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São Bernardo: ou quando era possível pensar Paulo Honório como erro de técnica

PARte I: PoR umA SocIoLogIA dA LIteRAtuRA no BRASIL

capítulo 3. Análises

3. São Bernardo: ou quando era possível pensar Paulo Honório como erro de técnica

A recepção imediata de São Bernardo caracteriza, talvez de forma ainda mais convincente, a constelação de leitores conduzidos pela vontade de ver a descrição do mundo social quando liam o texto literário.

Logo encontramos num artigo da época a identificação de um suposto problema de verossimilhança, famoso na referida obra, que nos parece adequado para explicitar e enfatizar nosso argumento. José Bezerra Gomes, por exemplo, escreveu o seguinte comentário sobre São Bernardo para a Folha de Minas:

Aquele capítulo em que Paulo Honório vai à casa de dona Glória pedir Madalena em casamento, é um, é uma prova. [o autor se refere a um artificialismo supostamente ainda presente na obra de Graciliano]. Assim também é aquela revolução que vem já no fim de S� Bernardo. A gente vê logo que foi coisa inventada pelo autor. E finalmente isso que o poeta Schmidt notou naquela crítica que fez dele no “Diário de Notícias”: sendo um homem inteiramente inculto e bárbaro, prático e utilitário, é absurdo que Paulo Honório tenha a idéia de fazer ele mesmo da sua vida um romance.” (GOMES, 1935)31

O comentário de Bezerra Gomes é extremamente relevante porque revela uma demanda de coerência social que exige de um personagem de romance um comportamento social igual ao de um indivíduo inserido em uma sociedade tida também como real. O que Bezerra Gomes faz é acusar o livro de um contrassenso: como pode um trabalhador braçal fazer literatura, como é possível um homem pragmático escrever um texto literário? De que mundo Graciliano tirou essa ideia? O tom dessa demanda é ainda mais explícito no comentário de Schmidt ao qual Bezerra Gomes fizera alusão. Vejamo-lo:

O processo de romance do S� Bernardo, tem, a meu ver, alguns defeitos dos quais o principal é a forma por que o autor nos conta a sua história, fazendo com que o seu personagem, de um momento para o outro, tenha a absurda idéia de fazer da sua vida um romance, ele, um ser inteiramente inculto e bárbaro, prático e utilitário. Acho isso, positivamente, arbitrário, e em flagrante contraste com o equilíbrio psychológico em que o livro transcorre todo. Pelo modo de tratar o assunto, S� Bernardo recorda vagamente o Le noeud de Vipères, de François Mauriac. Neste romance é o próprio personagem também o autor de sua história mas em forma de confissão. Aí, porém, trata-se de um velho advogado, com inclinações longínquas pela literatura, e com

31. Pasta 5 - São Bernardo: matérias extraídas de periódicos, José Bezerra Gomes, documento sem número.

uma série de problemas interiores a resolver, dotado de outra complexidade na sua surpresa, e com outras tonalidades trágicas no seu egoísmo, que o Paulo Honório, de

S� Bernardo, não tem. (SCHMIDT, 1934) 32

Essa crítica de Augusto Frederico Schmidt revela, com mais força, a importância da verossimilhaça para a construção da narrativa e dos tipos sociais presentes numa obra romanesca para os leitores de São Bernardo. Elucida, também, de forma talvez ideal-típica, essa maneira de ler romances, em que um realismo específico é cobrado pela expectativa do verossímil romanesco. O que se pede é a verossimilhaça

sociológica, isto é, que os personagens ajam e reajam conforme as exigências do percebido como natural no mundo social. Esse texto de Schmidt é uma síntese de toda uma reflexão acerca da maneira de se pensar sobre o romance social e sua função, levando em conta uma expectativa mais geral dos leitores da época. O que encontramos nessas opiniões é uma sociologia intuitiva por meio da qual o sociólogo identifica uma série de conhecimentos tácitos sobre lógicas sociais. Poderíamos caracterizar tais conhecimentos, necessários para se chegar aos recursos utilizados por Graciliano Ramos na criação da sua trama, nos termos de uma sociologia implícita. Ao condenar uma suposta incoerência do personagem Paulo Honório, essa crítica sinaliza, através de uma leitura distanciada, que

apreendia a obra de uma maneira que pressupunha os esquemas de inteligibilidade sociológica aos quais Graciliano deveria recorrer se quisesse criar com fidelidade seus personagens. Nesse sentido, São Bernardo estava sendo lido como livro que deveria ser avaliado por critérios mais socio-lógicos do que puramente artísticos.

Encontramos aqui um elemento gerador de confusão entre os registros literário e sociológico que o uso adequado da ideia de sociologia implícita pode ajudar a desfazer. Caso Graciliano Ramos use a sociologia de maneira implícita, ou seja, caso ele se sirva dos esquemas de inteligibilidade sociológica em função da elaboração da trama de seu romance e, dessa forma, faça com que a sociologia existente no seu texto exista menos como mecanismo de análise de uma realidade referencial – isto é, que deva ser verificada em confrontação com mundo exterior ao romance, como é feito na sociologia explícita – e mais como um instrumento que trabalhe a verdade do especificamente literário em seu romance, essa sociologia deve ser identificada, devido a seu conteúdo implícito, com a função de dar coerência sociológica à sociedade criada no texto.

32. Pasta 8 - Fortuna Crítica: Vidas Secas e Produção do Autor, Augusto Frederico Schmidt, documento número 79.

No bom uso da teminologia, não deixa de ser interessante e aparentemente paradoxal perceber que o caso literário torna-se “sociológico” na confusão de registro aqui evidenciada, na medida em que a coerência pretendida refere-se à possibilidade ou não de existir como modo de comportamento referente, ou seja, de existir na chamada “vida real”, exterior ao romance, o tipo de comportamento tal qual o de Paulo Honório. Nesse sentido, o que se procura no romancista é que a coerência produzida por ele no romance faça referência ao tipo de coerência ou à lógica existente no mundo social, tido ou percebido como real. Essa coerência em momento algum é regida ou pavimentada pela necessidade de verificação empírica, no sentido de averiguar se Paulo Honório existiu de verdade e se, existindo, tinha as características sociais as quais o escritor lhe atribuiu. É a partir dessa ótica que se pensa que um romance como São Bernardo deve elaborar uma experimentação sociológica. E o que se pede, implicitamente, é que seu autor faça sociologia, mesmo que em função de sua literatura, produzindo assim o que os críticos chamaram de efeito de real, caracterização dos artifícios literários do “realismo” existente na ficção.

Na tabela a seguir reproduzimos visualmente um panorama mais amplo desse tipo de leitura realizado pelos críticos que receberam a obra do romancista a partir desse referencialismo. Nela podemos ver que, levando em conta o tipo de “controle arquivístico” (forçadamente enviesado porque realizado pelo próprio Graciliano Ramos e sua família), os jornais em que primeiramente repercutiu a sua obra se concentravam no Rio de Janeiro e em Alagoas.

tabela 2 - Relação autor/abordagens referencialistas

Autores Jornais Data

Autores que referencializam a obra romanesca pela realidade social

Caetés São Bernardo

Agrippino Grieco o Jornal

o diário de Pernambuco

(Pernambuco) 4/2/1934 30/12/1934 X x

Augusto Frederico

Schmidt diário de notícias (Rio de Janeiro) 16/12/1934 x

Barreto de Araujo Sem Indicação 5/8/1935 x

Aurélio Buarque de Holanda Boletim de ariel (Rio de Janeiro) diário Carioca (Rio de Janeiro) 1934 1934 X Dias da Costa Literatura (Sem indicação) Jornal de alagoas (Alagoas) 20/6/1934 9/6/1935 X x

Diégues Júnior o estado 23/2/1934 X

Eloy Pontes o Globo 7/5/1934 X

G.P a noite 10/1/1935 x

Jorge Amado Literatura

Jornal de alagoas

Imprensa

Popular 5/12/1933 9/3/1934 X

José Geraldo Vieira Sem Indicação a nação

Jornal de

alagoas 4/2/1934 X

José Lins do Rego o estado Literatura 28/1/1934 5/2/1934 X Mário Marroquim Gazeta de alagoas 4/3/1934 X

Múcio Leão Jornal de alagoas 26/4/1935 x

Osório de Olivares Correio de Viçosa 4/3/1934 X

Peregrino Júnior Careta 14/9/1935

R.C Sem Indicação 8/11/1931 X

Rocha Filho Literatura 5/4/1934 X

Na tabela acima, devemos destacar o fato de estarem presentes apenas os autores dos artigos cujas datas de publicação puderam ser identificadas. Com esse critério de seleção “neutro”, os textos não ganham nem perdem importância pelo seu conteúdo. Isso faz a “amostra” de textos que se agrupam na categoria “autores que referencializam o romance pela realidade social” traduzir apenas um aspecto que poderíamos chamar de estrutural, devido ao modo de apreciar o romance de Graciliano naquele momento, já que tanto os que receberam bem como os que avaliaram negativamente as obras analisavam seus atributos procurando encontrar coerência ou a falta dela (nos personagens) a partir de uma comparação com casos tidos como reais no mundo histórico.

Na tabela seguinte se reagrupam trechos de comentários sintetizando o espírito dessa leitura cujo princípio era encontrar coerência social nas características das personagens romanescas.

tabela 3 - Amostras de argumetos refenrecialistas por autor

Autores Caetés São Bernardo

dias da costa

Há, nesse romance que fotografa toda uma sociedade, um grito de revolta que, infelizmente, poderia ser desferido com justiça tanto onde está o autor como em São Luis do Maranhão ou na Baía de Todos os Santos.

Pois bem, apesar dessas distâncias elas cabem todas dentro do romance, agindo e falando, sentindo e soffrendo, cada qual a seu modo, naturalmente, sem incoerências, podendo viver assim no livro, porque assim vivem na vida

Agrippino grieco

Difficilmente alguém se sairia tão bem da liquidação final de suas principais personagens. Exatamente como na vida besta que todos vivemos: o amor de João Valério e Luiza vem não se sabe como, vai-se não se sabe como.

O protagonista parece-nos muito lúcido, muito abundante em comentários, o que é estranhável em uma criatura de poucas letras, oriunda de ambiente agreste, não afinada pela leitura de psychólogos e romancistas introspectivos.

g.P

São Bernardo é um exemplo desse mal entendido apreço à independência mental. A exploração inicial do romance, que pretende ser engenhosa, parece- nos simplesmente ingênua. O autor, inculto, teria recorrido a outros companheiros, de mais puras letras, afim de lhe fixarem a narrativa sem a eiva ignorância. Desistira, no entanto, logo ao começo, por encontrar a narração preciosa. Escreve-a, então, ele mesmo, com a mão que presume innábil, rude, crassa.

Barreto de Araújo

S. Bernardo é bem a fotografia dum senhor rural nordestino. Quasi sempre rustico, a principio paupérrimo, explorado, depois com o desejo de explorar para subir, cumprindo e realizando sempre esta lei fatal da capilaridade social.

mucio Leão

No romance vemos também o ambiente de pequenas intrigas das cidades do interior brasileiro, cheias de competições políticas obedecendo a chefetes deshonestos e torpes. Em taes meios, os representantes da polícia e da justiça podem ser tomados como verdadeiros índices de mentalidade geral.

A. Frederico Schmidt

O processo de romance do S. Bernardo, tem, a meu ver, alguns defeitos dos quaes o principal é a forma por que o autor nos conta a sua história, fazendo com que o seu personagem, de um momento para o outro, tenha a absurda idéia de fazer da sua vida um romance, ele, um ser inteiramente inculto e bárbaro, prático e utilitário. Acho isso, positivamente, arbitrário, e em flagrante contraste com o equilibrio psychológico em que o livro transcorre todo.

osório de olivares

Como Paulo Prado, no Prefácio da Paulística, Graciliano Ramos podia dizer de seu “Cahetés” ‘este é um livro de estudos regionais’.

Para escrevê-lo, para torná-lo arte, ele não precisou ‘desfigurar inteiramente, a obra frágil e transitória da natureza’, como quer o autor de Personagens de Romance. Os seus typos são reais no livro como ele os viu.

mario marroquim

É a vida, é o aspecto humano do assumpto que precisa ser observado, ser fixado com segurança e com honestidade. [...] O escriptor preocupou-se com os typos, com a vida, com o aspecto real e humano de seus personagens.

capítulo 4. Dificuldades da