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O regime de historicidade presentista

Admitamos que exista, em todas as sociedades, acontecimentos, transformação cultural e retomada do passado pelo presente. Contudo, como pergunta Claude Lefort, podemos dizer que a relação com os acontecimentos, com a transformação e a retomada do passado por uma apreensão hodierna tenha sempre a mesma significação?22 Partindo de uma crítica a Hegel, para quem os povos cujo desenvolvimento não foi concomitante ou posterior, as estruturas estatais não tinham história, sendo o Estado, ao mesmo tempo, sua condição e objeto23, a resposta de Lefort passa pela concepção de historicidade, condição que, da filosofia hegeliana a Heidegger, passando por Dilthey e Ricœur, é marcada pela reflexão sobre a experiência humana do e no tempo.

Se aliarmos a essa genealogia filosófica, a obra do antropólogo Marshall Sahlins, e sua Ilhas de história24, então chegaremos ao contexto intelectual que possibilitou a François Hartog desenvolver a noção de regimes de historicidade. Todavia, não é o momento de se discorrer detalhadamente sobre o tema. Parece- me suficiente reter a idéia de que o regime de historicidade é um artefato tipo- ideal, no molde weberiano, que valida sua capacidade heurística ao interrogar as modalidades de articulação das categorias do passado, do presente e do futuro, formulação que, embora não tributária da semântica histórica de Koselleck, estabelece com ela uma importante interlocução.25 Um dos pontos de contato

21 Idem, pp. 288-293.

22 LEFORT, Claude - “Socitété ‘sans histoire’ et historicité”, Les formes de l’histoire. Paris: Gallimard, 1978, pp. 61-62.

23 HEGEL, Georg - A razão na história. São Paulo: Moraes, 1990, pp. 91, 108-114.

24 SAHLINS, Marshall - Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

25 Sobre a noção de regime de historicidade, ver de Hartog: Régimes d'historicité, présentisme et expérience du temps.

Paris: Seuil, 2003 (ver também o novo prefácio para a edição de 2012); “Sur la notion de régime d’historicité. Entretien avec François Hartog”. In DELACROIX, C./DOSSE, F./GARCIA, P. - Historicités. Paris: La

Découverte, 2009, pp. 133-149. Para um comentário acerca da obra de Hartog, especialmente, sobre o presentismo e os críticos da noção, ver NICOLAZZI, Fernando - “A história entre tempos: François Hartog e a conjuntura historiográfica contemporânea”. História: Questões & Debates, 53, jul-dez. 2010, pp. 229-257.

entre ambos é a convicção de que as representações do tempo, linguisticamente estáveis ou instáveis, não são apenas expressões que indicam um estado de fato, mas um aporte fundamental à constituição da sua própria percepção.

Por conseguinte, em termos muito gerais, pode-se afirmar que o regime de historicidade antigo se caracteriza pela preponderância do passado, expressa no topos historia magistra vitae, enquanto o moderno carrega consigo a forte

marca do futuro, momento em que as lições para a história provêm do porvir, como acontece em Tocqueville e Marx. No entanto, quando essa conjuntura apresenta sinais de desestabilização, como na nossa contemporaneidade, o novo regime que se instaura não reclama mais o passado ou o futuro como atributos hegemônicos, mas o próprio presente. Eis o presentismo, resumidamente, na

acepção de Hartog.

Embora possa parecer, à primeira vista, uma sucessão linear de regimes, o próprio vocábulo regime(s), normalmente pluralizado, guarda em si uma carga semântica, que desde o mundo antigo (diaita em grego, regimen em latim) lhe garante

não apenas um potencial de mixagem e de superposição, bem como de negação e de coexistência.26

Não chega a ser um segredo epistemológico, portanto, que o presente na história tem uma longa duração. Em Homero, por exemplo, no Canto IX da

Odisséia, Ulisses, em meio aos lotófagos, perde a vontade de retornar para casa

e aparenta perder suas ambições e projetos. Ele passa a habitar em um presente entorpecido, no qual passado e futuro parecem perder importância.27

Em Heródoto e Tucídides, o presente aparece ora como recurso metodológico, ora como princípio narrativo ou exigência do registro.28 Na idade média, a noção pode ser apreendida tanto do ponto de vista histórico, quanto filosófico, como na tradicional formulação do problema do tempo no já citado Livro XI das Confissões de Agostinho, no qual o presente se constitui em uma das

categorias fundamentais de análise.29 Koselleck observa a incidência da expressão

26 HARTOG, François - “Historicité/régime d’historicité”, in DELACROIX, C./DOSSE, F./GARCIA, P./

OFFENSTADT,N. - Historiographies, II. Concepts et débats, Paris: Gallimard, 2010, pp. 766-771.

27 HOMÈRE - L’Odyssée. Paris: La Découverte, 1982.

28 MOMIGLIANO, Arnaldo - "Time in ancient history". History and theory, 6, 1966, pp. 1-23.

29 Sobre o ponto de vista histórico ver GUÉNÉE, Bernard - "Temps de l'histoire et temps de la mémoire au Moyen Âge", Annuaire-Bulletin de la Société de l'histoire de France. Paris: Klincksieck, 1978, pp. 25-35.

história do presente, em língua alemã, desde o século XVII, e, é preciso repetir, sua progressiva perda de “dignidade” no século seguinte.30

No século XIX, momento em que certas perspectivas historiográficas procuram a identidade científica definindo a história como simplesmente conhecimento do passado (onde paradoxalmente Tucídides, historiador por excelência do tempo presente, era tido como mestre e modelo), encontram-se várias tentativas de se escrever sobre o presente. De forma que importantes filósofos importantes da primeira metade do século XX, como Robin Collingwood e Benedetto Croce, não se furtaram a teorizar sobre a natureza presentista da produção do conhecimento histórico.31

Nesse sentido, embora a expressão História do Tempo Presente, signo da cultura histórica contemporânea, tenha adquirido legitimidade no campo historiográfico, sobretudo a partir da fundação, em Paris, em 1978, do Institut d’histoire du temps présent, os principais historiadores dessa tendência não ignoram,

ou não deveriam ignorar, que houve projetos e tentativas de escrita da história do tempo presente em movimentos historiográficos que lhes antecederam. Em sua configuração mais recente, à história do tempo presente foram associados temas como a identidade (nacional, étnica etc.), o dever de memória, o patrimônio e a figura da testemunha e do juiz, a responsabilidade do historiador, a questão do acesso aos arquivos e as comemorações, que se impuseram como objetos privilegiados da agenda presentista.32

Especificamente sobre Agostinho e o famoso capítulo XI, ver BETTETINI, Maria - "Measuring in accordance with Dimensiones certae: Augustine of hippo and the questiono f time, PORRO, Pasquale (edited by) - The medieval concept of time. The scholastic debate and its reception in early modern philosophy. Boston: Brill, 2001, pp. 33-53.

30 KOSELLECK, Reinhart - "Continuidad y cambio en toda historia del tiempo presente. Observaciones histórico-conceptuales". Los estratos del tiempo: estudios sobre la historia. Buenos Aires: Ediciones Paidós, 2001,

pp. 119-120; "Ponto de vista, perspectiva e temporalidade. Contribuição à apreensão historiográfica da história". Futuro passado, op. cit., p. 174.

31 CROCE, Benedetto - Teoria e storia della storiografia (1917). Milano: Adelphi Edizioni, 1989; COLLINGWOOD,

Robin - G. The idea of history (1946). Oxford: Clerendo Press, 1993.

32 Para uma visão genealógica sobre a história da história do tempo presente ver PASAMAR, Gonzalo - “Origins and forms of the ‘History of the Present’: an historical and theoretical approach”, Storia della storiografia, 58, 2010, pp.

83-103. Ver também: BÉDARIDA, François - "L´historien régisseur du temps? Savoir et responsabilité". Revue Historique. Paris: PUF, 1998. p. 3-24. BÉDARIDA, François - "La dialectique passé-présent et la pratique

historienne". L'histoire et le métier d'historien en France 1945-1995, Paris : MSH, 1995; CHAUVEAU, A./TÉTART,

P. - Questions à l'histoire des temps présents. Paris: Complexe, 1992; e a apresentação de ARÓSTEGUI, Júlio. em:

"Historia y tiempo presente. Un nuevo horizonte de la historiografía contemporaneista". Cuadernos de Historia Contemporanea, n. 20, 1998, pp. 15-18. GARCIA, Patrick - "Histoire du temps présent". In DELACROIX, C./

DOSSE, F./GARCIA, P./OFFENSTADT, N. - Historiographies, I. Concepts et débats. Paris: Gallimard, 2010, pp.

Um exemplo, entre tantos possíveis, desta lógica presentista aplicada à história recente foram as manifestações ocorrida nos Brasil em junho de 2013.

Manifestações presentistas em um tempo desorientado