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O Outro como intérprete: o grito como apelo e a antecipação do desejo do sujeito

Capítulo 3 – Linguagem e alienação ao Outro

3.3 O Outro como intérprete: o grito como apelo e a antecipação do desejo do sujeito

Mas o que é Outro? Não é necessariamente a mãe biológica, ou o pequeno outro, já que essa tarefa pode ser realizada com igual eficácia por mãe substituta. O Outro deve estar presente como uma referência com certo grau de constância. “Essa referência estável é precisamente o que denominamos função da mãe...” (Cabas, 1982, p. 176). É imprescindível que esta função seja executada, pois é um emblema que dá alicerce a determinadas formações imaginárias, como vimos no segundo capítulo. Trata-se de um lugar, um lugar simbólico e, nesse sentido, anônimo.

com relação ao filho, o que ele representa para uma mãe (ou substituto), compõem esse campo do Outro no qual o infans já nasce inscrito. Essas formações imaginárias serão transmitidas à criança a partir da relação que se estabelece com ela desde o útero, na medida em que lhe seja concedido um lugar simbólico na economia psíquica do Outro, que haja um investimento libidinal particularmente endereçado àquele pequeno ser humano que se encontra em estado de desamparo. Tudo o que se passa na vontade, na libido desse Outro, é sempre marcado por um significante, o qual é introduzido no movimento natural do desejo.

O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. E eu disse – é do lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão.” (Lacan, 1964/1988, p. 193-194).

Aqui já se inscreve o lugar do Outro no campo da dinâmica pulsional, marcando o sujeito a partir da falta, pois, para que as pulsões parciais do infans se instaurem como representantes psíquicos da sexualidade, ele depende do significante e este está primeiro no campo do Outro. Vemos, então, que a relação entre o desamparo e sua contrapartida, a dependência do outro, inscreve o sujeito no registro do sentido e da linguagem. Por isso, é somente a partir desse movimento desejante, mobilizado pela falta constituinte do aparelho psíquico, a qual busca algum preenchimento a partir desse investimento no lugar simbólico atribuído à criança – o lugar do falo, do objeto imaginário que poderia preencher esta falta estrutural – que um sujeito pode advir, inserido na cultura, no campo do Outro. O sujeito, nesse sentido, engendra-se através de uma antecipação simbólica e imaginária, alienado ao Outro primordial. Ou seja, ele tem uma história prévia, uma pré-história que o constitui.

A falta primordial inerente ao psiquismo humano, tributária da prematuração biológica do homem, abre infinitas possibilidades de destinação da força pulsional, já que esta se dá a partir da interpretação que lhe confere o Outro, revestindo, assim, de sentido o corpo da criança e transpondo essa energia para o plano da representação. A dependência do outro que auxilia a criança, sem recursos, na primeira experiência de satisfação, é a engrenagem deste processo de subjetivação, no qual ela recebe do Outro os significantes, a matéria-prima de seu psiquismo. No bebê, quando a tensão interna aumenta, a “única maneira de pedir ajuda não é justamente um pedido, uma mensagem, mas um simples índice objetivo” (Laplanche, 1987, p. 104), como um grito, por exemplo, que a mãe ou seu substituto interpreta. A alteração interna, que se manifesta como uma agitação desordenada, uma pura descarga motora, é tudo o que a criança pode fazer no sentido de se livrar do excesso de tensão que gera desprazer.

Para Schneider (1993), o grito coincide com o momento fundante do desamparo, momento da constituição do sujeito. Ao atribuir sentido ao mal-estar da criança, que por ela mesma não poderia ser significado ou articulado, a alteridade promove sua inserção na lógica simbólica, dando-lhe um banho de palavras. Assim, o índice de modificação interna, a descarga motora da criança diante do desprazer, mesmo de início desprovido de valor de chamamento, media a troca com o outro, pois será decifrado por este último como expressão de uma necessidade: alimento ou companhia. “Quer queira, quer não, o fenômeno da descarga emocional se acha anexado ao circuito da comunicação, conferindo, inicialmente, uma finalidade significante a uma conduta que no começo era apenas involuntariamente expressiva.” (Schneider, 1993, p. 47).

Essa via de descarga adquire uma função secundária de extrema importância: a da compreensão mútua. O bebê sente e faz sentir, “arranca” do outro um movimento de sensibilidade. Assim, o espectador dessa descarga não é só testemunha, mas se insere no registro da excitação e de sua exteriorização ab-reativa. O Outro confere um sentido, exercendo uma ação decisiva sobre o desenvolvimento qualitativo da vida afetiva, na medida em que antecipa o desejo da criança, incutindo-lhe seus significantes. “A criança se verá infeliz, comediante, irresistivelmente engraçada, antes de ter tido a calma de procurar ser o quer que seja.” (Schneider, 1993, p. 47).

Dor (1989) assinala que as manifestações corporais da criança em estado de necessidade tomam imediatamente o valor de signos para o outro, para a mãe, que logo aprende a reconhecê-las como um pedido de ajuda, uma vez que entende que a criança está necessitando de algum tipo de satisfação das suas funções orgânicas. Para tentar aliviá-la, então, o outro precisa atribuir um sentido a essas manifestações que, de outra forma, não teriam sentido, pois não se pode dizer que a criança utilize-as para significar alguma coisa ao outro.

Ao nível da primeira experiência de satisfação, não existe nenhuma intencionalidade da criança no sentido de mobilizar o estado de seu corpo em manifestações que teriam valor de mensagem destinada ao outro. Em contrapartida, se essas manifestações fazem imediatamente sentido para o outro, isto implica que a criança é de imediato colocada num universo de comunicação, onde a intervenção do outro constitui-se como uma resposta a algo que foi, de antemão, suposto como uma demanda. (Dor, 1989, p. 144).

O objeto que lhe é, então, proposto para a satisfação, o é sem que a criança o busque, sem que tenha uma representação do mesmo. Trata-se, portanto, de um processo pulsional da

ordem da pura necessidade, uma vez que a pulsão vê-se satisfeita sem qualquer mediação psíquica. Dessa forma, ao oferecer-lhe um objeto para a satisfação, o outro refere imediatamente a criança a um universo semântico e de discurso que é o dele, presumindo, antecipando e, em última instância, atribuindo à criança uma demanda que supõe ser a sua. Assim, este pequeno outro investe-se, por sua vez, junto à criança, como um outro privilegiado: o Outro (Dor, 1989). A mãe, elevada à posição de Outro para a criança, desta mesma maneira, assujeita-se ao universo de seus próprios significantes, ao mobilizar uma resposta ao que ela mesma previamente interpretou como sendo uma suposta demanda. Assim, “é no que seu desejo está para além ou para aquém do que ela [a mãe enquanto Outro] diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito” (Lacan, 1964/1988, p. 207).

Na medida em que a experiência de satisfação é uma vivência alicerçada pela rede de significantes do Outro, esta suposta demanda nada mais é do que uma projeção do desejo do Outro, que, nesse movimento de antecipação, funda um sujeito desejante, possibilitando, assim, que a criança, ao criar ligações psíquicas que guardam a marca dessa relação com o Outro, saia do caos pulsional originário. Por isso, a resposta da mãe a essa suposta demanda da criança propicia a esta última uma satisfação para além da satisfação de sua necessidade. “Por intermédio desta demanda, a criança testemunha sua entrada no universo de desejo, desejo este que, como formula Lacan, se inscreve sempre entre a demanda e a necessidade.” (Dor, 1989, p. 145).

Dor (1989) sublinha que se a demanda é a expressão do desejo, trata-se de uma demanda dupla: para além da satisfação da necessidade, perfila-se uma demanda do “a mais”, uma demanda de amor, que se traduz em uma exigência de reconhecimento pelo outro. A dependência da criança não é, portanto, somente biológica, mas consiste, sobretudo, em uma dependência de amor e de desejo. A partir da segunda experiência de satisfação, quando o desejo surge sustentado pela reativação dos traços mnêmicos da primeira experiência de satisfação, a criança mobiliza, cada vez mais intencionalmente, uma organização de signos em seu endereçamento ao Outro. Ela passa a desejar pela mediação de uma demanda endereçada ao Outro, assujeitando-se à ordem do sentido. Ou seja, neste ponto, a criança é conduzida a tentar significar o que deseja, é intimada a demandar para fazer ouvir seu desejo.

Nesse sentido, o desejo, para além da demanda, inscreve a criança numa relação indestrutível com o desejo do Outro. Ela se oferece como objeto do desejo do Outro ao pressentir que este também é, como ela mesma, marcado pela falta, e assim pode constituir-se

como um objeto potencial do desejo do Outro, um objeto suscetível de preencher a falta do Outro, identificando-se, portanto, ao objeto fálico. Para subjetivar-se, tornando-se ela mesma um sujeito do desejo, a criança precisa abrir mão de ser o único objeto de desejo do Outro, aceitando a falta constituinte do humano. Esta aceitação encaminha a situação edípica: a criança abandona a posição de objeto do desejo do Outro para assumir a posição de sujeito desejante, em que lhe é dada a possibilidade de trazer para si objetos eleitos como objetos substitutivos de desejo, colocados metonimicamente no lugar do objeto perdido.

Mais precisamente, a dimensão do desejo irá contribuir para garantir à criança, cativa de um organismo submetido à ordem da necessidade, a promoção do estádio de objeto ao de sujeito, na medida em que o desejo parece só poder inscrever-se no registro de uma relação simbólica com o Outro e através do desejo do Outro. (Dor, 1989, p. 144).

A dimensão do desejo, cuja gênese pressupõe, para além da necessidade, a presença do Outro, é o que caracteriza o sujeito enquanto marcado pela falta, que se expressa na inerência da linguagem ao psiquismo. Esta mediação que a linguagem produz ao configurar-se como condição fundamental para a inserção no mundo humano, apartado da ordem instintual, de um funcionamento natural, é a via pela qual o pulsional alcança sua transposição para o plano psíquico, para o campo das representações. Esta transposição, condição sine qua non para a emergência do sujeito do desejo, introduz, porém, uma inadequação entre o que é desejado fundamentalmente e o que se faz ouvir deste desejo na demanda.

O hiato que se estabelece entre a demanda e o desejo é a medida do impossível re- encontro com o objeto perdido e com a plenitude desse primeiro encontro com o Outro, que carrega a marca de um prazer absoluto, anterior a qualquer vivência de falta que, inevitavelmente, a criança experimenta ao buscar a reedição desse prazer. Este Outro fundamental, então, permanece inacessível e perdido devido à cisão introduzida pela demanda. Lacan (1958-59) afirma que é nesse intervalo, nesse vazio, que se situa a experiência do desejo, apreensível primeiro como sendo o desejo do desejo do Outro e em cujo interior o sujeito há de situar seu próprio desejo. É somente neste espaço constituinte da falta inerente ao desejo do Outro que pode surgir o desejo do sujeito.

Este vazio é o lugar da Coisa – das Ding – a partir da qual a criança deseja o desejo. Em nenhuma de suas demandas, porém, poderá significá-la adequadamente, pois a Coisa é inominável e sua essência é a impossibilidade da saturação simbólica. De fato, alguma coisa se perdeu na diferença entre o que é dado à criança sem que seja demandado ou esperado, e o que lhe é dado mediante a demanda. A Coisa é justamente o elemento instaurador da cadeia

simbólica, na medida em que constitui essa falta que mobiliza o desejo, que faz girar os significantes em suas relações uns com os outros. Identifica-se, nesse sentido, ao objeto a de Lacan, na medida em que é tanto causa do desejo, como aquilo a que o desejo visa (Dor, 1993). Os objetos que vierem a ocupar este lugar serão sempre objetos substitutivos do objeto faltante.

A premência da nominação, o imperativo de buscar o sentido em tudo o que diz respeito ao mundo do homem, ratifica a relação impossível com a Coisa, na medida em que esta só nos é acessível como representação, na medida em que se presta a uma captura pelo simbólico que nunca é, de fato, bem-sucedida. Aqui podemos vislumbrar a estrutura do campo simbólico como re-presentação, como o que torna presente, numa dialética de presença e ausência que Freud bem detectou na brincadeira infantil com o carretel. Nas conjecturas de 1920, precursoras do advento da pulsão de morte na teoria psicanalítica, Freud se dá conta de que esta brincadeira de jogar longe o objeto (carretel) para depois reencontrá- lo, o momento do Fort-Da, parece remeter à situação de ausência do objeto primário, à partida da mãe, o que certamente não foi sentido pela criança como algo agradável ou mesmo indiferente. Ou seja, não se trata aqui de uma repetição mobilizada pelo princípio de prazer, mas de uma tentativa de captura do excesso pulsional decorrente dessa situação traumática. A repetição dessa experiência aflitiva tem, portanto, outra função: a de simbolização, de inscrição psíquica dos conteúdos energéticos dessas experiências primárias.

Nesse sentido, é a partir de um lugar de falta que a simbolização se instaura, operando como o motor da construção do psiquismo. É a perda do outro que permite à criança começar a se apropriar dos significantes do Outro, realizando a inscrição da pulsão no universo representacional, e abrindo, assim, a possibilidade de fazê-lo presente mesmo em sua ausência, sob a forma de uma representação. Dessa forma, é sobre um fundo de ausência que a criança chama o outro como presença, estabelecendo com ele uma relação simbólica (Lacan, 1958-59). A criança, como ser humano, só pode habitar a linguagem, uma linguagem (a dos seus pais) que lhe preexiste e que, portanto, constitui a sua pré-história, a partir da qual incorporará os elementos que a anteciparão como sujeito, por uma intermediação cultural que se dá com sua inserção no simbólico, no campo do Outro.