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Miceli: um modelo de sociologia dos intelectuais-escritores sem medo da sociologia

PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 1. Sociologias da literatura

2. Miceli: um modelo de sociologia dos intelectuais-escritores sem medo da sociologia

Em parte contra a preponderância dos estudos formais, a sociologia dos

intelectuais exercida por Sergio Miceli entrou no contexto brasileiro lidando com uma perspectiva crítica até então pouco conhecida no Brasil. Nesse sentido, é preciso lembrar não só que nenhum trabalho se faz em um vácuo bibliográfico, mas também que nenhuma bibliografia performa por si só um modelo de leitura sociológico do mundo.

Por um lado, a tese que se lê é um esforço de adensamento empírico de uma perspectiva da sociologia crítica hoje em amplo desenvolvimento no Brasil e que também quer ser uma sociologia crítica em desenvolvimento12. Seguimos,

sim, as pistas lançadas por Sergio Miceli que, em seu Intelectuais à Brasileira13,

deu contorno específico às trajetórias intelectuais dos romancistas da época ao analisar, entre outras coisas importantes, a estrutura do mercado editorial do período, fazendo uma sociologia dos intelectuais e dos escritores sem medo de ser sociológica, ou seja, sem medo de utilizar informações não presentes nas obras propriamente ditas dos autores para buscar inteligibilidade para essas mesmas obras. E, se consideramos que uma teoria sociológica é no seu cerne um universo mais ou menos coerente de problemas-soluções articulados, então é preciso, para fazer progredir o conhecimento quisto como sociológico, confrontá-los com novos estudos, novos exames, para só assim, quem sabe, transpô-los e superá-los, descobrindo seus limites de validade e seu espaço de pertinência (se é válido apenas no contexto em que foi aplicado ou se pode ser estendido a outros).

Dessa forma, além de instrumentalizar os passos da sociologia de Miceli,

vislumbramos outros caminhos, agora pautados numa sociologia atenta a outras escalas de análise, o que leva necessariamente a uma pormenorização dos avanços feitos nas análises já feitas por ele. Antes mesmo de adentrar nesse trabalho de minúcia sociológica aplicada à sociologia da literatura propriamente dita, faz-se

12. Além da perspectiva de Sérgio Miceli, citamos alguns exemplos de trabalhos críticos recentes que apontam talvez para uma nova safra de autores mais voltados para a reconstrução histórica das obras literárias no sentido aqui posto. Destacamos a tese de doutorado de Ieda Lebensztayn Graciliano ramos

e a novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis (LEBENSZTAYN, 2009); o magnífico

Machado de assis Historiador de Sidney Chalhoub (CHALHOUB, 2003) e o artigo de Alfredo Cesar Melo

(a ser publicado) sobre o hibridismo na obra de Gilberto Freyre em que analisa a recepção de intelectuais cabo-verdianos a Casa Grande e Senzala.

13. Atemo-nos sobretudo ao texto “Poder, sexo e letras na República Velha: estudo clínico dos anatolianos” (MICELI, 2001a) e, do mesmo livro, ao texto “Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945)”.

necessário ainda percorrer e dar volume a algumas teses levantadas por Miceli para acompanhar a construção de nossa problemática, caracterizando assim o ponto de vista sociológico adotado. Na verdade, mostrando as razões pelas quais alguns problemas tratados por ele ainda não foram confirmados por análises empíricas de recorte mais específico, encontramos caminhos para valorizar-lhe o recorte e justificar o novo foco.

Depois de analisar e descrever o cenário do mercado editorial, que crescia a olhos vistos nas duas principais cidades do país (Rio e São Paulo), Miceli nos diz o seguinte sobre as características do contexto que produziu Graciliano Ramos:

Não é de se estranhar, portanto, que a “carreira” de romancista tenha se

configurado em sua plenitude apenas na década de 1930, num momento em que o

desenvolvimento do mercado do livro se alicerçava na literatura de ficção, então o gênero de maior aceitação e de comercialização mais segura. Os escritores que então investiram nesse gênero desde o começo de suas carreiras eram, em sua maioria, letrados da província que estavam afastados dos centros da vida intelectual e literária,

autodidatas impregnados pelas novas formas narrativas e em voga no mercado internacional e que não dispunham dos recursos e meios técnicos a essa altura

necessários aos que tivessem pretensões de sobressair na prática dos gêneros de maior prestígio da época (poesia e crítica literária). (MICELI, 2001a, p.159). (Meus itálicos).

A descrição acima capta bem a ideia geral segundo a qual a aptidão ao romance era tributária da posição periférica dos romancistas, o que em parte explicaria o “regionalismo” dos principais autores do romance social dos anos 1930. O que buscava o sociólogo uspiano era uma argumentação mais genérica, que explicasse a tendência que conjuga as forças sociais funcionando nas linhas diretrizes que operavam matizando as escolhas individuais e tornavam-se elementos importantes para a explicação sociológica da posição dos agentes entre si, mas também de suas respectivas posições no universo intelectual da época. Eis um tipo de sociologia que, como veremos, num dado momento vai estranhar-se com a sociologia proposta por Antonio Candido, justamente por não fazer concessões a despistamentos formais de qualquer gênero.

Nessa linha de análise, encontram-se relacionados – mas em certo sentido de maneira ainda superficial, porque os traços de socialização utilizados na explicação são genéricos em demasia – a produção intelectual específica (o romance) e o tipo de acesso à cultura (o modo de apropriação dos bens culturais realizado pelos agentes). Este último, captado pela leitura das estratégias de uso do capital cultural específico, gerado pela posição decorrente de um processo de assimilação

intelectual (“impregnados pelas novas formas narrativas e em voga no mercado internacional”).

Percebemos que nessa perspectiva se encontra sugerida uma série plausível de explicações sobre as injunções que levaram os romancistas a um trabalho literário de tipo específico no qual tiveram oportunidade de, nas palavras do próprio Miceli, “objetivar suas experiências do mundo social por meio do trabalho literário” (MICELI, 2001a, p.160). Chegamos aqui a um primeiro ponto importante para explicitação: se se quer dar volume empírico a uma leitura sociológica já empreendida por Miceli, prentendemos, por exemplo, colocar em ação a mesma linha de análise para responder a perguntas como esta:

Quais seriam, pois, os fatores capazes de explicar, mediados antes de tudo pelas

disposições culturais que foram adquirindo desde a primeira infância, o fato de estarem em condições de produzir uma reconstrução do mundo social – no caso, o romance – que se pautava por exigências mínimas de objetividade de que estavam dispensados outros gêneros literários? (MICELI, 2001a, p.160).

Eis uma pergunta que abre horizontes analíticos ao discretamente criticar os princípios de análise contidos em formas mais estanques de conceber a produção intelectual, pois

convém salientar as condições sociais que contribuíram de modo decisivo para as

estratégias de reconversão a que recorreram os romancistas e que lhes permitiram se apropriar em chaves do mundo social que se viram colocados à margem da classe dirigente (MICELI, 2001a, p.161).

Miceli tenta realizar na prática da pesquisa a articulação, de forte valor explicativo, entre habitus (“mediados antes de tudo pelas disposições culturais que foram adquirindo desde a primeira infância”), capital específico (“condições sociais que contribuíram de modo decisivo para as estratégias de reconversão a que recorreram os romancistas e que lhes permitiram se apropriar em chaves do mundo social”) e campo (“chaves do mundo social que se viram colocados à margem da classe dirigente”).

Percebamos o seguinte na relação entre o projeto teórico e a prática analítica efetiva realizada por Miceli: elementos analíticos de socialização e estruturais aparecem no enunciado teórico e depois reaparecem na análise propriamente dita, ora

enfocando a socialização, entendida como análise de como as disposições culturais foram adquiridas desde a primeira infância, ora enfatizando a estrutura do social,

largamente estudada pela análise das posições sociais dentro de uma fração social em sua relação com as estratégias de reconversão.

É visível que Miceli efetua algo em seu procedimento que o aproxima de uma sociologia na escala individual, que mantém contato direto com as ideias de habitus e campo, mas que evita sua aplicação esquemática ao material sobre o qual se debruça. A partir disso, podemos inferir que, para ele, analisar apenas as ideias dos intelectuais não constitui um procedimento seguro, que possibilite por si só uma explicação exaustiva das suas trajetórias como processos temporais de construção de um habitus, por exemplo. Miceli antecipava de maneira criativa o uso de uma sociologia mais atenta ao social no indivíduo, hoje trabalhada de forma sistemática na França por Bernard Lahire (LAHIRE,1998, 2002, 2004).

Dito de outra maneira: as implicações teóricas contidas numa explicação que vise a captar de maneira concreta o externo feito interno em sentido propriamente sociológico (a sociedade feita indivíduo para falar como Durkheim, ou a sociedade feita texto como na análise da redução estrutural à Candido), como no estudo feito por Miceli, são muito rentáveis do ponto de vista sociológico, porque indicam, por contraponto, a escala específica do sociológico na análise que se quer adotar. Dito isso, podemos então avaliar melhor as ideias que seguem. Existem dois procedimentos que não são tratados com a mesma ênfase devido à natureza do objeto dissecado por Miceli, a saber: as memórias e as biografias dos intelectuais. Temos, de um lado, a preocupação com uma sociologia da socialização dos escritores e, de outro, uma sociologia mais estrutural, preocupada com a

configuração de universos e subuniversos sociais presentes na vontade de, como já dito, “salientar as condições sociais que contribuíram de modo decisivo para as estratégias de reconversão a que recorreram os romancistas e que lhes permitiram se apropriar em chaves do mundo social que se viram colocados à margem da classe dominante” (MICELI, 2001a, p.161).

Percebemos que, na análise de Miceli, Graciliano Ramos aparece identificado como um dos que “só puderam conservar suas posições no mercado graças à boa acolhida do público e da crítica, e não apenas como resultado de sua atuação política ou de momentâneas sintonias doutrinárias” (MICELI, 2001a, p.162). O que parece, então, limitado para conceber de maneira mais exaustiva a relação entre socialização e criação literária é o volume de informações sobre o processo concreto de socialização (ver reprodução da tabela elaborada por Miceli nos anexos). Com o pequeno volume de informação sobre um autor, não se consegue aprofundar-se na análise sobre o processo de incorporação das disposições, ou seja, sobre como os

modos de aprendizados concretos, os conteúdos sendo incorporados, contribuem ou não para a realização da obra, seu processo criativo. Miceli explica bem o porquê do direcionamento dos agentes às carreiras intelectuais, o que é o seu objetivo, mas não o significado específico que as obras receberam em função das marcas de socialização profundamente enraizadas nesses agentes, o que tentaremos fazer na segunda parte desta tese.

Isso acontece porque o estudo sobre as disposições do autor prescinde de depuração na análise de dados ao mesmo tempo mais abrangentes e mais específicos, que só um estudo de caso possibilitaria. Através de uma análise mais monográfica, centrada num só autor, torna-se possível identificar significados sociais embutidos nas práticas de classificação intelectuais das mais corriqueiras naquele momento, que ficariam sempre e necessariamente à margem numa explicação de caráter mais amplo, como a de Miceli, que abarcava um número importante de autores e que, por isso, selecionou apenas categorias de socialização pertinentes às escolhas de trajetória que interessavam ao seu estudo.

Feito esse recorte, já é possível defender que queremos dar conta, como pede a teoria, em contato com material empírico adequado, do fenômeno da construção do prestígio e legitimidade de uma literatura que ganhava força e vigor, naquele contexto (o descrito por Miceli), com a análise da sociologia implícita na obra, expressa nos esquemas de inteligibilidade encontrados nos romances, ou seja, na prática de “objetivar suas experiência do mundo social por meio do trabalho literário”; e fora da obra, no ambiente intelectual mesmo, descrito pela maneira como críticos também usavam esses esquemas implícitos de inteligibilidade para ler e avaliar o valor literário dessas obras.

Em outras palavras, a ideia de sociologia implícita será utilizada para captar o uso relativamente sistemático, por parte de Graciliano Ramos, de esquemas de interpretação sociológicos como recurso literário específico. Porém, basta a análise da documentação do arquivo, central no presente estudo, e logo verificamos que a leitura da sociologia implícita nos romances do autor de Vidas Secas está aliada a uma preocupação histórica, recuperando parte da recepção crítica da obra, que assim se desdobra, ajudando a entender outros aspectos da vida intelectual daquele período. A sociologia implícita aparece como fenômeno por meio do qual identificamos uma série de procedimentos por parte do romancista nos informando de sua prática de produção literária e apreensão da realidade. Ela esclarece também alguns aspectos da configuração do espaço de disputas onde o que parece estar realmente em jogo só aparece na medida em que os conhecimentos implícitos contidos na recepção crítica das obras são postos em evidência.