• Nenhum resultado encontrado

PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 2. São Bernardo �����������������������������������������������������������������������������������������

2. Objetivação de si pela escrita: homologia estilística

2.5. A heterogamia social

É no momento em que Paulo Honório pede Madalena em casamento, quando ele mal a conhece, que se vê, pela primeira vez no livro, que os personagens têm certa consciência das diferenças existentes entre eles. Essa consciência, porém, não é suficiente para levá-los a darem-se conta das forças sociais que atuam e modelam o que se faz destino. Madalena se mostra reticente em aceitar o pedido de Paulo Honório. Ela explica sua hesitação pelas inúmeras diferenças que ela percebe entre eles: “deve haver muitas diferenças entre nós” (RAMOS, 1995, p.89). Essa hesitação faz Paulo Honório apressar-se em minimizar as diferenças para reconfortá-la e convencê-la, revelando assim o seu fraco conhecimento das forças sociais em movimento dentro de uma relação tão heterogênea, como a que constituíra seu casamento, unindo dois seres socializados de maneira completamente diferentes. Às inquietudes de Madalena ele responde:

Diferenças? E então? Se não houvesse diferenças nós seríamos uma pessoa só. Deve haver muitas. Com lincença, vou acender o cachimbo. A senhora aprendeu várias embrulhadas na escola, eu aprendi outras quebrando a cabeça por este mundo. Tenho quarenta e cinco anos. A senhora tem uns vinte. (RAMOS, 1995a, p.89).

Vemos aqui que Paulo Honório é bem consciente de que as diferenças entre ele e Madelena provêm de socializações distintas (“aprendeu embrulhadas na escola” versus “aprendi outras quebrando a cabeça por este mundo”), mas ele ignora as forças antinômicas resultantes de um grau tão alto de heterogeneidade social. Antes ainda do casamento, existe um esforço de ambas as partes do casal para tentar evitar o aparecimento de conflitos. Uma boa ilustração disso encontramos no capítulo dezesseis, em um diálogo entre Azevedo Gondim, Madalena e Paulo Honório sobre um assunto delicado, que vai ser amplamente o ponto de inflexão de inúmeras brigas, a educação. Paulo Honório critica fortemente o intelectualismo do Azevedo Gondim e expõe sua crença em um tipo de aprendizado específico que foi o seu, o do senso prático:

– A instrução é indispensável, a instrução é uma chave, a senhora não concorda, d. Madalena?

– Quem se habitua aos livros...

– É não habituar-se, interrompi. E não confundam instrução com leitura de papel impresso.

– Dá no mesmo, disse Gondim. – Dá nada!

– E como é que se consegue instrução se não for nos livros?

– Por aí, vendo, ouvindo, correndo mundo. O Nogueira veio da escola sabido como diabo, mas não sabia inquirir uma testemunha. Hoje esqueceu o latim e é um bom advogado (RAMOS, 1995a, p.91).

Madelena, que escutava a conversa, limitou-se a concordar com seu futuro marido, evitando assim o conflito subjacente ao debate que opunha instrução escolar ao senso prático ensinado pela própria vida. Esse conflito, porém, se tornará recorrente e estará na origem das disputas mais violentas do casal.

Mas as estratégias para evitar conflitos não param por aí. Outro exemplo claro delas aparece quando Paulo Honório, depois de vários conflitos, tenta pacificar a relação. Para isso, ele precisa domesticar ou pôr em estado de sono suas disposições mais fundamentais, como mostram estas reflexões:

Foi à escola, criticou o método de ensino do Padilha e entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas, outros arreios que não menciono porque não quero tomar incômodo de examinar ali o arquivo.[...]

Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um homem que aprendeu leitura na cadeia, em carta de ABC, em almanaques, numa bíblia de capa preta, dos bodes. Mas contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque imaginei mostrar aquelas complicações ao governador quando ele aparecesse aqui. Em todo caso, era despesa supérflua. (RAMOS,1995, p.106-107).

O que podemos notar no conflito interior de Paulo Honório, que vai levá-lo mais uma vez a pôr em estado de descanso suas principais disposições (“contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidência com minha mulher”), é fruto de sua recusa de levar em consideração a irredutibilidade de suas diferenças com Madalena, essas diferenças sendo a marca, como já dito, de suas socializações distintas. Mas, nesse caso, ele guarda consigo sua disposição utilitária, como indica a alusão que faz a uma possível visita do governador.

O problema de evitar conflitos, ao qual nos referimos, é tratado na sociologia como um fato resultante de uma característica quase que paradigmática de esquemas incorporados num processo longo de socialização: a homogamia. Se nos referimos ao termo habitus para discorrer sobre essa característica é porque, em sua acepção mais funcional, o habitus tende a assegurar uma constante contra a mudança através da seleção que ele opera entre as novas informações, retendo apenas

aquelas que confirmam e rejeitando aquelas que poderiam causar questionamentos. Em outras palavras,

Os esquemas de percepção e apreciação do habitus que estão no princípio de todas as estratégias de evitamento são em grande parte o produto de um evitamento não consciente e não desejado, seja ele resultante automaticamente das condições de existência, seja ele produto de uma intenção estratégica. (BOURDIEU, 1980, p.102) (Minha tradução).

O problema que se coloca para o casal Paulo Honório e Madalena é que eles não se enquadram no caso teórico de ajustamento tal como o descrito, acima, por Bourdieu. Nesse caso, o da homogamia, tudo é mais fácil porque os dois agentes agem como se “ as ações de cada um deles se organizassemm em relação às reações que elas chamam da parte de todo agente dotado de mesmo habitus.” (BOURDIEU, 1980, p.103). (Minha tradução). Na verdade, o casal Honório apresenta estratégias de “evitamento” de conflito por antecipação das consequências das diferenças entre seus habitus, o que implica que toda análise, querendo dar conta de suas ações, deverá levar em consideração os diferentes esquemas de disposição presentes em cada um deles.

A heterogamia não apaga, contudo, no caso de uma tendência a preservar oriunda do fato de que os agentes são dotados de disposições duráveis, o fato que o habitus pode estar no princípio mesmo da adaptação ou inadaptação a um contexto dado. Voltando à teoria, falar de um indivíduo portador de disposições múltiplas não significa dizer que ele é um agente fragmentado, a quem não podemos atribuir alguma forma de coerência. Mesmo se as disposições são múltiplas, o agente ou ator fica condicionado por um certo número de traços objetivos que vêm de certa maneira limitar sua liberdade.