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O escolho da crítica: o problema da coerência

PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 2. São Bernardo �����������������������������������������������������������������������������������������

2. Objetivação de si pela escrita: homologia estilística

2.2. O escolho da crítica: o problema da coerência

A constatação e o levar a sério as disposições múltiplas mencionadas acima tornam possíveis evitar uma série de obstáculos dentro dos quais sucumbiram numerosos críticos quando escreveram sobre a obra de Graciliano Ramos, principalmente, quando procuraram a coerência inteira de seus personagens a todo preço. As palavras de Bernard Lahire são aqui exemplificadoras do tipo de equívoco mencionado quando discorre justamente a respeito do que chama de “risco ordinário e científico da coenrência”:

Como todo homem de ciência, o sociólogo está à procura da coerência dentro da complexidade do real. […] Mas a busca da coerência (e de recorrência) não deve conduzir o pesquisador à redução de todo objeto a um princípio único de coerência. Ele pode da mesma forma cuidadosa pôr em evidência coerências e recorrências parciais, locais, que se articulam ou se combinam para produzir os fatos que ele pode observar. É o caso do captar as realidades disposicionais individuais. Melhor do que procurar levar o conjunto de práticas e comportamentos de um indivíduo a uma improvável fórmula geradora, pode-se se esforçar para reconstruir, parcialmente, a partir de um ponto de vista necessariamente limitado, o patrimônio de disposições do entrevistado (LAHIRE, 2002, p.396-397). (Minha tradução)

Em alerta semelhante, Carlos Nelson Coutinho nos previne contra o risco de cair numa busca cega por coerência nas personagens de Graciliano Ramos. Em artigo versando sobre Caetés, ele condena críticos (Antonio Candido e Antonio Morel Pinto) por uma “acentuação desmesurada do aspecto autobiográfico dos romances” que, segundo ele “contribui muito pouco para análise literária e sociológica destes romances” (BRAYNER, 1977, p. 115). O que ele constata em Graciliano é uma “universalidade concreta” que se nutre “da singularidade” e da “temporalidade social e histórica” (BRAYNER, 1977, p. 116). Seria suficiente adicionar a essa lista de constatações procedentes de Coutinho a noção mesma de indivíduo com disposições múltiplas para materializar a sociedade presente no romance através também da análise da personagem.

No entanto, o ponto de vista por ele levantado persiste vitimado por certas limitações. O principal limite da visão de Coutinho consiste em, (in)justamente, ter depreciado a associação da autobiografia ao subjetivismo, sem levar em

consideração a relação íntima que Graciliano estabeleceu entre esses dois aspectos e o sentido do real (trabalho de objetivação de si) presente em toda sua obra.

Jacques Dubois desenvolve um argumento que situa de maneira mais adequada a ideia de sentido do real tornando claro que aquilo que um romancista evoca é “a

atenção a todo contexto material e cultural que engloba seres e os define. O que implica uma sensibilidade ao mundo naquilo que ele tem de mais concreto e mais efetivo” (DUBOIS, 2000, p.29). (Minha tradução)

Se seguimos com esse argumento de Dubois, percebemos que, para um escritor do real, “todo universo é socializado, o que quer dizer que o destino individual, que resta como linha de fato do romanesco, só ganha valor e relevo quando no seio de uma vida coletiva e de um encadeamento de relações” (DUBOIS, 2000, p.29). (Minha tradução). Dessa forma, vemos que um romancista do real trabalha com a “concretude, duração sensível e socialidade” que “são bem três fundamentos sob os quais o sentido do real consegue se aplicar” (DUBOIS, 2000, p.29).(Minha tradução). É nesse sentido que se destaca o realismo da obra de Gracilano Ramos. A visão de Coutinho, fortemente marcada pela influência de Lukács e de Goldmann, não consegue captar a amplitude da intuição sociológica do autor de São Bernardo, e isso porque Coutinho, apesar de todas as precauções por ele tomadas, não

consegue articular, com a devida ênfase, a tensão social por ele evocada com as atitudes individuais de Paulo Honório.

Quanto a isso, analisemos algumas passagens de seu artigo:

Ao invés da descrição extensiva de fragmentos do real (como em Caetés), São

Bernardo apresenta – como seu núcleo central – o conflito que opõe, por um lado, as forças que reduzem o homem a uma vida mesquinha e miserável no interior da alienação do “pequeno mundo” individual, e, por outro as que impulsionam o homem a descobrir um sentido para a vida em uma “abertura” para a comunidade e a fraternidade e na superação da solidão. (BRAYNER, 1977, p.87).

Vemos aqui um crítico extremamente sensível ao conflito, à tensão que as diferentes disposições sociais causam (geradas possivelmente pela movimentação entre classes sociais distintas) e à explicação que elas podem gerar para o entendimento do romance e da sociedade que nele se descreve. Coutinho prossegue seu argumento mostrando toda a riqueza do mote da perspectiva plural presente nas disposições de Paulo Honório. Numa passagem muito pertinente de seu artigo, ele descreve a norma que, segundo ele, deve conduzir a construção do romance que capta sutilmente as instâncias do real:

Esta captação concentrada do movimento da realidade deve se estruturar em torno de tipos excepcionais, superiores à média cotidiana, que encarnem em si o máximo de possibilidades concretas contidas em cada uma daquelas forças sociais em contradição. É o que ocorre em São Bernardo. Paulo Honório e Madalena são verdadeiros símbolos de suas classes precisamente na medida em que expressam, em suas ações decisivas, as atitudes típicas mais profundas de suas classes. (BRAYNER, 1977, p.86)

O condicionamento do argumento de Coutinho parece ser claro. Ele seria um raciocínio sociologicamente mais completo se, e somente se, Paulo Honório e

Madalena não aparecessem como produtos mecânicos de um habitus de classe. Ou seja, o argumento de Coutinho não pareceria uma teoria hipostasiada do romance se: 1) o crítico tivesse se dado ao trabalho de elencar o que ele chamou de “ações decisivas” das personages; e 2) se estudasse o papel dessas ações na rescontrução do real que o romance alcança através delas. Com uma descrição nesse nível de elaboração de elementos concretos do romance, torna-se visível, para além da constatação das tensões capatadas por Graciliano e por ele condensadas em suas pesonagens, algo que vai trazer relevo mais complexo, porque mais detalhado, ao que poderíamos chamar de princípio gerador da personalidade do protagonista. O limite da análise de Coutinho só é percebido quando atentamos para a maneira com a qual ele define as características específicas da personagem (individualmente). Na verdade, apesar de ter enunciado com todas as palavras a tensão que o

constituía (em nível social), Coutinho afirma que Paulo Honório “reduz tudo ao seu interesse egoísta”(BRAYNER, 1977, p.86). Caracterizando-o dessa forma, tudo se passa como se o habitus de Paulo Honório, tão cuidadosamente construído por Graciliano, fosse visto como um habitus individual sem a devida complexidade social que o traduz por ter sido forjado no seio de diversas classes ou ambientes distintos de socialização. Esse habitus já não mais aparece em consonância com as tensões que, teoricamente, o forjaram.

Se lembramos mais uma vez Bourdieu, o habitus individual se apresenta “como um sistema subjetivo mas não individual de estruturas interiorizadas, esquemas comuns de percepção, de concepção e ação, que constituem a condição de objetivação e de toda apercepção.”(BOURDIEU, 1980, p.101). (Minha tradução). Dito de outra maneira, o sistema de disposições individual se apresenta como uma variante estrutural do habitus de classe. Ora, apenas uma reflexão levando em conta a complexidade das disposições sociais presentes em Paulo Honório tornaria plausível, de maneira concreta, compreender a necessidade sentida pelo protagonista de se recontar através de um livro. É apenas aceitando essa complexidade da personagem de Graciliano Ramos que se pode encontrar a verossimilhança no desejo de escrever em um indvíduo cujos principais traços não deixam prever uma tal inclinação.

Para dar relevo a esse argumento, lembremos ainda a leitura de Antonio Candido, já aludida, antes de prosseguir nessa investigação. Antonio Candido, como já mecionado, também focalizou sua atenção na análise da personagem principal de São Bernardo. E colocou em evidência, talvez com mais ênfase, o princípio gerador

das ações do protagonista. O sentimento de propriedade, dizia Candido, assim como Coutinho, mais do que um simples instinto de propriedade, é uma disposição total do espírito, uma atitude geral diante das coisas, considerando ainda que, para se adaptar, seria necessária a Paulo Honório uma reeducação afetiva impossível de sua mentalidade “formada e depois deformada” (CANDIDO, 1992, p.24).

Candido nos coloca aqui no ponto central de nosso argumento: ora, se é verdade que Paulo Honório aparece como alguém que divide o mundo em duas partes, aquela dos “eleitos que respeitam os bens materiais” e aquela “dos reprovados, que não os possuem nem os repeitam” (CANDIDO, 1992, p.24), é ainda mais verdade que essa análise do personagem enquanto tipo psicológico rígido e dual não torna possível captar a complexidade que é o próprio motor da história do livro. Na verdade, o que impulsiona o narrador a escrever sua história não seria uma espécie de frustração, na base de sua incapacidade de se tonar aquilo que ele gostaria de ser? Como ele adquiriu essa capacidade de frustrar-se diante de coisas que julga erradas em si mesmo?

A distinção proposta entre as crenças e as disposições a agir parece ser essencial para compreender esses fenômenos de frustração e culpabilidade, produto do hiato existente entre os desejos e as possibilidades reais e objetivas de ação de Paulo Honório. Uma outra distinção importante é a que ocorre entre a idea de competência, apetência e disposições presentes no indivíduo que, na análise desse personagem-narrador, podem ser realizadas.

2.3. construção dos indicadores dos traços de socialização das personagens no