEIRA, 1996b); a reviravolta pragmática (OLIVEIRA, 1996b) e, mais recentemente, a proposta de Karl-Otto Apel de transformação da Filosofia através de sua “pragmática transcendental, expressão por ele cunhada e hoje ligada a seu nome”.385

385

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. In: APEL, Karl-Otto; OLIVEIRA, Manfredo Araújo; MOREIRA, Luiz (org.). Com Habermas, contra Habermas: Direito, Discurso e Democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004, prefácio, p. 11, expõe: “Apel nasceu em 1922, em Düsseldorf, Alemanha. Começou seus estudos universitários em 1945, em Bonn, dedicando-se à História e à Filosofia. Sua tese de doutoramento versou sobre uma interpretação teorético-cognoscitiva da filosofia de Heidegger. E sua livre-docência teve por objeto a idéia de língua na tradição do humanismo, de Dante até Vico.

“Apel é, singularmente, um filósofo capaz de estudar e confrontar as principais correntes filosóficas da era contemporânea, a começar das relações entre Heidegger e Wittgenstein, o que conduziu, inicialmente, a explorar temas decisivos da teoria da ciência, os conceitos de explicação e

compreensão, perfilhando um caminho próprio que, mesmo concedendo seu significado próprio ao

sentido metodológico de ambos, conforme o respectivo campo objetivo, não deixou de lhes negar uma absolutização.

“Mas a grande temática do pensamento filosófico de Apel está localizada na descoberta da intersubjetividade, presente em Heidegger e Wittgenstein, cuja inconsciência dialética, no entanto, ele denuncia. Ocupando-se largamente com Peirce, sobretudo de sua teoria consensual da verdade, Apel é conduzido gradativamente à formulação de sua pragmática transcendental, expressão por ele cunhada e hoje ligada a seu nome”. (grifos do autor).

Os primeiros filósofos, chamados de pré-socráticos, ao se preocuparem com o conhecimento da natureza através da Escola de Mileto (Tales, Anaximandro, Anaxímenes, entre outros), culminando com a tríade máxima da Filosofia grega, Sócrates, Platão e Aristóteles, estabeleceram o primeiro paradigma da Filosofia, ou seja, a essência. Este paradigma perdurou até Kant, quando então esse, através de suas novas ideias, alterou o foco principal da Filosofia, isto é, a justificativa das coisas do mundo não estava mais na natureza em si, mas sim no próprio homem, na sua consciência. Com isso, deu-se início à fase antropocêntrica, deixando para trás a cosmocêntrica, dos primeiros pré-socráticos, e a teocêntrica, dos filósofos escolásticos.

Com o advento dessa nova fase, em que o homem passou a ser o centro das questões filosóficas, e principalmente depois de Kant, surgiram inúmeras correntes, sobretudo um estilo filosófico,386 que alteraram substancialmente o panorama final da Filosofia Moderna (Filosofia do Absoluto de Hegel e a Fenomenologia de Husserl) e, notadamente, de toda Filosofia Contemporânea, que surgiria logo após esta fase subjetiva (a exemplo da Filosofia Analítica de Frege, Russell, Wittgenstein, Moore, entre outros). É justamente com os avanços proporcionados pela Filosofia Analítica (que se preocupa com a forma e os modos de funcionamento da linguagem), sobretudo na sua fase pragmática, e juntamente com a Hermenêutica Filosófica de Heidegger e Gadamer (2009b), que a Filosofia sofrerá sua mais recente transformação pragmático-transcendental depois da proposta filosófica solipsista387de Kant. Nesse sentido, a proposta filosófica de Apel é contrária à de

APEL, Karl-Otto. Semiótica Transcendental y Filosofia Primeira. Traducción Guillermo Lapiedra Gutiérrez. Madrid: Editorial Síntesis S.A, 2002. (Colección PERSPECTIVAS).

APEL, Karl-Otto.Transformation der Philosophie Band I: Sprachanalytik, Semiotik, Hermeneutik. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Verlag, 1973a.

APEL, Karl-Otto. Transformation der Philosophie Band II: Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Verlag, 1973b.

OLIVEIRA, Manfredo. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. 2. ed. São Paulo: LOYOLA, 2001.

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ética e Direito. São Paulo: Edições Loyola, 2002

LYCAN, William G. Philosophy of Language: a Contemporary Introduction. London and New York: Routledge, 2000.

386

Trata-se da Filosofia da Linguagem, que não é simplesmente uma corrente filosófica, mas sim um estilo, ou mais ainda, um paradigma do pensamento filosófico.

387

A Filosofia solipsista kantiana é tida como o conhecimento que se adquire individualmente, não compartilhado com o outro; portanto, o sujeito moral é capaz de descobrir, sozinho, a lei universal que é válida para todos, conforme o imperativo categórico.

Kant, pois Apel defende uma Filosofia da Intersubjetividade388, cujo a priori é a linguagem humana.

Com isso, Apel se distancia radicalmente da Filosofia Clássica grega, que enxergava na linguagem somente a função instrumental, ou seja, a linguagem servia apenas para transmitir o conhecimento e não tinha uma função mediadora nesse mesmo processo. Nesse sentido, é que Aristóteles afirmava que o conhecimento das coisas do mundo se dá por correspondência, ou seja, o pensamento capta diretamente o objeto tal como ele é, portanto, uma visão diádica do processo de conhecer, pensar e ser.389 A linguagem servia somente para transmitir às outras pessoas o conhecimento já adquirido, isto é, primeiro se cria o conceito, a ideia, depois se convenciona a linguagem. O homem para conhecer tinha que conceber as coisas tal como são na realidade, ou seja, conhecer sua essência.

A partir de Kant, a Filosofia Teórica sofreria radical transformação, pois a versão aristotélica da verdade desconsiderava a subjetividade humana. Concluiu-se que o homem não pode conhecer as coisas como realmente são, e sim como essas coisas se apresentam diante de sua consciência; isto é, conhece-se o fenômeno, mas não a coisa-em-si. No entanto, o processo de conhecimento ainda continua diádico, entre o sujeito e o objeto (fenomênico).

A proposta de Apel é diferente da até então existente, porque ele afirma que entre o sujeito e o objeto existe a linguagem, como mediadora do conhecimento, funcionando esse processo de forma triádica (sujeito – linguagem – objeto). Com isso, o homem somente pode adquirir conhecimento através da linguagem, mesmo quando pensa consigo mesmo.

Nesse contexto, em sua proposta filosófica, Apel utilizou-se de diversos avanços no campo da Filosofia, especificamente as ideias de Gadamer, Heidegger, Kant e Peirce. De acordo com Gadamer e Heidegger, filósofos da Hermenêutica, a

388

Sobre o conceito de intersubjetividade ver GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em

Retrospectiva. Petrópolis, Vozes, 2009b, p. 99-111.

389

Já a Lógica de Hegel parte da unidade entre pensamento e ser. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.

compreensão se dá por um processo circular chamado de círculo hermenêutico.390 No entanto, para se penetrar nesse círculo hermenêutico é preciso antes pré- compreender, porque se assim não o fosse não teria o homem como compreender e adquirir novos conhecimentos, pois do nada só sai nada. Isto quer dizer que a compreensão prévia faz parte da estrutura da compreensão do homem e sua condição histórica (do homem) o condiciona nessa pré-compreensão do mundo.

Dessa forma, o homem é um ser cultural, inserido na História em que há a limitação de seu horizonte de conhecimento, como o faz, também, a própria linguagem. Ora, se o homem é um ser histórico, tudo quanto for compreender partirá de sua visão de mundo, conforme a ideologia em que vive, podendo sempre melhorar sua condição humana através dos pactos que se estabelecem; daí Apel propor a crítica às ideologias.391A contribuição de Gadamer e Heidegger à proposta da Pragmática Transcendental está na ideia da estrutura da pré-compreensão, contudo, esses filósofos não eram transcendentais como Apel.

Por que, então, Apel é transcendental? Porque para ele a linguagem não é somente um campo de estudo da Filosofia, e sim muito mais do que isso. É, na verdade, condição a priori do conhecimento e da ação. Em Apel, a linguagem é uma magnitude transcendental no sentido kantiano, mais especificamente, uma condição de possibilidade e validade do acordo e do auto-acordo, consequentemente, do pensamento conceitual, do conhecimento objetivo e do agir com sentido. Regenaldo da Costa afirma, interpretando Apel, que para explicar o conceito hermenêutico- transcendental de linguagem, e daí sua dimensão reflexivo-transcendental, é preciso cumprir duas condições que surgem de uma transformação consequente da Filosofia transcendental realizada desde a Filosofia da Linguagem. Estas duas condições são feitas primeiramente, conforme Apel, destruindo e reconstruindo criticamente a

390

Conforme Heidegger, na verdade, este círculo é uma espiral, porque no processo de conhecimento nunca de retorna ao mesmo ponto de onde se partiu, porque senão tornar-se-ia um círculo vicioso.

391

Nesse sentido, DA COSTA, Regenaldo. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 105, lembra que “[...] para Apel, a pretensão da crítica das ideologias implica a esperança de melhorar o acordo entre os homens, pois de acordo com tal crítica não podemos esperar uma mera repetição do que sempre acontece”.

Filosofia da Linguagem, para em seguida, reconstruir criticamente a ideia de Filosofia transcendental. Eis, então, a grande transformação proposta por Apel.

Mas, essa transformação somente pode ser melhor percebida a partir do esclarecimento da ideia de transcendentalidade em Kant e em Apel. Kant dizia que as condições de acesso ao objeto não estão na História, e sim fora dela. Neste ponto Apel discorda de Kant. Para Apel, se é através da linguagem que se tem acesso ao objeto, e sendo a linguagem histórico-cultural, as condições de acesso ao objeto estão, então, inseridas na História e não fora dela. Kant era um filósofo solipsista, não via na História essa função. Para ele o ser humano já nasce com uma estrutura pronta para compreender as coisas do mundo.392 O acesso ao fenômeno é possibilitado pelas condições imutáveis existentes em cada pessoa através das categorias mentais (conjunto de conceitos fundamentais do entendimento).

Ao contrário de Kant, Apel não era um filósofo solipsista. Aliás, é exatamente nesse ponto que reside a fundamental divergência entre eles. Apel defende uma Filosofia da intersubjetividade, em que o discurso é imprescindível. Para ele, o homem vive dentro de uma comunidade real de comunicação, o que acaba se tornando uma condição de possibilidade do conhecimento humano. Portanto, a transcendentalidade em Kant é solipsista (subjetiva), a de Apel é discursiva (intersubjetiva).393

No que diz respeito ao sujeito transcendental, Peirce394 influenciou a filosofia de Apel com sua tese sobre a comunidade elitizada de cientistas, que trataria

392

Atualmente Noam Chomsky, com sua teoria gerativista da linguagem, defende que a linguagem é a capacidade humana natural inscrita no DNA. Nesse sentido, FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à

Linguística I: Objetos Teóricos. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 15 argumenta: “Para Chomsky,

portanto, a linguagem é uma capacidade inata e específica da espécie, isto é, transmitida

geneticamente e própria da espécie humana. Assim sendo, existem propriedades universais da linguagem, segundo Chomsky e os que compartilham de suas idéias”. (grifos nossos).

393

OLIVEIRA, Manfredo. Sobre a Fundamentação. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 66-67: “Com argumentação, a pragmática transcendental pretende exprimir o específico da razão humana, a esfera que diz respeito à constituição de validade. A mudança em relação a Kant consiste no fato de Kant ter trabalhado esta esfera numa perspectiva de filosofia da consciência, enquanto que a pragmática transcendental, por ter assumido a reviravolta lingüístico-pragmática do pensar, a interpreta a partir de uma teoria da comunicação intersubjetiva simbolicamente mediada, o que se vai revelar com clareza na transformação do sujeito transcendental de Kant na comunicação dos argumentantes e comunicantes da pragmática transcendental. Passa-se de uma razão centrada na consciência para uma razão centrada na comunicação”. (grifos do autor).

394

somente de questões relativas a fenômenos da natureza. Para ele, a verdade é resultado de um consenso dessa comunidade, que busca acordo sobre o conhecimento científico. No entanto, Apel defende a expansão desse consenso, também, para razão prática. Nesse sentido, Apel alargou essa tese e afirmou que através de uma comunidade ideal de comunicação também deve-se buscar o conhecimento ético e não só a argumentação científica; qualquer nível de

argumentação tem que se submeter a esses deveres,395deixando, com isso de ser

composta somente de um grupo elitista de cientistas, pois quanto maior a participação da sociedade mais legítimo será o consenso e, portanto, mais próximo da verdade.396 Dessa maneira, a comunidade ideal de comunicação apresenta-se como condição de validade do conhecimento.397

Com isso, aumenta a responsabilidade da sociedade por seu próprio destino,398à medida que há uma valorização do indivíduo nas discussões sobre as

REGO, George Browne. O Pragmatismo de Charles Sanders Peirce: Conceitos e Distinções. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, Recife, nº 13, p. 237-258, 2003.

WAAL, Cornelis de. Sobre Pragmatismo. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

FEIBLEMAN, James K. An Introduction to the Philosophy of Charles S. Peirce. Cambridge, Massachusetts and London: THE M.I.T. PRESS, 1979.

BUCHLER, Justus. Philosophical Writings of Peirce. New York: Dover Publications, 1955.

DESCARTES, René. Discurso do Método, Meditações, Objeções e Respostas. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

395

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. In: op. cit., prefácio, p. 14: “Apelo acompanha Peixe e sua teoria consensual da verdade, no sentido de que, de um último consenso, seguem-se deveres éticos. Mas, contra Peixe, mostra que não só a argumentação científica, porém qualquer argumentação, submete-se a esses deveres. O sentido da argumentação moral pode ser expresso, pois, no princípio segundo o qual todas as necessidades humanas, enquanto pretensões virtuais, devem ser admitidas como situação da comunidade comunicacional, que, no caminho da argumentação, deixa-se acordar com as necessidades de todos os demais. (grifo do autor).

“Assim, com o reconhecimento da argumentação racional há o reconhecimento da comunidade dos argumentadores. Por isso, o dever de justificar, argumentativamente, as próprias pretensões de verdade. E dessa condição absoluta segue a possibilidade de argumentar um imperativo categórico”. (grifos nossos).

396

O conceito de verdade em Apel é diferente do conceito de verdade em Heidegger e Gadamer, Aristóteles, Kant e Peirce. Em Aristóteles, a verdade é a correspondência da mente com o objeto; em Heidegger e Gadamer a verdade é um desvelamento, como a coisa se mostra no contexto; em Kant a verdade é subjetiva, solipsista; em Peirce, apesar de ser resultado de um consenso, ela é restrita a um pequeno número de pessoas (cientistas); já em Apel, a verdade é fruto do consenso da comunidade de comunicação aberta à participação da própria humanidade.

397

Na comunidade ideal de comunicação devem existir três pressupostos básicos a serem seguidos: (1) todos os argumentos devem buscar a verdade; (2) todos devem utilizar os argumentos de forma correta; (3) todos devem falar a verdade.

Consultar: APEL, Karl-Otto. Estudos de Moral Moderna. Tradução de Benno Dischinger. Petrópolis: Vozes, 1994.

398

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. In: op. cit., prefácio, p. 15: “Neste sentido, a pragmática transcendental de Apel é, ou tende a ser, uma ética de responsabilidade. A relação tensional entre a comunidade real e ideal constitui a história humana”. (grifos do autor).

questões mundiais.399 É dessa maneira que Apel reflete sobre a sobrevivência da raça humana e a preservação da biosfera, porque não tem sentido o homem argumentar para se autodestruir (APEL, 2007); há de se buscar sempre a conservação da comunidade real de comunicação (sociedade), que possibilita a verdade e tem como instância de controle a comunidade ideal de comunicação. Na verdade, a História sempre foi a tentativa constante de se chegar à comunidade ideal de comunicação (onde os argumentos são entendidos e julgados adequadamente) através da comunidade real de comunicação, onde o homem vive e cria suas condições materiais de sobrevivência.400