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Campo intelectual, crítica e a visão histórica

PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 4. Dificuldades da análise e descobertas oriundas do contato com o material

2. Graciliano: as inseguranças de um “escritor sem obras”

2.2. Campo intelectual, crítica e a visão histórica

Não resta dúvida de que a publicação de Caetés em 1933 vai posicionar Graciliano Ramos no universo intelectual literário da época. Suas próprias palavras, em 1935, são testemunhas de uma polarização na qual ele assumia posição específica.

Era indispensável que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente. Hoje desapareceram os processos de pura criação literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação (...) seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão pra cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria (MORAES, 1992, p.68).

A dicotomia expressa pelo próprio Graciliano, quando se posiciona entre um eles, os que fazem literatura lá nos grandes centros, e um nós, romancistas do Nordeste, pode ter alimentado toda uma vertente de leituras críticas em que, até nossos dias, convencionou-se separar esquematicamente a produção da época em duas grandes linhas: romance social, de um lado, e romance de introspecção, de outro.

A história da literatura, contudo, tem meandros e complexidades que as dicotomias mais aparentes, mesmo as assumidas pelos agentes, não revelam de imediato.

Assim, em seu Uma História do romance de 30, Luís Bueno defende que o romance de 30 não pode ser visto como um aglomerado mais ou menos confuso de autores, divisível apenas pelos dois grandes grupos que a tradição crítica instaurou: os

regionalistas e os intimistas. O autor analisa o período a partir de uma leitura mais abrangente do que a convencional, na tentativa de se dar os meios para alavancar uma visão mais dinâmica e mais condizente com a realidade da produção da época. O livro de Bueno foi organizado em duas partes nítidas: a primeira deu conta da contextualização histórica do romance de 30; a segunda analisa a obra de quatro autores do período histórico em questão. Dessa forma, a articulação interna do trabalho se dá na medida em que ele justifica a escolha dos autores:

Depois de visto esse movimento geral [ele se refere à parte de contextualização

histórica] a atenção se volta para quatro autores específicos – Cornélio Penna, Dyonélio Machado, Cyro dos Anjos e Graciliano Ramos –, escolhidos em função não apenas do julgamento de que representam o melhor da produção do período, mas também porque, respondendo sistematicamente ao debate, em geral simplificador, que a polarização ideológica instaurou, souberam ultrapassá-lo de forma a construir um

painel sintético e problematizador do próprio romance de 30” (BUENO, 2006, p. 16) (Meus itálicos).

A visão de Bueno não chega a romper com a visão da crítica literária na medida em que aceita o mote analítico em voga: “o julgamento de que representam o melhor da produção do período”. Articula, porém, de maneira mais ampla a visão histórica, porque na medida em que ela se preocupa com o campo intelectual, consegue justificar a razão pela qual os autores foram escolhidos. Na verdade, quando a perspectiva da escolha é justificada pelo fato de os autores selecionados responderem “sistematicamente ao debate”, Bueno está considerando a importância deles devido ao fato de eles participarem do campo intelectual de maneira intensa e orgânica.

Ele critica, portanto, aquilo que ele chamou de “tradição da divisão” que teria enraizamento histórico na polarização do pós-guerra. Em seu argumento propriamente histórico, é forte a presença de uma reflexão sobre a relação entre a polarização política e a divisão literária. A partir dela nós entendemos melhor o alcance analítico do trabalho de Bueno ao qual recorremos para avaliar Caetés:

Pode parecer banal repetir isso tudo [Bueno fala da constatação do engajamento dos escritores em relação à realidade política], que já foi formulado longamente por João Luiz Lafetá e Antonio Candido, por exemplo. Entretanto, o que se quer enfatizar aqui não é a ocorrência em si dessa polarização ou o processo de engajamento pelo qual a intelectualidade brasileira passou nos anos 30, mas sim quanto a idéia de uma

produção romanesca dividida em duas correntes tão impermeáveis entre si tem sua origem numa realidade anterior ao exame das obras elas mesmas. (BUENO, 2006, p.36). (Meus itálicos).

O ponto central do papel excercido pelo historiado nessa perspectiva é o seguinte: a clivagem bipolar que dividia as visões de literatura naquele período tinha chão na realidade histórica “anterior [ao exame] [d]as obras elas mesmas”. Mais uma vez nos confrontamos com uma pergunta que se torna recorrente do ponto de vista histórico: como poderia a sociologia das obras dar conta de algo que só é inteligível na medida em que carece de informações sobre uma “realidade anterior ao exame das obras elas mesmas”? O que Bueno procura precisamente é reler os pressupostos da crítica do passado, para voltar a eles com mais propriedade. É isso que ele tenta fazer quando cita a opinião de Mário de Andrade que, também segundo ele, sintetiza o gosto da crítica pelo “conteúdo” da literatura.

O caso da literatura é por certo muito complexo porque nele a beleza se prende imediatamente ao assunto e com isso não há mais barreiras para o confusionismo. Se em pintura um crítico se preocupar exclusivamente com os problemas da forma, nenhum pintor se revoltará; e o mesmo acontece com as outras artes plásticas e a música. [...]

Em literatura o problema se complica tremendamente porque o seu próprio material, a palavra, já começa por ser um valor impuro [...]. E assim, a literatura vive em freqüente descaminho porque o material que utiliza leva menos para a beleza do que para os interesses do assunto. E este ameaça se confundir com a beleza e se trocar por ela. Centenas de vezes tenho observado pessoas que lêem setecentas páginas num dia, valorizam um poema por causa do sentido social de um verso, ou indiferentemente pegam qualquer tradução de um Goethe para ler. Que o assunto seja, principalmente em literatura, um elemento de beleza, eu não chego a negar, apenas desejo que ele represente realmente uma mensagem como na obra de Castro Alves. Quero dizer: que seja efetivamente um valor crítico, uma nova síntese que nos dê um sentido de vida, um aspecto do essencial. (BUENO, 2006, p.39).

Bueno acrescenta algo mais a essas palavras de Mário de Andrade, o que torna ambíguo o propósito do historiador:

O que preocupa Mário de Andrade é o comportamento generalizado da década de se valorizar ou não as obras exclusivamente pelo tema de que tratam ou, pior ainda, pela posição assumida pelo seu autor. Não se trata, é evidente, de uma proposta para que os escritores tomem de volta o elevador até o topo das torres de marfim. É muito mais a percepção de que há algo que conta em literatura além do ‘assunto’, ou do ‘problema’, de que criticar um autor da ‘esquerda’ não é necessariamente adesão à ‘direita’ ou o contrário. Por conseqüência, é a denúncia do fato de que olhar tão atentamente para aspectos que, em certa medida, não dependem do livro em si, pode causar muito desentendimento. (BUENO, 2006, p.39-40).

Podemos inferir do argumento de Bueno que Mário de Andrade está, assim como Candido, voltando-se contra uma leitura típica daquela época que, em certo sentido, era também a dele. É possível dizer ser evidente que tal clivagem interessa por ilustrar o limite de tal divisão, sempre feita a partir dos critérios de leitura concretamente adotados. Isso torna clara a importância para crítica naquele momento de se distanciar desses parâmetros, a fim de encontrar seu equilíbrio e autonomia em outra parte.

Para uma disciplina que tem vínculo oficial com a “documentação dos fatos”, como a sociologia, porém, o caráter “problemático” dessa valorização pelo conteúdo, gerada pela clivagem das formas de produzir literatura, tem valor de emblema a ser devidamente estudado, já que boa parte da literatura de então também estava trabalhando com o desejo de ser também “documentação dos fatos”. A relação íntima descrita por Bueno, assim também como por Antonio Candido, caracteriza uma “função” vinculada às maneiras de fazer e perceber a literatura que a

Isso, que depois se perdeu, queremos recuperar agora a partir de outra perspectiva, fazendo da biografia sociologicamente informada um elemento a ser levado

em conta na leitura das obras. O problema é que aquela dicotomia descrita e assumida pelos escritores entre romance do Nordeste (romance social) e romance introspectivo (de cunho mais psicológico) pode ser lida apressadamente como indício de uma disputa que caracterizaria as posições em um campo literário relativamente autônomo. Isso porque a existência de tomadas de posição pode ser considerada um fator relevante que indica a presença de um campo simbólico, em que a forma e o conteúdo dos embates caracterizam disputas pelo direito à legitimidade de tal ou qual discurso dentro do universo literário (BOURDIEU, 1988).

É preciso, porém, que a precaução com a teoria já engendrada seja reativada. Nesse sentido, podemos lembrar novamente a entrevista dada por Sergio Miceli, agora com outro propósito – por ele ser figura, por assim dizer, pouco suspeita para falar sobre o uso da noção de campo nesse contexto da década de 1930. Falando sobre a influência de Bourdieu na sua tese de doutoramento, Miceli avalia que

[...] muitos dos conceitos que ele [Miceli, fala a respeito de Bourdieu] usava, na época, inclusive a ideia de campo, eram pouco aplicáveis no Brasil. Não havia a rigor aqui um campo intelectual, o qual precisa de adensamento. (BASTOS, 2006, p.231)

De fato, ao observarmos com mais atenção o material biográfico de Graciliano Ramos, constatamos que a utilização da ideia de campo para o contexto brasileiro precisa ser feita com muito cuidado. Percebemos, por exemplo, que é preciso identificar o que significa, dentro de um universo ou subuniverso de produção literária o esforço descentrado do autor de Caetés, porque não podemos esquecer que ele se dá, em certa medida, de fora para o centro da produção cultural do país. Para entender como Graciliano entrou no universo literário brasileiro, ainda é preciso avaliar como se realizou também o processo social de legitimação e reconhecimento dele e de sua obra, trabalho ainda não realizado pela tradição sociológica e apenas esboçado nesta tese.

Percebemos, em sua biografia, porém, que Graciliano efetua um verdadeiro

desajuste, um deslocamento (a ida do autor para Rio), no sentido real e simbólico, quando entra no cenário literário brasileiro. Isso porque a obra de Graciliano Ramos que, segundo ele próprio, só era possível porque produzida na margem da produção cultural – conforme podemor ver em “era indispensável que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente” (MORAES, 1992, p.68) – só se tornaria uma

grande obra, e o jovem Graciliano sabia disso, quando ela fosse devidamente aceita e reconhecida pelos círculos intelectuais no Rio de Janeiro.

Nesse sentido essa reflexão teórica sobre Caetés se relaciona diretamente com o que foi dito na primeira parte desta tese: temos um autor que entra no campo literário brasileiro com a publicação de Caetés, mas o faz de forma ainda a ser caracterizada. Ao nos concentramos nas características da entrada do romance Caetés no universo intelectual brasileiro, sobretudo no carioca, percebemos a importância, por exemplo, das relações de amizade de Graciliano Ramos, no trabalho coletivo que forjou o reconhecimento de sua obra43.

Se voltarmos à questão teórica do campo literário, tendo presente as considerações acima registradas, identificamos com mais facilidade a precariedade do campo nas maneiras de agir e nas condições de trabalho do próprio escritor. Temos um romancista que, de acordo com as informações biográficas, produziu boa parte da obra fora do campo literário. Percebemos, olhando por esse ângulo, que Graciliano não escreveu seus livros para responder a essa ou aquela maneira de escrever

romances dados em seu tempo, mas, para dar resposta a questões existenciais suas, como veremos mais adiante.

Não podemos negar esses elementos biográficos que deram contorno, junto à precariedade de suas condições concretas de trabalho intelectual, à sua obra. Negar isso seria forçar uma explicação da literatura de Graciliano por meio de uma teoria que considera o campo literário como entidade já relativamente autônoma da produção literária, como se o único critério explicativo das obras, em quaisquer contextos, devesse considerar como mote explicativo do texto literário apenas sua a posição quanto aos tipos de romance sociais já existentes, ou em relação aos outros de tipos de produção literária da época.

Tomemos como exemplo dessa perspectiva, um artigo recentemente publicado pela revista do IEB sobre Caetés. Nele, lê-se que

À parte o desencanto dessa autocrítica — aliás, Graciliano foi talvez o leitor mais severo de si mesmo —, convém retirar dela dois comentários para a nossa reflexão: primeiro, as leituras juvenis, que se nutriam de românticos e naturalistas, causaram-lhe grande estímulo a princípio, porém o senso maduro aos poucos o impelia a idear “modelos maiores”, os quais intentariam provavelmente vencer os limites das referidas escolas,

43. Muitos intelectuais amigos de Graciliano leram os originais e o resenharam em alguns veículos importantes, gerando expectativa que se prolongaria por alguns anos devido o atraso gerado aparentemente pela perda temporária dos originais pelo primeiro editor, Augusto Frederico Schmidt.

de maneira a representar melhor as tensões — isto é, impõe-se ao literato em esboço a necessidade de superar a tradição, movê-la por meio de um empenho aproximativo aos contornos do momento. (GIMENEZ, 2008 p.165).

Não desprezamos a ideia segundo a qual Graciliano Ramos tenha de algum modo empreendido um diálogo com a tradição, porém consideramos que, sem atribuir a devida relevância aos elementos fundamentais sobre às condições de sua produção, não é possível perceber, como queremos revelar, que o espaço social denominado campo intelectual, naquele contexto, não encerra o complexo espectro das

experiências que encarnam e produzem o autor e sua obra44.

Vistos dessa maneira, os romances reaparecem com outra conotação e a pergunta novamente reaparece: como e por que Caetés foi realmente escrito? E alguns

elementos para respondê-la precisam ser retirados de um universo mais amplo que o das influências intelectuais e literária que marcaram Graciliano Ramos.

44. Estudo nesse sentido foi publicado recentemente sobre Franz Kafka. Bernard Lahire realizou uma pesquisa recente em que formula interessante crítica à noção de campo intelectual tomando como caso a obra e vida de Franz Kafka. Lahire utiliza a sociologia do indivíduo para explicar as razões sociais pelas quais Kafka escreveu o que escreveu da maneira como escreveu. Os dados biográficos são utilizados para recuperar o universo de socialização do autor e tonar inteligível um universo aparentemente hermético como é o da literatura kafikiana ( LAHIRE, 2010).