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A sociologia contra o mistério literário

PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 2. São Bernardo �����������������������������������������������������������������������������������������

2. A sociologia contra o mistério literário

Esta tese tem um fundamento simples: coloca-se diametralmente, de maneira concreta, a partir de seus procedimentos básicos, sem dúvida imperfeitos e ordinários, contra os preceitos de inexplicabilidade e transcendência contidos em diversas maneiras de lidar com a literatura e os escritores. Percebemos que muito do que existe em certo humanismo torna-se na verdade, um esconderijo perfeito de uma arrogância que se disfarça em culto à literatura.

Daí nossa insistência em elogiar o modo mundano de operar a sociologia. Toda fragilidade que possa ser encontrada nas argumentações decorrentes de nosso estudo, baseadas em técnicas de leitura, em procedimentos analíticos, é, em nosso entendimento, mais perspicaz e produtiva – porque pode gerar mais conhecimento a respeito do objeto na correção das falhas – do que supostos

princípios de inexplicabilidade. Tais princípios são geralmente associados a tradições hermenêuticas55 nas quais um fenômeno que escapa a tais ou quais esquemas

explicativos preconcebidos deve logo ser considerado como algo que não pode ser explicado, o que leva seus intérpretes a “explicá-los” como sendo milagres incógnitos.

O esforço de recuperação do material histórico e biográfico de Graciliano Ramos é o trabalho mesmo da sociologia, que se recusa a aceitar o postulado segundo o qual “é melhor não entender do que procurar entender” as razões devido às quais as coisas são e se apresentam da maneira como as encontramos no mundo social.

55. Basta lembrar, com Bourdieu que a Basta lembrar, com Bourdieu que a L’art de comprende de um Gadamer, por exemplo, postula um princípio de inexplicabilidade a priori da arte que faz o sociólogo francês se perguntar : “ pouquoi tant de critiques, tant d’écrivains, tant de philosophes mettent tant de complaisance à professer que l’expérience de l’oeuvre d’art est ineffable, qu’elle échappe par définition à la connaissance rationnelle; pourquoi ils s’empressent ainsi d’affimer sans combattre la défaite du savoir ; d’oú leur vient ce besoin si puissant d’abaisser la connaissance rationnelle, cette rage d’affirmer l’irréductibilité de l’œuvre d’art ou, d’un mot plus approprié, sa transcendance. (BOURDIEU, 1998, p. 11). Bourdieu depois explica as razões pelas quais essas ideias são defendidas: “ pourquoi, en un mot, oppose-t-on une telle résistance à l’analyse, sinon parce qu’elle porte aux «créateurs » , et à ceux qui entendent s’identifier à eux par une lecture «créatice » , la dernière et peut-être la pire des blessures infligées, selon Freud, au narcissisme, après celle que marquent les noms de Copernic, Darwin et Freud lui-même ? ” (BOURDIEU, 1998, p.12)

Que possa parecer a primeira vista de difícil compreensão que em um lugar como Palmeiras dos Índios alguém, ou melhor dizendo, um escritor como Graciliano Ramos possa ter existido, pode até ser, em certo sentido, tido como natural. Parar na suspeita da inexplicabilidade, porém, é um atentado à curiosidade sociológica. Além de poder ser lido, também, como uma atitude passiva em relação à construção das hierarquias culturais construídas sob a hegemonia da cultura clássica europeia. Como explicar o Graciliano Ramos se ele não nasceu em Paris ou Londres? Não, isso não é possível, é intangível. E como explicar o talento de um autor se ele não teve uma sociabilidade intelectual na Inglaterra ou na França?

Nosso argumento mostra, mesmo dentro da precariedade que todo pensamento científico traz consigo, justamente o contrário: o estudo sobre as difíceis condições da prática intelectual de Graciliano Ramos ajuda a entender melhor a construção humana e social operando no processo mesmo de feitura de uma obra e de seu autor.

O nosso foco é muito parecido com a ideia proposta por Elias no seu livro sobre Mozart no que diz respeito ao seu alicerce epistemológico. Segundo essa perspectiva, a sociologia histórica é uma ciência empiricamente fundada. Uma ciência empírica, entretanto, que se realiza por conta de uma indexação específica entre seus conceitos e os contextos dos quais a sociologia quer dar conta.

Adotamos assim uma visão de sociologia baseada na ideia de indexicalidade dos conceitos sociológicos em sentido específico: o de que comparação e análise, as principais ferramentas das ciências sociais, não fornecem mais do que “um substituto aproximativo do método experimental”, como na ideia de “quase experimento” em Garfinkel – os objetos “experimentáveis” não oferecem

possibilidade útil ao tipo de raciocínio da sociologia, como são úteis ao pensamento científico moderno a repetição espontânea e o isolamento de variáveis em

laboratório.

Essa perspectiva adotada para este trabalho sobre Graciliano traz consigo um ponto de inflexão no que diz respeito à inteligibilidade própria a ser construída pelas ciências da sociedade e cujo objeto irredutível não pode ser outro senão o homem social, o indivíduo socializado. Isso significa dizer que as interações ou as interdependências mais abstratas apenas são confirmadas em situações singulares, impossíveis de serem decompostas e insubstituíveis strictu sensu, como na ideia de Weber de “individualidades históricas”. Em outras palavras, existe uma conformação epistemológica na sociologia que é evidenciada pelo fato de as autentificações

por uma análise finita das variáveis que o constituem e que permitiriam ponderar “todas as coisas permanecendo iguais por outro caminho”, como acontece nos experimentos científicos em laboratório.

Dizer isso, contudo, não precipita a sociologia no domínio do obscurantismo ou no niilismo irracionalista que pressuporia a singularidade histórica como elemento relevante da preguiça intelectual. Graciliano Ramos é um caso particular de

escritor que se inscreve, por conta de regularidades observáveis do ponto de vista sociológico, em um conjunto de variáveis sociologicamente identificáveis, que ajudam a entender melhor o lugar que ele e sua obra ocuparam e ocupam ainda hoje no universo intelectual brasileiro. Esse procedimento concreto de ir em busca dos elementos históricos que materializam a singularidade historicamente construída da trajetória sóciointelectual de Graciliano Ramos é o oposto da vertente que,

para fazer uma sociologia a partir das obras, pressupõe, sem qualquer mediação, a homologia entre a sociedade ficcional e a tida como real56.

56. É o caso de Sebastião Vila Nova no livro a realidade Social da Ficção, quando diz: “ De fato, não pretendemos mais que realizar um exercício de análise sociológica a partir do universo da ficção de uma obra literária. Isto implica que, de antemão, já definimos o universo da pesquisa, ou seja, que não recorremos a fontes históricas que confirmem ou não a fidedignidade dos dados do romance, enquanto possível retrato de uma dada sociedade – a sociedade de Ilhéus em meados do anos vinte –, embora reconheçamos o caráter necessariamente complementar da obra de ficção como fonte de informação sociológica, em relação a outros tipos de dados já consagrados na pesquisa social.” (VILA NOVA, 2005, p.63).

Excurso

57

57. Este texto foi inspirado inicialmente em um artigo de Luciano Oliveira, publicado no blog Que Cazzo!, no qual o professor faz uma reflexão sobre como sua experiência francesa o havia ajudado a pensar criticamente sua relação com a cultura brasileira. O link do site se encontra devidamente indicado na bibliografia da tese.