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Cap 4 – LOLA MONTÉS: A ANTI-VEDETE

4.2. As aparições da vedete

4.2.2. O sacrifício da vedete

Será sempre preciso sacrificar alguma coisa da realidade à realidade.

Andrè Bazin

Se, ao menos simbolicamente, a cena do circo é o lugar onde Lola está morta, a cenografia circense é um ritual de imolação. Não por acaso, a rodada de perguntas e respostas tem algo de sacrifical em seu funcionamento. Logo no começo, a cortina se abre, as luzes se acendem e os criados negros vestidos de amarelo trazem réplicas da cabeça de Lola, espetadas por lanças e dispostas sobre uma grande bandeja (Fig. 4.35-36). A seguir, entram as figuras lilliputianas de vermelho, separadas em três grupos pelos cortes da montagem, e param ao redor da bandeja. Cada um deles é precedido pelo anúncio irônico das virtudes sacrificiais atribuídas ao espírito de Lola: mortificação, benevolência e caridade. Suas vestes estão numeradas de 1 a 11, mas fora de ordem em relação a suas posições relativas. Na verdade, só é possível visualizar alguns desses números – 5, 10, 4, 2 e 11 – o que pode sugerir uma impossibilidade de numeração, refletida na predileção cenográfica pelas multiplicações (como será analisado mais adiante).

Fig. 4.35: Na cena seguinte, Lola permanece imobilizada no centro do quadro...

Fig. 4.36: ...enquanto as cabeças nas lanças inscrevem, na mise en scène, uma iconografia sacrificial.

A palavra sacrifício possui, no senso comum, duplo sentido: por um lado, a morte oferecida a uma instância divina como fundamento da comunidade; por outro, abnegação do espírito, em proveito da graça. Jogando com essa ambiguidade, M. Loyal esclarece – com certo deboche na voz – que Lola vai doar o total arrecadado para o auxílio às mulheres desonradas, num gesto de penitência. A mise en scène, por sua vez, sugere um rito sacrificial, aspecto que contribui para problematizar a representação da mulher. Sempre imóvel no meio do picadeiro, no centro gravitacional dos olhares, Lola carrega no rosto uma expressão de visível desconforto. Ao seu redor, figurantes bizarros, de semblantes cobertos, atravessam o quadro. Em suas mãos, as lanças coroadas por cabeças ou cartolas para recolher dinheiro. Comandados pelo apito do mestre de cerimônias, eles se dirigem à plateia, com as mortuárias oferendas nas mãos, para recolher as perguntas que emergem, materialmente, do burburinho que logo se inicia. Então, o quadro se abre num plano geral que ressalta a figura estática da cortesã, em postura ambígua, marcada por certa altivez corporal que expressa, ao mesmo tempo, grandeza e resignação.

De fato, o cerco do circo é quase inescapável, pois a sua suposta circularidade libertária é, no fundo, uma arquitetura labiríntica. Somente as escadas caídas do teto parecem oferecer alguma saída – talvez, a sublime ascensão, hipótese levada aos seus extremos no momento do salto final, o derradeiro sacrifício. Em todo caso, trata-se de um altar às avessas, onde o espaço do culto é rebaixado em relação ao público e a lona circense separa os corpos do espaço celeste. Para reforçar a inversão, basta pensar no altar ideal do sacrifício de Isaac: a montanha imponente, com forma cônica, que se eleva em direção ao céu; no topo dela, as nuvens divinas se concentram e o fogo sagrado queima sem cessar. A arena circense estaria, portanto, mais próxima de um “altar subterrâneo”, um altar do submundo ficcional onde o sacrifício só pode conduzir a um pacto diabólico (entre espectador, atores, personagens, imagens).

A questão da reprodução em série está colocada nas muitas cabeças trazidas à cena (vale lembrar que antes, na abertura, as muitas bailarinas semelhantes a Lola também operavam algo com a duplicação de sua figura). Multiplicada nas réplicas de um rosto imaginado, de uma “mera aparência” enganosa, a morte da vedete encontra a sua medida pervertida pelas cifras do simulacro. Contudo, é preciso recordar que as representações em cadeia (en chaîne) de Lola constituem, ao mesmo tempo, uma maquinaria lúdica na qual a superfície ilusória é inseparável da potência espetacular (o espelho, o labirinto, a dobra). Nesse contexto, os termos “espetáculo” e “simulacro” devem ser distanciados de qualquer compreensão estritamente numérica e utilizados com grande cautela em relação ao meio cinematográfico. Com efeito, dizer que um rosto, um corpo, uma figura humana é apenas um semblante não demanda, necessariamente, reduzi-la à completa alienação ontológica. É preciso, ao menos, entender o seu lugar no impiedoso teorema do mundo moderno, a fim de formular suas maneiras singulares de experiência e de invenção (isto é, de ficção).

Mas se a cena circense é um sacrifício, de que modo esse rito se desdobra? Quais são os golpes desferidos sobre a imagem da condessa a fim de aniquilá-la – embora a morte de uma imagem seja sempre algo improvável? Qual a faca que penetra em sua carne? E, mais ainda, qual o sentido último desse ato de imolação? Lola prossegue no centro do quadro, enquanto outros servos de vermelho correm para cá e para lá, levando cartolas para coletar dinheiro. O movimento é duplicado, em paródia, pelo palhaço que vem do antecampo, salta para frente da cortesã e executa gestos de pedir esmola. Depois, pelo anão que entra em cena, levando às costas, bem sobre a cartola, uma espécie de

palanque de leilão. M. Loyal corre pela arena, pede à plateia inquieta para aguardar, retorna para o lado de Lola, e toca o sino.

Então, as luzes se apagam. Uma explosão luminosa povoa a escuridão. Estampidos se repetem ao longo da sequência, acompanhados pelas vozes agressivas da turba de espectadores que fulmina sobre Lola as questões de uma doxa degenerada, enquanto pêndulos e lustres oscilam no teto. Há toda uma dimensão de violência no tom das perguntas, bem como no modo brusco como elas são trabalhadas pela montagem, sempre em cortes secos e repentinos. Cada interrogação é sucedida por um close no rosto da condessa, atingindo-a como um golpe certeiro, uma lança que a perfura e intensifica seu desfalecimento (Fig. 4.37-38). Além disso, a cena tem um ritmo bastante vertiginoso e atordoante, sintomas refletidos, como mencionado, em toda a mise en scène circense. Em dado momento, três movimentos circulares se confundem: o giro da atriz, imóvel, em torno do próprio eixo; a volta do narrador em torno de Lola; o lento rodeio da câmera para acompanhá-lo.

A câmera se dedica quase exclusivamente a filmar Martine Carol (atriz-fetiche que interpreta Lola) numa espécie de obsessão do olhar pelo corpo da mulher. Os rostos anônimos dos inquisidores – isto é, dos espectadores em sua representação reflexiva – nunca são mostrados. Aspectos como o jogo de luzes da cena realçam a face da atriz, ao deixá-lo em destaque contra o fundo quase todo escurecido. As perguntas são respondidas em voz muito baixa, como se Lola falasse para dentro. M. Loyal não tarda em tomar a palavra, e passa a responder às perguntas no lugar da vedete. Novamente, a radical passividade de Lola instaura uma tensão no espaço da cena, problematizando as formas da representação feminina no cinema.

Fig. 4.37: A seguir, durante a rodada de questões, cada pergunta da plateia...

Fig. 4.38: ...funciona, cenograficamente, como um golpe sonoro desferido contra o rosto da vedete.

De fato, a hegemonia da voz do narrador é um elemento preponderante na organização das cenas ao longo do filme. Com timbre imponente, preenche praticamente a totalidade da arena circense, ecoando pelas imagens e comandando os movimentos dos corpos, olhares, sentidos. No caso específico da rodada de perguntas, uma grande variedade de ruídos acrescenta-se à atmosfera sonora, como barulhos de tiros, murmúrios, gargalhadas estridentes, tinidos, sons de engrenagem etc.

O sacrifício desempenha um papel bastante real [...] e o problema da substituição diz respeito à comunidade inteira. A vítima não é um substituto para algum indivíduo particularmente ameaçado, e nem é ofertada a algum indivíduo com temperamento particularmente sanguinário. Pelo contrário, ela é um substituto para todos os membros da comunidade, ofertada pelos próprios membros. O sacrifício serve para proteger a comunidade inteira da sua própria violência; ele impele a comunidade inteira a escolher vítimas de fora da comunidade. Os elementos de dissensão dispersados ao longo da comunidade são transferidos para a pessoa da vítima sacrificial e eliminados, ao menos temporariamente, pelo seu sacrifício297.

                                                                                                               

Para Girard, o sacrifício devolve à comunidade uma suposta harmonia originária, reafirmando a vida fabricada pelo pacto político entre os deuses e os homens, extirpando a violência acumulada. No país das imagens, todo olhar pode saciar seu desejo de sangue e transferir a sua fúria para um outro. Desse modo, a cena ophulsiana descortina, no centro mesmo da construção espetacular, uma dimensão sacrificial que funda a vida em comum da ficção. A questão é problematizada pelos atributos da mise en scène, na qual a cortesã ocupa o centro da arena, em pleno altar de sacrifício. Todavia, esse centro se torna cada vez mais vertiginoso, fragmentário, sendo deslocado ou interrompido continuamente ao longo da cena.