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PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 4. Dificuldades da análise e descobertas oriundas do contato com o material

2. Graciliano: as inseguranças de um “escritor sem obras”

2.1. Relendo a escrita de Caetés

Se recapitularmos os elementos levantados até aqui, temos, de um lado, a

precariedade das condições de trabalho e, de outro, os motores existenciais que o levaram a leituras e a querer construir seus personagens.

Se levarmos em conta esses elementos concretos, fica mais interessante retomarmos as obras Caetés e São Bernardo e lê-las como fruto de uma reflexão do autor

sobre a própria precariedade, que termina por deixá-lo mais sensível a si, e como explicação em parte da reflexividade característica do jovem Graciliano que, talvez sem perceber, inaugura uma abordagem crítica sobre olhares tradicionais existentes sobre o Brasil.

Pensamos não haver exagero ao mostrarmos um Graciliano, já em Caetés, contrapondo-se – não porque ele quisesse, mas por que sua condição também o tenha levado a esse tipo de reflexividade – a uma tradição do pensamento social brasileiro de então, quando pensadores como Oliveira Vianna e Alberto Torres mostravam-se obcecados pela ideia de ordem. Estes autores faziam críticas à

desordem do povo. Eles denunciavam a falta de organicidade dele, a falta de coesão social, revelando toda uma desagregação do corpo social.

Como já indicado, ao lermos Graciliano Ramos, percebemos como ele inaugura uma postura reflexiva e crítica a esse de tipo de pensamento. É por isso que podemos entender com mais clareza, a partir da leitura de Caetés, a dicotomia entre espaços de enunciação e do discurso produzida por intelectuais como Torres e Vianna, dicotomia contra à qual o romance aparece como negação sublimada. Fica evidente, pela ironia adotada por Graciliano, a impostura do intelectual que aparece pela primeira vez não apenas como alguém centrado e preocupado com a desorganização do povo, tido sempre como o outro de si, como se não fizesse parte da sociedade que analisa41.

O que acontece em Caetés é exatamente o contrário disso. Quem é o verdadeiro caeté, ao final do romance, é o próprio João Valério, protagonista que representa uma espécie de intelectual à brasileira. Nesse sentido, a dicotomia entre sujeito (intelectual) e objeto (povo) não aparece mais de forma amorfa e reproduzida pelo discurso pedante do intelectual, pois ela já fora de algum modo diluída pela literatura: o intelectual é feito, na matéria do romance, do mesmo material desorganizado e informe que o povo. O intelectual e o povo aparecem como vítimas da mesma desarrumação estruturante da sociedade brasileira.

Segundo nosso ponto de vista, porém, só podemos entender bem a importância dessas questões no romance, uma vez minimamente descrita a precariedade real do intelectual, isto é, a precariedade das condições de trabalho intelectual do próprio

41. Não nos pareceu oportuno para os propósitos da tese fazer uma digressão dessa visão de Torres e Viana, mas apenas apontá-la como forma de ilustrar nosso argumento. Fizemos, porém, trabalho nesse sentido em (SILVA, 2004)

Graciliano. Graciliano Ramos não parece problematizar sua própria condição ao denunciar-se através de João Valério tão precário quanto o povo, tão precário quanto à sociedade que o produziu?

É ainda mais interessante analisar o problema dessa maneira porque, pelas razões já colocadas, Dênis de Moraes, maior biógrafo de Graciliano, não chega sequer a questionar-se sobre as condições de trabalho intelectual de Graciliano para relacioná-las a seus romances. E isso porque ele pensou essas condições a partir do pressuposto da separação biografia/obra, vendo as reclamações de Graciliano sobre a falta de qualidade de seus romances como decorrentes da personalidade do artista e de suas peculiaridades. Na verdade, os documentos apontam para um elemento da personalidade do autor que pode ser recuperado e inteligido do ponto de vista sociológico. Para isso, basta perceber que Graciliano reclamava de sua situação a partir de coisas muito concretas, relacionadas quase sempre à sua própria vida e às suas condições de trabalho.

É claro que é preciso desconfiar do que um agente social diz a respeito de si mesmo, principalmente em um estudo sociológico que busca justamente captar elementos que fujam ao campo de consciência de quem está sendo estudado. No caso específico da autodepreciação de Graciliano, porém, pela coerência e sinceridade com a qual se mostrava aos mais íntimos, sobretudo nas cartas a amigos e a

familiares, parece razoável supor que sua insegurança era sincera. Quando dizia que não se achava um intelectual, um escritor, é porque não se achava mesmo. Era a maneira que encontrava para externalizar sua insegurança. Quando afirmava que as suas obras eram ruins, é porque muitas vezes ele de fato assim as percebia. Isso não o impediu, todavia, de guardar as coisas boas e ruins que falaram acerca do que ele escreveu, o que demonstra, mais uma vez, a profunda ambiguidade contida nessa relação consigo mesmo e com sua obra.

Tendo isso em mente, para fazermos a análise da sociologia implícita ao romance Caetés, seguimos as pistas deixadas pela análise de Luís Bueno (BUENO, 2006) que trata do romance e elabora interessante estudo em que dois movimentos do protagonista João Valério ganham centralidade: o sentimento de inferioridade e o de superação pela vida intelectual. Fazemos hipótese de que tais movimentos são projeções reflexivas elaboradas por Graciliano Ramos que, ao tratar de sua própria condição, cria o universo social que produz seus personagens, isto é, recria seu próprio universo ao objetivar suas condições através da literatura.

Nossa ideia central mostra como Graciliano Ramos faz o trabalho de objetivação de si em seus romances. Analista de si, o romancista elabora uma análise acurada

da sociedade toda vez que reutiliza informações sobre sua própria forma de apropriação da leitura e da escrita e as coloca em favor da construção de suas personagens. Através desse recurso, o autor reflete sobre os dilemas de uma intelectualidade batida sob o estigma de sua própria precariedade.

Os processos de incorporação dos pré-requisitos da leitura e da escrita – a

concentração, por exemplo42 –, normalmente esquecidos por indivíduos para quem

a cultura literária é algo familiar, servem a Graciliano em sua literatura, porque se tornaram elementos constitutivos e constituintes de sua personalidade também como escritor e aparecem tematizados de várias maneiras em toda a sua obra ficcional. É produzida, assim, uma verdadeira trama de reconstrução e reelaboração de si nos romances a partir do trabalho de reflexão sobre as condições de produção intelectual feitas também nos romances.

Trabalhados pela memória do escritor e performados de maneira reflexiva pelas técnicas literárias por ele empregadas, Graciliano utiliza os pré-requisitos da competência literária para criar e descrever seus protagonistas em contexto.

Trabalha, por meio disso, a objetivação no romance das competências sem as quais o escritor não surgiria, impossibilitado que estaria de realizar quaisquer tipos de entendimento ou construção de significado através da leitura e da escrita. Nesse sentido, as dificuldades no aprendizado do Graciliano sujeito empírico são realmente utilizadas de maneira madura, distanciada, pelo Graciliano escritor, sobretudo em Infância.

Parece-nos, porém, evidente, tendo em vista as relações imbricadas entre Graciliano Ramos, sua própria vida e seus romances, que o amadurecimento tenha ocorrido pelas experimentações que ele havia realizado dessas memórias também em seus romances. Matéria-prima em suas tramas romanescas, o processo de aprendizado dolorido do menino Graciliano dá lugar à composição de protagonistas cindidos internamente, caracterizados por uma dinâmica psicológica complexa, que põe em evidência o grau de internalização de certos aspectos do universo intelectual,

42. Levamos em consideração para essa análise a tese de doutorado intitulada Infância: uma história da formação do leitor no Brasil em que Marcia Cabral da Silva estuda o que ela chamou de “materialidade da leitura em Infância” (SILVA, M. C., 2004, p. 57-78). A autora analisou os aspectos sensíveis dos objetos descritos por Graciliano em Infância e organizou os aspectos mais imediatamente sensíveis ao leitor (ilustração, tipos de suporte, formato do livro, qualidade do papel) que, segundo ela, “podem interferir na recepção da obra, na produção de significados, que variam no tempo e no espaço e acabam delineando o personagem para o qual se destina a obra – o leitor” (SILVA, M. C., 2004, p. 57). Interesamo-nos, porém, mais antentamente, pela análise do “processo de incorporação das mediações cognitivas” no menino Graciliano Ramos, mediações analisadas pelo Graciliano adulto em Infância para representar-se na idade de menino.

problematizando aspectos de práticas de assimilação tidas como dominantes em sua época.

Presentes em indivíduos reais como Graciliano Ramos e sendo indicadores

sociopsicológicos de pessoas que viveram mudanças sociais de ascensão ou declínio, as duas características apontadas por Bueno a respeito do protagonista de Caetés, sentimento de inferioridade e sua superação pela via intelectual, são, para bem dizer, uma maneira encontrada por Graciliano de objetivar suas experiências do mundo social por meio do trabalho literário.

Mas como essa postura reflexiva aparece de forma concreta no romance? João Valério estuda os caetés. O caeté é o elemento “primitivo” da cultura brasileira. A matéria bruta da brasilidade. O mesmo João Valério, no entanto, acaba se tornando um primitivo.

Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. Eu disse que não sabia o que se passava na cabeça de um caeté! Provalvelmente o que se passa na minha. (RAMOS, 2002b, p.218)

Palavras de João Valério. Ele também é um caeté. Vê-se como tal. O sujeito intelectual que se torna, portanto, objeto. O sujeito intelectual é ele também primitivo e precário. Tão precário quanto o seu objeto.

Graciliano, porém, não elabora essa conclusão do protagonista sem que isso tenha uma coerência com o resto do romance. Ele constrói sua verossimilhança inclusive por meio da falta de contato de João Valério com as práticas próprias às de um escritor profissional.

A tônica da postura reflexiva de Graciliano aparece com mais força toda vez que, através de seu protagonista, ele utiliza os elementos de sua própria condição de trabalho como elemento da visão de si do protagonista. Nesse sentido, a condição de João Valério aparece definida logo no primeiro capítulo sinalizando sua relação com a literatura:

Fiz a carta com inveja. Ora ali estava aquela viúva antipática, podre de rica, morando numa casa grande como um convento, aumentando a fortuna com avareza para a filha de Nicolau Varejão. E eu, em mangas de camisa, a estragar-me no escritório dos Teixeira, eu, moço, que sabia metrificação, vantajosa prenda, colaborava na Semana de Padre Atanásio e tinha um romance começado na gaveta. é verdade que o romance

não andava, encrencado miseravelmente no segundo capítulo� em todo caso, sempre era uma tentativa. (RAMOS, 2002b, p.13).

João Valério aparece pela primeira vez caracterizado como intelectual. Moço que sabia metrificação e que tinha um romance começado na gaveta. Um escritor que, todavia, reconhecia que “o romance não andava” . Na verdade um romancista que se caracterizava por ser uma enterna “tentativa”.

Insistimos nessa correspondência entre as condições precárias nas quais Graciliano Ramos escreveu Caetés e as condições descritas por João Valério que o impedem de escrever o seu romance. É pertinente a analogia entre as dificuldades de João Valério e as de Graciliano. Por exemplo, o protagonista, depois de passar um bom tempo envolto no cotidiano de Palmeira dos Índios, descreve da seguinte forma suas atividades de escritor:

Deitei-me vestido, às escuras, diligenciei afastar aquela obsessão. Inutilmente. Ergui- me, procurei pelo tato o comutador, sentei-me à banca, tirei da gaveta o romance começado. Li a última tira. Prosa chata, imensamente chata, com erros. Fazia semanas que não metia ali uma palavra. Quanta dificuldade! E eu supus concluir aquilo em seis meses. Que estupidez capacitar-me de que a construção de um livro era empreitada para mim! Iniciei a coisa depois que fiquei órfão, quando a Felícia me levou o dinheiro de herança, precisei vender a casa, vender o gado, e Adrião me empregou no escritório como guarda-livros. Folha hoje, folha amanhã, largos intervalos de embrutecimento e preguiça – um capítulo desde aquele tempo. (RAMOS, 2002b, p.19).

Insegurança. Autodepreciação. Dificuldade com a falta de frequência no trabalho. Tal como na biográfia de Graciliano, João Valério aparece envolto em uma vida que dificulta a realização do seu desejo de tonar-se um escritor. É verdade que, é preciso dizer, João Valério não é um alterego perfeito de Graciliano Ramos. Não é isso que argumentamos. Sabemos que, no caso do romancista fictício, os móveis que o impulsionam a escrever são em parte oriundos de um desejo de reconhecimento social bem diferente do que parecia mover Graciliano Ramos. Não há, porém, como não reconhecer, nas palavras de João Valério, uma reprodução alterada das condições de produção intelectual do próprio autor de Caetés:

Também aventurar-me a fabricar um romance histórico sem conhecer história! Os meus caetés realmente não têm verossimilhança, porque deles apenas sei que existiram, adavam nus e comiam gente. Li, na escola primária, uns carapetões interessantes

no Gonçalves dias e no alencar, mas já esqueci quase tudo. Sorria-me, entretanto, a esperança de poder transformar esse material arcaico numa brochura de cem a duzentas páginas, cheia de lorotas em bom estilo, editada no Ramalho. (RAMOS, 2002b, p.19-20).

São os mesmos Gonçaves Dias e José de Alencar que aparecem como figuras lidas e relidas por Graciliano durante sua juventude.

Poderíamos inventoriar aqui um sem número de passagens de Caetés em que Gracliano, através de João Valério, recupera elementos de sua própria condição de vida e trabalho para caracterizar o “modelo de intelectual” de seu protagonista. Se fazemos,por um lado, uma crítica à falta de preocupação com os dados biográficos para recuperação da inteligibilidade do romance, não podemos, por outro, negar o risco real do biografismo decorrente do determinismo de afimar ter Graciliano escrito o que escreveu apenas porque teve uma vida condicionada por tais ou quais aspectos da estrutura social. Ele escreveu o que escreveu, em nosso entendimento, muito mais porque, a partir desses condicionantos, construiu um projeto

deliberdamente autorreflexivo, o qual nossa análise vem revelando.

Voltemos, então, ao que escreveu a fim de, mais uma vez, perceber como as fontes biográficas de Graciliano Ramos são importantes para identificar as informações mais concretas sobre a precariedade do exercício do seu ofício e de seu personagem. Caetés, seu primeiro romance, começou a ser escrito em 1925 e Graciliano o dava por finalizado em 1926, apesar de continuar a fazer retoques e modificações até 1928, quando foi entregue a seu primeiro editor.

A demora na publicação ilustra toda uma estrutura de trabalho intelectual frágil que fazia parte de sua formação e fora, de alguma forma, internalizada por Graciliano. Consideramos a hipótese de que essa estrutura precária foi sendo, ao longo de sua carreira, objetivada na construção de seus primeiros protagonistas. João Valério e Paulo Honório, cada um à sua maneira, foram criados por uma fina reflexão feita por Graciliano sobre si mesmo e sua própria condição.

Para tornar esse argumento mais claro, tecemos mais considerações. Inicialmente, apreendemos mais detalhes sobre as condições de trabalho de Graciliano Ramos antes da publicação de Caetés.

Lembramos, por exemplo, que todo o tempo que passou tomando conta da loja do pai fez parte de seu período de formação. Nessa época, Graciliano também não encontrava tempo para manter regularidade na escrita. E, mesmo o mais básico do material, como a falta de papel, aponta a dificuldade que enfrentava para realizar seu ofício de escritor:

Entre um freguês e outro, folheava livros, jornais e revistas. Quando cerravam as portas, ia para o fundo da loja escrever, usando o papel dos talonários de pedidos e notas fiscais. Sem regularidade, despachava sonetos e pequenas crônicas para

o Malho, Jornal de Alagoas e Correio de Maceió. (MORAES, 1992, p.26). (Meus Itálicos).

Caetés, conforme já sinalizamos, foi escrito em mais ou menos cinco anos.

Ressaltamos, porém, como se deu essa formação, essa preparação, destacada por Graciliano, que revela as dificuldades em relação ao tempo de escrita para produção de Caetés:

À noite, quando os filhos iam dormir, Graciliano escrevia na sala silenciosa páginas de

Caetés. Trabalho lento, pela falta de tempo. Ao terminar um capítulo, lia para a mulher, em busca de opiniões. (MORAES, 1992, p.60).

Ocupado com os afazeres da política, Graciliano reclamava do ofício de gestor que lhe cabia porque isso o impedia de trabalhar em seu livro: “Não sei. O que sei é que preciso dormir um pouco para continuar os meus Caetés. Essa coisa de política é bobagem, e eu não entendo disso.” (MORAES, 1992, p.73).

Tais características e dificuldades são muito parecidas, como vimos, com as que encontramos descritas por João Valério para caracterizar sua condição de intelectual.