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PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 2. São Bernardo �����������������������������������������������������������������������������������������

1. Elementos de abertura

A um leitor desatento desta tese pode parecer estranho o fato de ela não abordar de forma direta e sistemática obras como angústia e Vidas Secas, consideradas, junto a São Bernardo, trabalhos tidos como primorosos do ponto de vista formal pela crítica. angústia, de maneira ainda mais evidente que Vidas Secas, por ter sido escrito em primeira pessoa e por conter claramente aspectos temáticos de construção narrativa como as que destacamos em Caetés e São Bernardo, “cairia como uma luva” para o estudo de reflexividade feito por nós durante a segunda parte deste trabalho.

O leitor atento, porém, deve ter percebido que o processo de elaboração e construção do objeto de estudo seguiu um procedimento específico: através do laborioso exercício, agora praticamente invisível, de investigação dos recortes de jornais presentes nas pastas do AGR, em que se impuseram, pelo volume e pelas marcas sociológicas identificadas, as pastas que recobriam a recepção dos dois primeiros romances de Graciano Ramos. Não nos coube fazer uma análise de angústia pela simples razão, coerente com o nosso propósito, de não termos podido avaliar de maneira sistemática, por questões de tempo geradas pela própria organização dessas pastas no arquivo, o conteúdo completo dos recortes guardados, como fizemos com Caetés e São Bernardo. Além disso, uma vasta documentação estudada dos recortes teve que ser descartada do corpo do trabalho por razões semelhantes.

Lida dessa forma, a tese articula de maneira coerente o trabalho sociológico de análise dos documentos históricos, sobretudo dos recortes, com um trabalho

posterior que se desdobrou, por conta disso, em dois sentidos: a afinação da ideia de sociologia implícita e o diálogo crítico com a crítica literária.

O impacto da relação com AGR pode ser sentido, assim, em toda a estrutura da tese que se modulou em função da perspectiva histórica que foi movida pela análise da documentação sobre Caetés e São Bernardo.

É importante ressaltar, também, que a análise dos romances foi feita em momentos distintos. O estudo sobre São Bernardo realizado através da análise das disposições múltiplas de seus personagens, foi bem anterior ao estudo que fizemos sobre as relações entre biografia sociologicamente enquadrada e a obra mesma. Daí a análise sobre Caetés, última a ser realizada no trabalho a partir do ponto de vista cronológico, ter despertado uma sensibilidade mais aguçada e intensa entre vida do escritor e elementos do romance, entrelaçando com mais clareza os aspectos da reflexividade de Graciliano, tal como usada por ele na construção da verossimilhança social de seu romance de estreia.

Podemos, assim, por conta disso, agora antever diversas perspectivas de abertura para um trabalho que foi, a nosso entender, em certo sentido, de desbravamento. Desbravamento de uma trajetória e de uma obra que ainda precisam de

aprofundamento sociológico, pois o detalhamento e o trabalho de cruzamento de dados históricos podem revelar falsos mistérios que seriam postos em evidência pela multiplicação de análises e informações mais precisas acerca da formação, modos de aprendizado e aquisição do capital cultural de Graciliano Ramos e de sua época. Outros pontos mereceriam destaque como elemento de abertura deixado pelo trabalho crítico realizado: em contraste com outras análises da obra de Graciliano Ramos, percebemos que a questão da escolha narrativa pode ter forte laço com a trajetória específica do autor lida por um viés sociológico. Como não perceber, por exemplo, que os livros escritos em primeira pessoa foram produzidos em momentos em que o escritor, pelas características por nós assinaladas, não tinha plena confiança em seu talento, também pela falta de reconhecimento ainda não conferido por um processo de legitimação no meio intelectual de sua época? Por outro lado, como não notar que o primeiro romance a ser escrito em terceira pessoa, Vidas Secas, foi também o primeiro a ser escrito após a sua saída da prisão e do processo acelerado de consagração que o autor sofreu com a publicação de angústia, livro publicado durante o cárcere? Pela primeira vez, usando intensivamente do discurso indireto livre, Graciliano se permitiria problematizar a temática da comunicabilidade (já trabalhada de maneira específica nos dois

primeiros romances) de seres embrutecidos como Fabiano e Sinhá Vitória: como dar a fala a seres que não detêm as competências para seu uso? É interessante perceber que é o primeiro e último romance de Graciliano que ele escreve como escritor relativamente profissional. Teria sido por isso que ele assume as condições de falar em nome de outros, que ele se autoriza a falar sobre esse outro?

São questões a serem trabalhadas em função de análises concretas que consigam articular, sem causar reducionismo ou determinismo de cunho biográfico, o emaranhado de elementos que ajudam a entender a feitura de um texto literário. Um outro elemento de abertura que nos pareceu fecundo diz respeito a teses mais específicas, de cunho mais delimitado, como o diálogo estabelecido durante toda a tese com a crítica literária.

Ao verificar o uso sistemático por parte de Graciliano Ramos de suas reminiscências de infância e juventude em suas primeiras obras ficcionais, percebemos que também nesse aspecto nossa análise está de alguma forma se contrapondo à análise a nosso ver teleológica realizada por Antonio Candido em Ficção e Confissão, quando

defende que Graciliano Ramos faz uma passagem gradual e necessária da ficção em direção ao relato confessional. Nosso argumento parece, nesse sentido, mostrar que Graciliano está o tempo todo, mesmo na sua obra ficcional, se reportando a si mesmo, e isso desde o primeiro romance, o que nos faz pensar uma relação mais complexa do que a de um caminho gradual da obra de ficção até a confissão.