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Transitivismo e agressividade: o processo de diferenciação

Capítulo 2 – Narcisismo: a constituição imaginária do eu

2.4 Transitivismo e agressividade: o processo de diferenciação

Essa imago da relação nutriente, dada em seu conteúdo pelas sensações próprias aos primeiros meses de vida, é anterior ao advento da forma do objeto, do campo representacional. O complexo se caracteriza, então, por ser uma entidade paradoxal, na medida em que consiste numa representação inconsciente designada pelo nome de imago. Neste viés, no artigo “A agressividade em psicanálise”, de 1948, Lacan avança nesta questão, demonstrando que o conteúdo das vivências primárias não pode se representar na consciência, mas só ganha forma na medida em que se organiza mentalmente. Assim, pela primeira vez, uma tensão vital se transforma em intenção mental. Embora sempre vinculado aos conteúdos objetivos que informou originalmente, o complexo é capaz de se reproduzir, por associação, nas estruturas mentais que modelam as experiências psíquicas ulteriores, exercendo o papel de organizador psíquico e intervindo em seu triplo aspecto: como relação de conhecimento, de organização afetiva e, ao chocar-se com o real, de prova (Lacan, 1948/1998). Dessa forma, ele participa diretamente da construção da personalidade.

Se a procura de sua unidade afetiva promove no sujeito as formas em que ele representa sua identidade, a forma mais intuitiva é dada, nessa fase, pela imagem especular. O que o sujeito dela saúda é a unidade mental que lhe é inerente. O que ele reconhece nela é o ideal da imago do duplo. O que ele nela aclama é o triunfo da tendência salutar. (Lacan, 1938/1987, p. 37).

A formação do eu está, portanto, embasada na apreensão da imago primordial do duplo, sobre a qual o eu se modela. É pelo semelhante que o objeto “eu” se realiza: quanto

mais pode assimilar de seu parceiro, mas o sujeito conforta ao mesmo tempo sua personalidade e sua objetividade. Por isso, no reflexo especular – ou ilusão da imagem – a imago do duplo é central, ainda que de fato o mundo narcísico que assim se constitui não contenha o outro. Assim, o processo de instauração de uma primeira formação egoica, para a qual é dirigida toda a quota de libido disponível, se dá num estádio em que predomina um egocentrismo fundamental. Porém, como salientaremos neste tópico, para além do processo de identificação com o outro, o nascimento do eu demanda também um processo de diferenciação em relação ao outro.

Lacan chama de “intrusão narcísica” (1938/1987) a tendência estrangeira e temporária mobilizada pela imagem refletida no espelho que introduz uma unidade na qual o sujeito é levado a projetar-se, possibilitando-a, dessa forma, adentrar a sua estrutura mental e constituir o eu. Essa intrusão primordial permite compreender a projeção do eu constituído à luz do mito de Narciso, que nos apresenta, como resultado da insuficiência vital do homem, a morte do outro. Na medida em que o eu se faz numa convergência de todo investimento libidinal para a imago com que se identifica, desde o centro de sua consciência, o lugar que a criança ocupa no desejo inconsciente dos pais, o lugar que lhe é concedido de acordo com o que ela representa para eles, será o lugar a partir do qual ela construirá uma instância egoica e se fará sujeito, através dos processos de identificação que se dão nessa relação, através da incorporação do desejo do outro. Marcado por essas identificações projetivas e habitado pelos fantasmas e fantasias dos pais que são incorporados pela criança, instaura-se o registro imaginário. Tais fantasias privilegiadas são as testemunhas na consciência que nos permitem conceber a imago formadora da identificação (Lacan, 1948/1998).

O eu se faz, então, numa dialética de colamento e diferenciação em relação ao outro: depende de um movimento de incorporação do outro que, no mesmo ato, marca um limite entre ambos, efetuando uma diferenciação em relação ao outro à medida que se erige o objeto eu. Nesse sentido, a identificação narcísica, que determina a estrutura formal do eu e do registro de entidades característico do seu mundo, tem como correlata uma tendência à agressividade, responsável por este segundo termo da dialética. O eu que assim se constitui conservará dessa origem a estrutura ambígua do espetáculo, que dá forma a pulsões destruidoras do outro, ou seja, às pulsões narcísicas que, ao mesmo tempo, constituem o eu imaginário ideal.

Dessa forma, a experiência de si próprio, na medida em que se refere ao semelhante, desenvolve-se a partir de um estado primário de indiferenciação. Lacan (1948/1998) aponta que, por volta dos oito meses de idade, nos confrontos entre crianças, vemos que um sujeito

acompanha com seus próprios gestos o esforço imperfeito do gesto do outro, confundindo sua aplicação distinta. Estas sincronias da captação especular, que se antecipam à coordenação completa dos aparelhos motores que elas empregam, denotam um transitivismo normal nesta fase: “a criança que bate diz que bateram nela, a que vê cair, chora” (Lacan, 1948/1998, p. 116).

Assim, a agressividade que se manifesta nas retaliações de tapas e socos não pode ser apenas tomada por uma manifestação lúdica de exercício das forças e de seu emprego para o referenciamento do corpo. Ela deve ser compreendida numa ordem de coordenação mais ampla: a que subordinará as funções de posturas tônicas e de tensão vegetativa a uma relatividade social cuja prevalência Wallon sublinhou consideravelmente na constituição expressiva das emoções humanas. (Lacan, 1948/1998, p. 115).

Durante o estádio do espelho, portanto, experimenta-se um paradoxo: cada parceiro confunde a parte do outro com a sua própria e com ele se identifica, mas também pode sustentar essa relação numa participação propriamente insignificante do outro e dessa forma viver toda a situação sozinho (Lacan, 1938/1987). “Vale dizer que a identificação, específica das condutas sociais, nesse estádio, se funda num sentimento do outro, que só pode ser mal conhecido sem uma concepção correta de seu valor inteiramente imaginário.” (Lacan, 1938/1987, p. 32, grifo do autor). Desse modo, a dialética do comportamento da criança na presença de seu semelhante é determinada por essa captação pela imago da forma humana, ligada à estrutura do corpo próprio e às funções de relação: por uma certa similitude objetiva. Esta exigência de similitude entre os sujeitos consiste no fato de que as transformações nervosas, bastante rápidas e profundas, parecem dominar as diferenciações individuais na espécie humana.

Assim, as típicas reações de impotência e ostentação da criança são vividas numa identificação com o outro, em que se revela sua ambivalência estrutural: “escravo identificado com o déspota, ator com o espectador, seduzido com o sedutor” (Lacan, 1948/1998, p. 116). Por isso, é difícil saber qual das duas crianças seria a mais espectadora: a que se oferece como espelho ou a outra, que a acompanha com o olhar? Essa contemplação da criança na situação de absorção especular é algo próprio da espécie humana. No caso do chimpanzé, por exemplo, em relação ao qual o bebê humano apresenta um atraso no nível de sua inteligência instrumental – e que só iguala aos 11 meses –, é interessante perceber que diante de sua imagem projetada no espelho ele apresenta indiferença. Sua constituição biológica, mais acabada, não o remete ao outro ou à imago do duplo como condição de sua existência, como acontece com o homem, que se institui pela via do registro imaginário, alienado à imagem

especular. A tensão conflitiva interna ao sujeito humano, devido a sua prematuração, exige que a forma do duplo, sempre revestida de conteúdo afetivo, cristalize-se nele, determinando assim o despertar de seu próprio desejo como sendo o desejo pelo objeto do desejo do outro: o homem se faz sujeito, então, a partir do desejo do outro.

Com efeito, é a partir de uma identificação ambivalente com seu semelhante que, através da participação ciumenta e da concorrência simpática, o eu se diferencia, num progresso comum, do outro e do objeto. A realidade que esse jogo dialético inaugura guardará a deformação estrutural do drama existencial que a condiciona e que se pode chamar o drama do indivíduo, com a ênfase que este termo recebe da ideia da prematuração específica. (Lacan, 1938/1987, p. 78).

Assim, o concurso primordial, a indiferenciação primária, se precipita numa concorrência agressiva, da qual emerge a tríade do outro, do eu e do objeto, fendendo o espaço da comunhão especular (Lacan, 1948/1998). A agressividade seria, para Lacan (idem), uma das coordenadas intencionais do eu humano relativa à categoria do espaço. A simetria espacial tem grande relevância na medida em que a relação do indivíduo com um certo campo espacial é socialmente demarcada. “Diremos que é a possibilidade subjetiva da proteção especular de tal campo no campo do outro que confere ao espaço humano sua estrutura originalmente ‘geométrica’, estrutura que preferiríamos chamar de caleidoscópica.” (Lacan, 1948/1998, p. 124). O adjetivo “caleidoscópica” aqui faz alusão ao caráter indefinido dessa forma egoica, em constante mutação.

A noção de agressividade se coloca, então, como tensão correlata à estrutura narcísica no devir do sujeito, em que o espaço onde se desenvolve o conjunto de imagens do eu vem juntar-se ao espaço objetivo da realidade. Nesse sentido, o eu se constitui ao mesmo tempo em que o outro no drama do ciúme, que, em sua essência, representa não uma rivalidade, mas uma identidade mental. “Para o sujeito, é uma discordância que intervém na satisfação especular, (...) [que] implica a introdução de um terceiro objeto que substitui a confusão afetiva, assim como a ambiguidade especular, pela concorrência de uma situação triangular.” (Lacan, 1938/1987, p. 39). Nessa medida, a partir desse estádio começa a se esboçar o reconhecimento de um rival, ou seja, de um ‘outro’ como objeto.

A imagem do corpo próprio é o princípio de toda unidade que se percebe nos objetos. A tensão inerente a essa imagem que traz a percepção de uma unidade que não condiz com o sentimento de despedaçamento pelo qual o infans ainda é tomado, engendra uma certa nebulosidade em torno do eu constituído, a qual permeia também a estruturação de todos os objetos do seu mundo. Esta percepção de uma unidade perfeita no espelho evoca, a todo

instante, uma unidade ideal para o homem, que, como tal, nunca é atingida e que a todo instante lhe escapa, pois há, na fixação desse ‘ideal’ imaginário, a marca da impotência biológica e o efeito de antecipação característico da gênese do psiquismo humano. Assim, o eu ideal, marcado por uma ilusão de completude oriunda da satisfação narcísica, dá lugar ao ideal do eu, uma formação narcísica que consiste no acabamento e na metamorfose da imago do duplo (Lacan, 1938/1987).

Esta substituição ocorre devido a uma nova antecipação no curso do desenvolvimento do sujeito: a da maturidade libidinal após o complexo de Édipo, que faz coincidir a normatividade libidinal com a cultural por efeito da função paterna. Para os fins deste trabalho, não nos estenderemos nesse ponto, e voltamos a nos reportar à imago da mãe: sua estruturação na origem é absolutamente fundamental, mas sua sublimação ulterior é condição sine qua non para que o sujeito possa estabelecer novas relações com o meio social, para que o desenvolvimento libidinal prossiga do narcisismo primário para o amor objetal. A passagem de um eu ideal fechado em si mesmo à instauração do ideal do eu tem papel fundamental na regulação dos investimentos libidinais nos objetos externos e no eu, possibilitando um equilíbrio nas trocas sociais. No entanto, configurando-se como um objeto do qual o homem está irremediavelmente separado, o ideal do eu o remete à região mesma de sua deiscência, uma vez que, por não poder ser alcançado, o angustia. O ego real nunca mais se experimentará como ideal, pois não há complementaridade perfeita no plano do desejo.

Dessa forma, a necessária viragem que o sujeito tem de operar, de uma nostalgia da mãe à afirmação mental de sua autonomia, é o único caminho para a constituição de um sujeito do desejo. Nesse sentido, toda identificação objetiva se dá por meio da comunicação, pois repousa sobre critérios culturais, sendo capaz de transmitir estruturas de comportamento e representação que ultrapassam a consciência individual, estabelecendo uma continuidade psíquica entre as gerações. Como vimos, em última instância, é o desamparo dos pais que propicia a constituição psíquica de um sujeito, na medida em que este ocupa o lugar de objeto de amor dos primeiros que, motivados por uma ilusão de preenchimento de sua falta estrutural, revestem a criança de intensa idealização. Somente nessa condição a criança consegue dar o salto da prematuração biológica à constituição narcísica, marcada, como é também, por essa falta estrutural.

Esse momento do desenvolvimento psíquico do sujeito humano, denominado por Lacan como estádio do espelho, marca um passo afetivo na realidade com relação à integração da sexualidade no sujeito a partir da unificação do eu, da instauração da consciência de si que se funda num desconhecimento completo do ser: resultado da alienação

ao outro. Este é o preço que o sujeito tem de pagar para se inserir no mundo humano, em que a dependência ao outro, oriunda da prematuração biológica da espécie, transforma o animal- homem em devir-homem, que se faz e se refaz o tempo todo, constituindo-se a partir do cerne de seu desamparo estrutural.

Assim, o homem é muito mais que seu corpo, ao mesmo tempo em que nada mais pode saber sobre seu ser. “Surge aí essa ilusão fundamental de que o homem é escravo, bem mais que todas as ‘paixões do corpo’ no sentido cartesiano, dessa paixão de ser um homem, diria eu, que é a paixão da alma por excelência: o narcisismo, que impõe sua estrutura a todos os desejos, mesmo os mais elevados.” (Lacan, 1946/1998, p. 189). Afirma que é a partir do narcisismo primário que se dão todas as integrações do desejo humano ao longo da vida. Trata-se, portanto, de um momento fundamental, que lança as bases para todo o desenvolvimento psíquico ulterior.