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Cap 2 MAX OPHULS, LE METTEUR EN SCÈNE

2.4. Ophuls e a estética barroca

2.4.1. A imagem decorativa

Em seu livro Pretty – film and the decorative image198, a pesquisadora Rosalind Galt documenta as origens de um tipo especialmente poderoso de “mau gosto” estético no cinema: o excesso decorativo. Analisando as correntes predominantes da teoria e da análise cinematográfica ao longo do século XX, ela argumenta que um espectro considerável da produção e da tradição crítica da arte recusa a imagem dita bonita como objeto estético, ao ponto de rejeitar, sistematicamente, as composições decorativas ou ricamente ornamentadas. Essa tendência estaria ligada, principalmente, à dominação do pensamento elitista e patriarcal sobre as zonas sensíveis da cultura ocidental. Para Galt, esse pensamento hegemônico é completamente iconofóbico, pois opera a valorização estratégica da clareza e da simplicidade como princípios estéticos (e comunicativos), e vai de encontro à suspeita platônica contra as imagens em geral (que não seriam senão sombras de uma essência primordial).

A fim de fazer retornar as figuras e formas excluídas historicamente das belas artes, bem como abrir novos caminhos de compreensão para os artefatos estéticos, a autora propõe uma categoria que agrupe possibilidades perdidas ou desprezadas ao longo da construção da sensibilidade ocidental. Essa categoria é a do bonito (pretty). Por trás desse nome polêmico, reside a principal potência do gesto da autora: o questionamento da fronteira hegeliana entre alta e baixa gnosiologia, a fim de que toda vida sensível mereça a devida atenção. Embora os procedimentos metodológicos por ela utilizados sejam muitas vezes inadequados, o mesmo acontecendo com grande parte das consequências epistemológicas extraídas da sua hipótese de trabalho, é preciso reconhecer o profundo                                                                                                                

valor de sua premissa fundamental que se vincula a outros esforços importantes para a renovação do pensamento estético contemporâneo199.

Mais especificamente, o que interessa no pensamento de Galt é o seu propósito de compreender as formas artísticas no cinema, incluindo seus detalhes e componentes acessórios, como manifestações sensíveis dotadas de sentidos e emoções próprios. Desse modo, tais imagens seriam atravessadas por existências sensíveis (ou espectrais) que participam da constituição histórica da própria temporalidade humana. Por isso, as acusações de superficialidade e de esvaziamento feitas aos filmes de Ophuls devem ser distanciadas pelo reconhecimento da vida interior (histórica, emocional, afetiva) que toda imagem carrega, a sua sobrevida (não cronológica) no mundo humano, desde o momento de sua produção, até as contínuas conexões (não-lineares) com aquilo que está fora dela (fora do quadro), mas é percebido como dentro.

É toda uma vida espiritual e cultural que está inscrita na superfície fílmica, um modo de ver e de sentir que foi transmutado para o meio cinematográfico. Cristais de mundo que expõem determinados estados de civilização: clássico, medieval, moderno e outros, com todas as variações temporais e geográficas. Assim, deve-se perguntar qual é o mundo que está em jogo para o cineasta. Quais são as matérias e figuras que o compõem? Trata-se de um mundo barroco? E, se assim for, do que ele é feito?

De fato, pode-se entender a herança barroca como uma das energias (históricas, afetivas) que influenciam a organização sensível dos filmes de Ophuls. A coreografia dos corpos, os gestos teatrais, os finos figurinos, os hábitos dos personagens, as frases e os diálogos, os tons e as emoções da voz se tornam componentes sensoriais que incorporam (em conjunto) diferentes relações com o mundo no próprio fluxo interno das obras. Elas participam dos sentidos e figuras que emergem no espaço das construções cenográficas, estabelecendo conexões visuais (isto é, aproximações, semelhanças, reflexos) com aquilo que está fora delas.

Vale dizer que o “modelo padrão de forma e conteúdo é [totalmente] inadequado para os filmes de Ophuls”, do mesmo modo que é inadequado para todo pensamento e

                                                                                                               

199 A polêmica reside, sobretudo, na tensão entre a proximidade semântica com o conceito de belo e a imensa

diferenciação filosófica em relação ao mesmo. De fato, a categoria do bonito englobaria tudo aquilo que, à primeira vista, carece da profundidade significativa característica ao cânone da beleza, trazendo em lugar desta um suposto encanto de superfície, um efeito de prazer meramente sensual e sem maiores consequências do que sua própria fruição.

produção sensível que conceda um estatuto autônomo à vida das aparências200. A herança barroca em questão é tanto mais significativa para o cineasta quanto maior é a imbricação entre forma e conteúdo, através do movimento e da teatralidade. Nesse sentido, os movimentos de câmera ophulsianos, embora não estejam inseridos diretamente na composição do quadro ou do cenário, dialogam intensamente com os elementos neles contidos, definindo, ademais, a própria perspectiva (muitas vezes móvel) do olhar. Ao escrever sobre Lola Montès, Chris Wisniewski afirma que o cinema de Ophuls “é um cinema com movimento de câmera preciso, elegante, em que os planos filmados revelam e negociam hierarquias sociais e cronologias complexas, em particular na sua relação com questões de gênero e do feminino”201.

Na esteira do livro de Guérin202 (que, todavia, não recebe os devidos créditos), Rosalind Galt define as trajetórias da câmera de Ophuls como traços arabescos em meio à intensa profusão visual das imagens, os quais determinam relações internas entre os corpos e objetos filmados. Para ela, ao se vincularem a tradições orientais com tendências fundamentalmente antinaturalistas, esses traços estabelecem formas e coreografias capazes de deslocar os pressupostos da narrativa patriarcal ocidental. Em suma, a representação é colocada em crise através do forte investimento na visualidade.

É verdade que tal reflexão apresenta algumas trilhas promissoras por seguir, em especial no que toca à análise de Lola Montès, incluída em uma inusitada (e possivelmente precipitada) comparação com o blockbuster de Baz Luhrmann, Moulin Rouge! (EUA, Austrália, 2001). Não obstante, a autora comete duas faltas principais na sua argumentação: por um lado, ao utilizar a arte islâmica como operador analítico, ela reduz os arabescos a elementos exotéricos ou meras composições abstratas, limitados por jargões que valorizam a apropriação daqueles pelas autoridades ocidentais; por outro, a identificação a priori dos arabescos à cinematografia ophulsiana certamente carece de fundamentos analíticos, bem como de aproximações substanciais (ou indiciais) aos                                                                                                                

200

Cf. ECO, Umberto. As formas do conteúdo. Tradução de Pérola Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 66; e BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. Tradução de Izidoro Blinkstein. São Paulo: Cultrix / USP, 1971, p. 43.

201 WISNIEWSKI, Chris. “The main attraction”. In: Reverse Shot, nº. 23, 2008.

202 Conferir GUÉRIN, William Karl. Max ophuls, no qual o autor afirma, por exemplo, que a “arte [de

Ophuls] visa a tornar indissociáveis o movimento e as sensações, e não a dar a cada movimento o seu sentido: querer decompô-lo em fragmentos, sem prestar atenção ao diálogo íntimo das formas entre si, torna perceptível a gratuidade do efeito, quando este último retorna às profundezas do ser. Bastante presente, ostentoso, notável, o arabesco do qual Ophuls faz uso (e abuso, dizem os seus detratores) é a encarnação perfeita de um movimento e de um mal entendido” (p. 25); que “o arabesco [figura ornamental] foi usado na época do barroco para permitir às formas se inscreverem, sem conflitos, no espaço visual” (p. 26); ou que “essa geometria [arabesca] de sentimentos é tão complexa quanto a própria existência” (p. 64).

próprios dados específicos da obra em questão. As vagas referências aos “sinuosos arabescos da câmera”, aos “movimentos curvatórios da câmera”, ao “incessante padrão do arabesco”, à “forma arabesca de seus movimentos de câmera”, ou simplesmente ao “arabesco da câmera”, parecem surgir de modo demasiado natural em meio às muitas especulações que, de resto, raramente são acompanhadas (ou seguidas) de um trabalho de análise fílmica capaz de fundamentá-las.

Em todo caso, até certo ponto, a sua hipótese central vai de encontro às indagações deste estudo: mais do que potencializar o prazer sensorial, a complexa relação estabelecida entre a câmera203 e a extensão “decorativa” das cenas – cuja importância é reforçada enquanto potente reservatório pró-fílmico – parece constituir um limiar reflexivo de circulação e de passagem histórica através de um certo formalismo. Segundo Galt, “para os críticos que levam a sério o estilo bonito de Ophuls, a significação está justamente na forma arabesca dos seus movimentos de câmera”. Por exemplo, pode-se dizer que a ausência de centro em vários dos movimentos de câmera – especialmente no caso de Lola

Montès, mas também em La ronde, Le plaisir e Madame de... – apresenta vínculos com

certa sensibilidade moderna que vai de encontro às noções trabalhadas por Deleuze na sua conceituação da dobra barroca.

Embora o argumento de Galt seja razoável – e certamente contribua para a renovação dos juízos estéticos em torno do nome de Ophuls, bem como da própria disciplina que os constitui – é preciso acrescentar, às ressalvas anteriores, ao menos outras duas. A primeira é que a significação, enquanto organização do pensamento em torno do objeto e daquilo que o atravessa, resta sempre por construir. Como sugere Marie-José Mondzain no seu texto A imagem pode matar?204, as obras mais potentes estão sujeitas a debates incessantes em relação aos seus possíveis sentidos, algo que vai de encontro à concepção de obra aberta trabalhada por Umberto Eco205. Nesse sentido, uma vez anunciada a ruptura com as tradições hegemônicas, Galt faz pouco esforço para renová-las no confronto corporal com os objetos convocados. Resulta, assim, uma argumentação demasiado distanciada das próprias imagens, sustentada por abstrações e pela referência constante às “formas arabescas” que, embora centrais no capítulo em questão, não são

                                                                                                               

203 Conduzida, nos momentos mais expressivos, pelo mítico cinematógrafo Christian Matras. Este, em

contrapartida, deve a Ophuls os seus trabalhos mais primorosos.

204

MONDZAIN, Marie-José. A imagem pode matar?. Tradução de Susana Mouzinho. Lisboa : Nova Vega, 2009.

aproximadas dos aspectos específicos que compõem o meio cinematográfico e os próprios procedimentos de cada filme.

A segunda ressalva é que, embora os movimentos de câmera sejam um dos traços distintivos da obra de Ophuls, é preciso ter cautela para não circunscrever o seu estilo exclusivamente ao redor desse aspecto, pois as significações possíveis das suas imagens o ultrapassam bastante. Com efeito, a reflexividade de Lola Montès é menos abstrata (pois difere, imperativamente, de todo cinema dito conceitual) e mais primordial do que o sugerido por Galt. Ela se encontra, por exemplo, nas coreografias dos corpos, nos cenários, nos figurinos e nas figuras em geral que circulam pelo espaço dinâmico da mise-en-scène. É todo um potencial energético, um barroquismo acumulado, que se ativa através de cada plano, cada cena, cada detalhe, desdobrando-se sem cessar.