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Cap 3 – LA RONDE: A RONDA DAS IMAGENS

3.2. Cinema e teatro

3.2.2. Reflexividade e reflexão

Ao se tomar os letreiros iniciais como primeiros elementos constitutivos do filme e, por conseguinte, de suas possíveis significações ulteriores, a teatralidade de La ronde adquire uma conotação profundamente reflexiva254. As cartelas possuem bordas                                                                                                                

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Aumont define o antecampo como um “outro fora-de-campo mais radical [...]: aquele onde está o câmera, e que nem sempre pertence ao mesmo espaço ficcional que o campo” (AUMONT, Jacques. O olho

interminável, p. 41). Para uma exploração do conceito no âmbito do cinema documental contemporâneo,

conferir as pesquisas recentes de André Brasil (por exemplo, BRASIL, André. “Bicicletas de Nhanderu: lascas do extracampo”. In: Devires – Cinema e Humanidades, v. 9, nº. 1, jan./jun. 2012, pp. 98-117; e “Formas do antecampo: performatividade no documentário brasileiro contemporâneo”. In: Revista Famecos, v. 20, nº. 3, set./dez. 2013, pp. 578-602).

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A relação entre os créditos e a forma da obra remetem ao seguinte comentário de Gilles Deleuze (A

imagem-movimento – cinema 1. Tradução de Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 42):

“Analisando certos filmes de Hitchcock, François Regnault assinalava em cada um deles um movimento global ou uma ‘forma principal, geométrica ou dinâmica’, que podiam aparecer em estado puro nos créditos: ‘as espirais de Vertigo, as linhas quebradas e a estrutura contrastante a preto e branco de Psycho, as coordenadas cartesianas em flecha de North by northwest...’. E os grandes movimentos desse filme talvez sejam por sua vez componentes de um movimento ainda maior, que exprimiria o todo da obra de Hitchcock, e a maneira como essa obra evoluiu, mudou. Mas não menos interessante é a outra direção na qual um grande movimento, voltado para um todo que muda, se decompõe em movimentos relativos, em formas locais voltadas para as posições respectivas das partes de um conjunto, para as atribuições a pessoas e objetos, para as repartições entre elementos”.

caligráficas, em forma de arabescos indomáveis, linhas que rodopiam e se cruzam sem cessar até se encontrarem ciclicamente nas bordas do quadro. Esse padrão remete ao próprio princípio estético das imagens, um movimento contínuo entre os diversos personagens que se cruzam e se separam através do fio condutor tecido pelo narrador. Ao mesmo tempo, são letreiros bastante artificiosos que colocam em evidência, através da caligrafia, a dimensão sensível que constitui toda linguagem. O que interessa, aqui, é analisar de que modo a mise en scène do filme transborda numa dimensão crítico-reflexiva, fortemente consciente da fabricação cinematográfica e suas possibilidades.

Nesse sentido, a teatralidade retorna como atributo fundamental da composição visual de La ronde. É o caso, por exemplo, da sequência de abertura: o narrador age com desenvoltura, se veste durante o plano-sequência, atravessa o palco dramático, passa por vários instrumentos de filmagem. As especificidades teatrais da cena, desde seus elementos decorativos até os modos de aparição do narrador, constituem reflexões sobre a natureza da imagem cinematográfica. Ao valorizar a consciência crítica sobre a sua própria fabricação, tais reflexões contribuem para o engajamento do espectador com o processo de feitura e fruição do filme. Esse também é o caso, já mencionado, dos muitos comentários direcionados à câmera, em posição frontal; da existência singular do carrossel, espaço que enfatiza os procedimentos autorreflexivos e os gestos da encenação, além de servir como clara alegoria à construção ou circulação das imagens; dos objetos que chamam atenção para o processo de filmagem, como a claquete usada para introduzir um dos episódios; ou das coreografias lúdicas propostas através do narrador-personagem.

A longa duração dos planos contribui para levar essa teatralidade ao limiar da reflexividade (das fronteiras entre o cinema, o teatro e a vida, os reflexos de suas diferentes leis). O caso mais extremo dessa duração é, novamente, a sequência de abertura, que prossegue sem cortes, como dito, por cinco minutos. Cabe observar que se, no modelo clássico, a duração excessiva pode ser indesejada, por colocar em risco a transparência255 da cena, neste caso, a distensão temporal apenas prolonga o jogo fascinante da mise en

scène que não cessa de renovar, na fluidez e na teatralidade, o profundo encanto das suas

musas – como o canto irresistível das sereias. Essa mise en scène não torna as imagens transparentes, nem opacas, mas sim translúcidas, como cristais capazes, a uma só vez, de refletir e transformar as imagens fascinantes que penetram na sua superfície. No fundo,

                                                                                                               

esse jogo entre ilusão e anti-ilusão culmina nas permutas entre o narrador, o espectador e os personagens.

De modo geral, a unidade estética do filme apresenta certa contraposição entre a dimensão temática – que retoma modos de ser predominantes do passado (as personalidades, as emoções, as vestes, os cenários, os elementos acessórios, os figurinos, as relações de poder, os problemas sociais, as questões de gênero etc.) – e o desenvolvimento formal, marcado por práticas e dispositivos profundamente modernos (o teatro barroco e expressionista, o cinema, a metalinguagem, o filme dentro do filme, a autorreflexividade). Esses dois aspectos parecem convergir para o excesso de artifício teatral, lugar onde qualquer anacronismo pode renovar as suas potências visuais através dos aspectos sensíveis que o constituem (formatos, detalhes, ornamentos).

É claro que a reflexividade teatral encontra várias manifestações textuais ao longo da obra. Ao introduzir o relato, por exemplo, o mestre de cerimônias aciona a valsa tema e entoa o lúdico refrão (-“Giram, giram, meus personagens”) que se repetirá com variações ao longo do filme. Refrão reflexivo que não aponta apenas a estrutura circular da obra, como também a relação do diretor com seus personagens. Além disso, permeia as próprias condições de produção, pois, segundo relato de Annenkov, o refrão contagiou alegremente toda a equipe durante os dias de filmagem256. Por fim, refrão profundamente ambíguo, que joga semanticamente com seu universo reflexivo, como explica Allan Williams:

Um trocadilho importante [...] se perde na tradução. A expressão francesa para “fazer um filme” é tourner un film, virar o filme. Então, quando Walbrook canta no início “tournent, tournent, mes personnages”, ele se refere tanto ao giro deles no carrossel (nas suas próprias “vidas”) quanto ao fato deles fazerem um filme, que por sua vez vai proceder em grandes e pequenos círculos. No final Walbrook diz “la ronde est fermée”, o que pode significar tanto “o carrossel está desligado” quanto “o círculo está fechado (completo)”257.

Quando o narrador anuncia a prostituta, ela entra em cena e o convida: -“Você vem, bonito?”. Ele responde dizendo: -“Eu não estou no jogo. [...] Eu dirijo a ronda”. A palavra

jogo pode ser entendida, a princípio, como o círculo amoroso propriamente dito e, neste

caso, o narrador está de fato posicionado no exterior, limitando-se a observar e realizar certas intervenções no fluxo. Mas ao se ampliar a compreensão de jogo para todo o espaço                                                                                                                

256 Cf. ANNENKOV, Georges. Max Ophuls. 257

WILLIAMS, Alan. “The Circles of Desire – Narration and Representation in ‘La Ronde’”. In: Film Quarterly, vol. 27, nº. 1, outono de 1973, p. 39 (Tradução nossa).

da cena, da ficção e do filme, o personagem ocupa uma posição algo paradoxal, devido ao fato de ele negar, do interior deste espaço, a sua participação no mesmo. Tal contradição é a grande potência de uma dimensão reflexiva que não seja meramente tautológica. Só assim é possível diluir as fronteiras entre dentro e fora, entre a vida e a arte, entre o ser e o nada, até o ponto de conservar em contínua passagem os elementos (históricos, sensíveis) que atravessam a imagem. É nesse limiar – entre dentro e fora do filme – que caminha o narrador, ao organizar a construção de um discurso que, todavia, envolve a ele próprio; e ao interferir nos destinos dos corpos e das imagens, inclusive de si mesmo. Stam diz que:

também os cineastas criaram textos nos quais o diálogo contínuo entre o autor implícito e o espectador é tão importante quanto a própria história. Conflitos de

amor (1950), de Max Ophuls, oferece um exemplo clássico. O “anfitrião” do filme

(Anton Walbrook) é claramente um dublê autoral. No começo do filme, ele se apresenta diretamente para a audiência [...]. A ubiquidade e a onisciência do anfitrião, fica claro, deriva da sua relação especial com os poderes mágicos do dispositivo cinematográfico. Em vários momentos, ele passa por equipamentos de estúdio e parafernálias fílmicas. Vemos ele manipular um holofote a girar a manivela do seu carrossel metafórico. Seu discurso reforça o seu poder de evocar a história, efetuar mudanças de estação, satisfazer seus personagens, alterar a iluminação, convocar músicas. Em certo ponto, vemos ele numa ilha de edição onde ele desenrola um rolo de filme, o examina, e então corta fisicamente o que tomamos por uma cena de sexo explícito258.

Enfim, cabe observar que a teatralidade do filme possui uma natureza fundamentalmente moderna, associando-se a práticas importantes, como o teatro brechtiano. O narrador orienta a prostituta do carrossel a se posicionar contra determinado muro e aguardar o sexto soldado da fila (Fig. 3.36-38). Assim fazendo, ele não apenas demonstra um conhecimento privilegiado sobre os acontecimentos do relato, como também torna evidente sua preocupação em controlar (e garantir) o funcionamento da ronda. No início do episódio “A moça e o soldado”, ela está encostada ao muro indicado previamente e nele permanece enquanto conta em voz alta os soldados que passam. Ela espera pelo sexto, conforme as orientações do mestre de cerimônias que, por sua vez, refletem as próprias instruções que um diretor transmite à sua atriz sobre como atuar.

                                                                                                               

Fig. 3.36-38: Aparições do narrador são marcadas pela frontalidade e pelo endereçamento direto.

Aqui, ele introduz o primeiro personagem da narrativa...

...e orienta os seus gestos.

Esse gesto (contar os soldados, esperar pelo sexto, conforme as instruções recebidas, segundo o “roteiro” previsto) carrega uma mistura sutil entre duas existências sensíveis distintas, mas inseparáveis: a da atriz cujo corpo está na cena e a da personagem por ela encarnada. Em última análise, tal aspecto remonta ao importante conceito de gestus, trabalhado por Brecht para revelar, ao mesmo tempo, as motivações dramáticas e as fabricações narrativas presentes nas ações, as emoções e relações sociais dos personagens em cena. Assim, a submissão da prostituta ophulsiana ao comando do narrador contém seu próprio comentário crítico que é, ao mesmo tempo, posicionamento político, social, e engajamento ficcional da atriz/personagem.

O mestre de cerimônias aparece novamente ao final do caso amoroso entre o soldado e a prostituta, agora fantasiado como tocador de corneta do exército (-“Perdão, é meu primeiro disfarce”). Fazendo soar seu instrumento, ele se esforça por encerrar com rapidez o encontro do casal para que a ronda possa continuar. De fato, sua preocupação é com a demora do soldado, que poderia comprometer a narrativa, como ele explicita em seguida (-“Um minuto a mais e a ronda teria parado”). No entanto, o mais interessante é

perceber que ele articula modos sempre originais e falsários de se integrar às cenas, transformando-as.

Rosenfeld diz que, no teatro barroco, “os personagens entregam-se ao disfarce e ao equívoco. [...] O Barroco ecoa o sermão da fugacidade deste mundo enganador. Tudo é máscara e disfarce”259. Com efeito, a predileção do apresentador pelos disfarces resulta, no nível cenográfico, num complexo jogo de aparências que coloca em evidencia as relações do suposto mundo real com a sua contraparte ilusória construída pela arte. Ao vestir diferentes máscaras ao longo do relato (corneteiro do exército, escrivão, cocheiro, gerente de restaurante, mordomo, contra-regra), o mestre de cerimônias confessa a dimensão de engodo que constitui a sua própria existência sensível e, por extensão, do relato. Nessas aparições, a mise en scène possui uma grande intensidade autorreflexiva, presente não apenas no teor das palavras proferidas, mas, principalmente, nos gestos e tons carregados de artificialidade teatral (Figuras 3.39-3.44). “A imensa sensualidade do teatro barroco ensina-nos [...] que o mundo dos sentidos é irreal como o teatro. Face ao mundo, porém, o teatro tem a honestidade de confessar-se teatro e de saber que é engano”260.

É evidente que, em certo sentido, tudo não passa de uma trama tautológica, pois todo imprevisto e todo engano é absorvido pela ronda das imagens; estava escrito no roteiro desde o princípio, por assim dizer. Todavia, a atitude falsificadora do apresentador revela uma instabilidade do espetáculo (e do registro) ficcional, no qual cada mínimo desvio pode ser fatal. Na vida, como no filme, tudo pode de repente fenecer. Deve fenecer, inelutavelmente. Mas é justamente devido a essa insuficiência (da vida, da representação) que se deve continuar a busca, prosseguir na ronda das imagens e girar mais uma vez o carrossel. O fundamental é manter o mundo em movimento, em criação, em rotação, e este parece ser o papel simbólico e sensível do apresentador no nível da organização das cenas.

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ROSENFELD, Anatol, O teatro épico, pp. 59-60.

Fig. 3.39-44: Os muitos disfarces do mestre de cerimônias. Um corneteiro do exército.

Um escrivão.

Um cocheiro. Um gerente de restaurante (maître).

Um mordomo. Um contra-regra.

Como visto, desde A comédia do dinheiro Ophuls utiliza a figura do mestre de cerimônias de maneira bastante singular.  Tal mediador interage com os elementos da cena e parece marcar a própria função do diretor dentro dos filmes, jogando com os limites do olhar e da criação na representação artística. Em La ronde, por exemplo, o apresentador funciona de modo fortemente reflexivo, questionando e desvelando as ilusões que constituem o filme. Esses aspectos alcançarão uma forma ainda mais complexa na derradeira obra do cineasta, Lola Montès, na qual um apresentador circense articula as imagens da vida de uma cortesã vienense aos seus atos dentro do fluxo espetacular.