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2 DIREITO ENQUANTO CIÊNCIA E DIREITO ENQUANTO OBJETO:

2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A POLISSEMIA DA PALAVRA DIREITO

2.1.5 Direito Enquanto Ciência Jurídica

Todo conhecimento implica na existência de algo do mundo fora da consciência que se coloca diante dela como objeto. Portanto, é uma relação entre sujeito e objeto. De acordo com a teoria do conhecimento em Kant, que fundamentou as ciências da natureza, só podemos conhecer cientificamente a parte fenomênica desse objeto; o nôumeno é inacessível empiricamente pelo sujeito. Nesse caso, o fenômeno é tudo que se pode conhecer através da experiência; a coisa-em-si30 é inatingível materialmente e está fora do alcance das leis determinísticas da Física, pertencendo somente ao plano da metafísica, viável apenas através da especulação filosófica.31Foi devido a esse aspecto da relação fenômeno-consciência colocado por Kant, que se deu início na Filosofia ao novo método de investigação filosófica, a Fenomenologia, desenvolvido por Hegel,

necessário para a fundação racional da ética: método não dedutivo como o das filosofias tradicionais, mas reflexivo e que consiste, partindo dos fatos da experiência cotidiana, em remontar às suas condições de possibilidade. Tal procedimento, em que é fácil ver sua confiança no processo ‘crítico’ que ele se empenha em reconstruir, situa logo de início na investigação de K.O. Apel nos antípodas da ‘destruição’ da metafísica segundo Heidegger.

“Esse processo de reflexividade não concerne diretamente ao mundo do direito. Mesmo assim interessa-nos em dois sentidos pelo fato de não ser alheio à questão da fundação de uma ordem jurídica [sic]”. (grifos da autora).

A lógica reflexivo-discursiva em Apel parte do princípio performático contido na Teoria dos Atos de Fala, que ele imaginou ser responsável pela interrupção do regresso ao infinito da lógica dedutiva, com isso possibilitando a fundamentação última da Filosofia. Nesse ponto, e essa é uma questão central em nosso estudo de fundamentação do Direito a partir da Ética do Discurso em Apel, discordamos da autora acima referida, pois a reflexividade está diretamente concernida com a fundação do Direito, pelo fato da argumentação jurídica, enquanto discurso específico, ter que obedecer aos mesmos pressupostos transcendentais do discurso geral ou filosófico, conforme veremos na presente pesquisa.

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Em nossa proposta de fundamentação do Direito como sistema de normas positivas, o princípio

inaugural (termo cunhado por nós) que propomos funciona como norma fundamental ou norma-

origem (FERRAZ JR., 2007). Como princípio fundante do Direito ele é último por ser ético-reflexivo, daí porque apoiar-se na proposta filosófica de Karl-Otto Apel; sobretudo, por ser condizente com a atual Teoria da Argumentação filosófica e jurídica, ambas de natureza dialética e por isso implicantes entre si.

30 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores – Vol. Kant -I), p. 15: “[...] não podemos conhecer nenhum objeto como coisa em si mesma, mas somente na medida em que for objeto da intuição sensível, isto é, como fenômeno; disto segue, é bem verdade, a limitação de todo o possível conhecimento especulativo da razão aos meros objetos da experiência”. (grifo do autor).

LACROIX, Jean. Kant e o kantismo. 2. ed. Porto: RÉS-Editora, 2001.

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Idem, ibidem, p. 11: “A Metafísica, um conhecimento especulativo da razão inteiramente isolado que

através de simples conceitos (não como a Matemática, aplicando os mesmos à intuição), se eleva completamente acima do ensinamento da experiência na qual portanto [sic] a razão deve ser aluna de si mesma, não teve até agora um destino tão favorável que lhe permitisse encetar o caminho seguro de uma ciência, não obstante ser mais antiga do que todas as demais e de que sobreviveria mesmo que as demais fossem tragadas pelo abismo de uma barbárie que a tudo exterminasse”. (grifo do autor).

Husserl, Heidegger, entre outros grandes filósofos; tornando possível a existência dos objetos culturais como fenômenos passíveis de conhecimento através das ciências humanas. A filosofia de Kant influenciou tão fortemente e em todos os sentidos a Filosofia Contemporânea que muitos dos paradigmas filosóficos colocados em seu modelo filosófico são até hoje objetos de análise e estudos profundos. E dentre eles, um dos mais contundentes foi a justificação do método matemático (lógico-dedutivo de tradição aristotélica e descartiana) para as ciências da natureza32 de maneira tão clara e definitiva, que acabou influenciando diretamente o método investigativo das ciências humanas; também atingindo claramente o Direito através dos defensores do formalismo jurídico levado às últimas consequências em Kelsen. Ex adverso, Dilthey foi o primeiro filósofo de tradição hermenêutica a questionar o emprego desse método para as ciências do espírito, superando esse paradigma ao propor a substituição do método explicativo pelo método histórico-compreensivo, nascido junto com sua Hermenêutica Epistemológica. Nesse sentido, a contribuição da epistemologia de Dilthey foi capital para a consolidação das ciências humanas como conhecimento dotado de sentido e validade, como também possibilitou o surgimento da Hermenêutica Filosófica de Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur. Foi nesse contexto filosófico, então, que Savigny pensou, em primazia, a constituição de uma Ciência do Direito. Para os positivista extremados do Direito, o objetivo da Ciência do Direito é conhecer o Ordenamento Jurídico vigente, isto é, a norma ou o conjunto delas, na sua forma pura.33 E esse foi um paradigma difícil de superar até o surgimento, no século XX, do embate ideológico entre Schmitt e Kelsen que culminou com a reviravolta jurídica iniciada a partir de Viehweg, alterando definitivamente o fenômeno jurídico e sua ciência, sobretudo no aspecto normativo.

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ALVES, Rubens. Filosofia da Ciência: Introdução ao Jogo e suas Regras. 12. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

MARITAN, Jacques. A Filosofia da Natureza. São Paulo: Edições Loyola, 2003. 33

KELSEN, Hans. Op. cit., p. 79: “Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou conseqüências, ou - por outras palavras – na media em que constitui conteúdo de normas jurídicas. Pelo que respeita à questão de saber se as relações inter-humanas são objeto da ciência jurídica, importa dizer que elas também só são objeto de um conhecimento jurídico enquanto relações jurídicas, isto é, como relações que são constituídas através de normas jurídicas. A ciência jurídica procura apreender o seu objeto ‘juridicamente’, isto é, do ponto de vista do Direito. Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado através de uma norma jurídica”. (grifo do autor).