• Nenhum resultado encontrado

Exemplo 2: Castro Rocha e a cordialidade como veto

PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 2. A autonomia em questão

2. Outros exemplos: Costa Lima e Castro Rocha em vetos mais explícitos à sociologia

2.2. Exemplo 2: Castro Rocha e a cordialidade como veto

Examinemos mais um caso: o do livro Literatura e Cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira, de João Cezar de Castro Rocha (CASTRO ROCHA, 1998). Parece mais um exemplo que ilustra, a contrario sensu, o propósito histórico- descritivo da sociologia da literatura. O livro formula, no que se refere à hipótese da autonomia, o mesmo discurso desta tese: existe precaridade na autonomia do campo das letras no Brasil em um dado período e isso continua, em certo sentido, até hoje. Contudo, o enfoque analítico da sociologia pretendido no presente trabalho destoa do elaborado por meio da ideia de cordialidade, que está presente na análise de Rocha, o que ajuda a esclarecer o objetivo crítico desta tese.

Com a análise da polêmica sobre a Confederação dos tamoios – em que José de Alencar, jovem pretendente a entrar no universo restrito das letras nacionais, atacava fortemente a obra de Gonçaves de Magalhães, considerado o grande escritor da época, como estratégia de consagração –, Castro Rocha objetivava “caracterizar a vida literária de homens cordiais”16 (CASTRO ROCHA, 1998, p.31). A partir desse

exemplo, tipifica uma linha de conduta própria à produção intelectual brasileira. Em

16. A ideia de homem cordial foi tirada por Castro Rocha do clássico de Sérgio Buarque de Holanda (Holanda in SANTIAGO (org.) v. 3, 2000) e utilizada para tentar captar práticas reais da conduta de escritores brasileiros. No famoso ensaio, Sérgio Buarque propõe engenhosa hipótese sociológica sobre as razões do comportamento dos intelectuais brasileiros associando-as a uma lógica mais geral, oriunda, segundo ele, da hipertrofia da esfera privada que contaminava a pública. Nesta análise sobre o precedimento de Castro Rocha,avaliamos o recorte normativo de uma análise que termina julgando mais do que descrevendo os motivos e as lógicas que guiam as práticas intelectuais no Brasil. Nesse sentido, a ideia de homem cordial, usada por Castro Rocha para mostrar que a conduta intelectual dos intelectuais brasileiros era baseada no personalismo oriundo da esfera privada, parece-nos apenas repetir os equívocos encontrados em raízes

si, a busca pela tipificação e a generalização dos tipos não constituem um problema. O que se torna problemático é que não se verifiquem os pressupostos da teoria da socialização que dá suporte à ideia de cordialidade como característica típica e fundamental do intelectual brasileiro. Existe, nesse argumento, uma descrição do social correndo por trás da perspectiva de crítica literária: lógicas sociais (estratégias de consagração ou de entrada no mundo das letras, por exemplo) que explicam lógicas literárias (caracterização da vida literária dos homens cordiais). O limite sociológico (e apenas sociológico) desse argumento é o seu pressuposto crítico: o que explica a vida intelectual dos homens intelectuais são apenas suas relações específicas com o universo intelectual, mesmo sendo essas relações borradas por lógicas de outros universos.

O que Castro Rocha descreve é uma sociedade em que a cordialidade denuncia a falta de autonomia do campo literário (que ele trabalha em termos de um campo discursivo), da seguinte forma:

a) informando-nos, baseado em documentos de época (1854-1856), sobre as estratégias de integração ao mundo restrito das letras no Segundo Reinado usadas por José de Alencar, Castro Rocha reproduz o que seria uma pequena história concreta das estratégias, a um só tempo, discursivas e sociais do homem cordial; b) tais estratégias fixaram, pela contradição lógico-discursiva engendrada nos textos que envolveram a querela sobre o a Confederação dos tamoios, o que Castro Rocha chamou de “circularidade das articulações discursivas e de práticas sociais”. (CASTRO ROCHA, 1998, p.77).

Dessa maneira, os procedimentos analíticos do autor são delineados da seguinte forma:

Acredito que a polêmica em torno d’a Confederação dos tamoios oferece um material privilegiado tanto para o reconhecimento de códigos que definem os ritos de nossa vida literária quanto para a identificação de práticas que atravessam nossa história

cultural.(CASTRO ROCHA, 1998, p.42). (Meus itálicos).

Encontramos nessas palavras um esforço de identificação da cordialidade em

determinado tipo de prática intelectual, nas “práticas que atravessam nossa história cultural”, que é, em seguida, ampliado do caso da querela para toda a sociedade das letras:

[...] creio que as circunstâncias da polêmica encenaram e, em certa medida,

prefiguraram os dilemas que até hoje enfrentamos: o divórcio entre Estado e sociedade civil; a instabilidade do espaço público e o autoritarismo implícito nas mais diversas formas de nossas trocas sociais.” (CASTRO ROCHA, 1998, p.42).

Ora, se fizermos o exercício de comparar formalmente os pontos a e b, levando em conta os procedimentos analíticos por eles engendrados, com algumas definições formalmente aceitas de campo literário, no que diz respeito a sua autonomia relativa de espaço social específico, perceberemos logo o que está em jogo: a (ausência de) historicidade dada pela explicação sociológica que vemos nos termos esboçados por Castro Rocha.

Assim, por um lado, temos a autonomia de um campo literário que considera que, quanto mais autônomo é um campo literário, mais norteado ele estará por valores produzidos pelo próprio campo e menores serão as injunções de outros campos (político, religioso, econômico etc.) na constituição de suas normas reguladoras (BOURDIEU, 1988); (HEILBRON, 1990); (MICELI, 2001a); (VIALA, 1985). E por outro, a ideia de autonomia da obra literária carregando consigo a proposição segundo a qual a autonomia de uma obra literária só faz sentido dentro de um campo literário mais autônomo (BOURDIEU, 1998); (VIALA, 1985).

Observamos que o conceito de campo mencionado orienta o olhar dos agentes desse campo, institucionalizando uma maneira de ler e de produzir cultura. Ou seja, o conceito de campo não apresenta a priori o que constitui um campo em si, como se a ideia de campo fosse uma transposição imediata da realidade social já existente e modelada. No programa do conceito, é papel do sociólogo preencher as lacunas empíricas que a ideia de campo relativamente autônomo traz. Dentro dessa perspectiva heurística da noção, não se deve colocar o problema de maneira a discutir se obras literárias de fato têm autonomia ou não (papel que a crítica e outras disciplinas assumem), mas de averiguar e mostrar disposições por parte dos agentes de um campo em tratá-las como autônomas (historicizando assim o procedimento e, com ele, a própria noção de campo).

No texto de Castro Rocha, apesar de cautelas formais por ele adotadas, tudo se passa como se a cordialidade apontasse a desvinculação do homem cordial com as condutas próprias a um campo intelectual relativamente autônomo de onde ele deveria passar a apreender a obra guiando-se por valores intrínsecos à linguagem tida por propriamente literária. Em outras palavras, podemos dizer que Castro Rocha assume o ponto de vista já construído da autonomia. Ora, no que diz respeito

aos procedimentos analíticos, deve-se buscar – senão a ilusória ou referencial neutralidade axiológica em todas as regiões epistemológicas do trabalho (mesmo os procedimentos mais técnicos passam pelo crivo da escolha do pesquisador) – ao menos a sua compensação intelectual objetivamente possível, ou seja, uma ponderação sobre as razões pelas quais se operou, em função dos métodos e

conceitos escolhidos, um julgamento de valor a respeito de uma dada realidade e/ou fenômeno.

Apesar desses limites constatados, existe valor propriamente descritivo no trabalho concebido pela “dialética da ausência” de Castro Rocha, que ele mesmo critica. Na verdade, o fato de se estar estudando um contexto que resiste à normatividade presente no quadro teórico adotado no livro – sobretudo a presente na ideia de campo discursivo, que imputa uma relação estrutural trans-histórica ao evento da cordialidade – inocula de valor heurístico até mesmo o julgamento de valor ali plasmado. E isso porque, ao tentar delinear pela falta a substância do social contextualizado (contexto para onde um determinado conceito foi transposto), torna-se latente uma descrição criteriosa das coisas que o conceito guardando suas propriedades descritivas aqui como lá (saindo do contexto intelectual que o engendrou para o contexto onde é agora aplicado, no caso em questão o conceito de campo sendo usado para descrever o espaço de trocas intelectuais brasileiro e as práticas dele decorrentes) – devem ser capazes de explicar e inteligir o funcionamento diferenciado entre os dois contextos sociais implicitamente comparados.

Essa digressão teórica se faz necessária quando queremos mostrar que, mesmo pela rarefeita negação do que já fora descrito em contextos distintos, podemos tirar elementos positivos para uma análise comparativa em sociologia. Por exemplo, a noção de campo requer uma série de requisitos (europeus?), de propriedades (europeias?) que, existindo lá e não aqui, poderiam parecer uma justaposição falsa porque por demais normativa ao conteúdo que deve ser realmente levado em consideração para dar conta de uma sociedade específica.