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Cap 4 – LOLA MONTÉS: A ANTI-VEDETE

4.2. As aparições da vedete

4.2.4. Do público ao privado

É possível perceber uma atitude substancialmente diferente entre as aparições da figura de Lola no circo e sua versão nos flashbacks. De fato, seu comportamento se altera profundamente em cada caso: no picadeiro, toda a sedução parece emanar da construção espetáculo, sendo a bailarina uma mera peça giratória submetida ao deslumbrante maquinário circense; no passado, por sua vez, a condessa possui uma postura mais ativa e resoluta (representada, por exemplo, pelas suas habilidades sedutoras). Em suma, a encenação da memória resulta numa postura decidida que contrasta com a sua participação no circo, imobilizada pelo aparato ao seu redor ou controlada pelo apresentador. Esse contraste produz, na comparação entre os registros, uma potente reflexão visual sobre os critérios da representação da mulher. Contudo, cabe a ressalva de que essa comparação é ambígua, algo que pode ser percebido, por exemplo, no momento da despedida de Lizst, quando Lola vagueia pelo quarto, recolhe os fragmentos da partitura rasgada e despede-se do amante com certa hesitação. E também na relação algo contraditória entre os modos de encenação: no circo, onde a mise en scène é mais inovadora, o personagem está completamente capturado por uma reprodução reflexiva da representação clássica, enquanto no passado, cuja imagem é mais transparente, parece haver maior liberdade na relação corporal entre a atriz e o espaço ao seu redor.

Na sequência da Bavária, por exemplo, Lola avança em direção ao rei montada em seu cavalo (Fig. 4.39-42). Ao contrário da circularidade circense, o deslocamento equestre

se dá em linha reta, sem rodeios, através do espaço aberto do parque, cortando o desfile real (e formando, com ele, uma cruz, um cruzamento). Ao chegar ao coreto onde o monarca se encontra, ela é cercada pelos soldados. Um corte volta ao ponto de vista geral, mostrando a parada militar no primeiro plano e o pequeno tumulto provocado pela protagonista mais ao fundo, entrecortado pelas copas de duas grandes árvores. Se o princípio do circo é o labirinto, o jogo, a repetição, no passado ele se converte, ao menos por um instante, nos traslados, nas investidas, nas interseções (também aquilo que está entre, aquilo que permeia). Outro exemplo pode ser encontrado no salão real: diante do monarca, em plano frontal, Lola dança energicamente, submetendo o olhar (do rei, da câmera, do espectador) à sua própria exibição. E, ainda, no salão do palácio de Lola, quando ela entra em cena com desenvoltura, atravessa o cômodo e morde a maçã do rei.

No fragmento do regente, por sua vez, Lola possui uma atitude bastante agressiva (Fig. 4.43-46). A mise-en-scène valoriza profundamente os gestos violentos do seu corpo no espaço da festa, como no impressionante travelling lateral em que ela atravessa o jardim, derruba as cadeiras, quebra os vasilhames da festa. Enfim, quando Lola sobe no banquinho e recebe as palmas, a expressão satisfeita no seu rosto.

Todavia, mesmo na comparação entre as diferentes cenas interiores é possível observar distinções importantes ligadas ao modo de aparição da condessa. Nos primeiros

flashbacks, Lola ainda está bastante subordinada à imagem controladora da mãe e tenta

confrontar a própria existência dela para traçar os contornos de seu próprio rosto, de sua

persona. Isso se reflete especialmente na atitude corporal da filha, mais recolhida e

submissa ao lado da figura materna. A transição ocorre após o teatro, quando a mãe, desfocada ao fundo do quadro, discute o destino da filha e negocia um casamento lucrativo com um velho da nobreza. O corpo de Lola, em primeiro plano ao lado do padrasto, pouco ou nada se move, apenas treme vez ou outra como que atravessado por um receio incontido. Cativa da situação que escapa ao seu controle, ela pode apenas permanecer indiferente, ocultar as emoções sob a superfície. Enfim, Lola arrisca romper essa inércia. A câmera se move para a direita e segue o tenente, perdendo a condessa de vista. Esta parte em disparada, deslocando-se pelos balcões, abandonando os bastidores malditos da prisão familiar.

Fig. 4.39: A encenação de Lola no passado.

Fig. 4.40: Ao contrário do circo, os flashbacks apresentam deslocamentos mais lineares.

Fig. 4.41: Ela investe pelo gramado em direção ao coreto…

Fig. 4.43: Após dar um tapa na cara do regente da orquestra…

Fig. 4.44: ...Lola atravessa o jardim festivo.

Fig. 4.45: Ela arrasta consigo as cadeiras…

Já no flashback que começa logo após o casamento no circo, a porta é arrombada pelo cabo da espingarda do tenente. Momentos antes, o rosto da atriz se fundira ao umbral, transferindo para este algo de si. Considerados os elos racionais do contexto narrativo, esse plano pode significar a própria invasão sofrida por Lola no mundo da representação, no qual todo elemento privado deve forçosamente tornar-se uma imagem pública. De certo modo, não é o olhar que fica proibido pela lógica espetacular, mas a sua vedação304.

A permanente visibilidade de uma esfera circense sujeita à supervisão incessante do mestre de cerimônias sobrepuja a interioridade da protagonista, ao ponto de corroer as fronteiras com aquilo que está fora delas. Qualquer imagem, lembrança ou ação, deve ser entregue ao circo e convertida em espetáculo. Não existe escapatória: toda tentativa de fuga, por mais liberdade momentânea que carregue, levará por fim à própria captura (as barras sobrepostas ao quadro são presença constante na obra). Logo, não seria justamente nos desvios e omissões dessa lógica, malgré tout, que se encontraria o sentido profundo das imagens de Ophuls, isto é, o de provocar vibrações, desequilíbrios e revoluções para que o espetáculo não se feche por completo?