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Cap 2 MAX OPHULS, LE METTEUR EN SCÈNE

2.3. A comédia do dinheiro

Em 27 de fevereiro de 1933, o Reichstag alemão foi incendiado, acontecimento diretamente ligado à ascensão do partido nazista ao poder. Devido à sua origem judaica, Ophuls temia pela segurança de si mesmo e da família, e por isto abandonou o país no mesmo ano. Seguiu para o exílio na França, onde dirigiu um filme hoje desaparecido, On a

volé un homme (1934). A partir de então, buscou trabalho onde havia oportunidade. Na

Itália, dirigiu A senhora de todos (1934), adaptação de um romance de Salvator Gotta encomendada pela incipiente Novella Film, de Angelo Rizzoli (que, mais tarde, produziria

Umberto D. (Itália, 1952), de De Sica, The barefoot contessa (A condessa descalça, EUA,

Itália, 1954), de Joseph L. Mankiewicz, La dolce vita (A doce vida, Itália, França, 1960) e

8 1/2 (1963), de Fellini, dentre outros). De volta à França, Ophuls dirigiu dois pequenos

episódios musicais para a série de cinefonias organizada por Émile Vuillermoz, e o longa- metragem La tendre ennemie (A doce inimiga, França, 1936). Com este último ainda incompleto, partiu para Amsterdã, com o intuito de assumir um projeto organizado pela prestigiosa família Tuschinski em comemoração ao aniversário de quinze anos do Teatro Tuschinski. A obra em questão, Komedie om geld (A comédia do dinheiro, 1936), foi o filme mais caro produzido nos Países Baixos até então, com custo total de 150 mil florins – o que adquire certa ironia dado o título da obra e o retorno irrisório obtido na bilheteria, meros dez mil florins186.

A trama em si é bastante simples: um bondoso mensageiro de banco, Brand, perde uma enorme soma de dinheiro que fora encarregado de depositar. É demitido, passa por momentos difíceis, chega a cogitar suicídio. No momento exato em que ele tenta tirar a própria vida, a direção do banco resolve reassimilá-lo no quadro de funcionário, desta vez, como diretor, a fim de conduzir um projeto populista encabeçado por um “homem do povo”. Contudo, o poder e a riqueza recém-adquiridos suprimem a sua personalidade, antes modesta e generosa, até o ponto de afetar as suas relações familiares, principalmente com a filha. Consciente da sua própria tragédia humana, ele pede demissão, mas não sem antes encontrar o dinheiro extraviado, no interior de um bueiro, e enviar para trás das grades o “vilão da história”, um figurão do banco que havia se apropriado indevidamente do montante do seguro. Van Beusekom descreve o filme como

uma parábola sobre a mágica simbólica do dinheiro numa sociedade capitalista focada no crédito e na credibilidade. Os episódios são costurados por um “mestre de cerimônias”, ou apresentador, (Edwin Gubbins Doorenbos) que se dirige a nós diretamente, posicionado em um palco circense virtual. No prólogo, ele nos instiga a acompanhar a personagem principal: o mensageiro de banco Brand, que perde trezentos mil florins187.

Van Beusekom observa, também, que o paradoxo financeiro ligado ao custo elevado (ao menos para os padrões holandeses) de uma “comédia sobre o dinheiro” teve                                                                                                                

186 Cabe observar, no entanto, que essa quantia é pequena, se comparada à média das produções de

Hollywood ou do UFA.

187

VAN BEUSEKOM, Anske. “Komedie om geld / the trouble with money”. In: MATHIJS, Ernest. The

papel decisivo na reputação do filme após o seu lançamento188. De fato, se qualquer filme carrega, no fundo, a questão do dinheiro189, pois o próprio dispositivo cinematográfico envolve questões monetárias e econômicas complexas em todas as suas dimensões, aqui essa temática encontra-se duplicada na própria construção narrativa, constituindo, ao mesmo tempo, um elemento interno (do drama) e externo (das condições de produção) no desenvolvimento da obra. Essa reflexividade, porém, se torna ainda mais complexa através das intervenções e comentários realizados pelo mestre de cerimônias ao longo do relato.

Uma dessas intervenções ocorre quando o funcionário demitido é contratado novamente pelo banco, cuja diretoria desejava um membro oriundo de camadas populares, alguém que entendesse as necessidades do povo para comandar a construção de um conjunto habitacional – mais tarde, fica claro que tudo não passava de uma jogada publicitária e que, de fato, a imagem do povo só importa enquanto cifra ao capital. Um dos diretores, o Sr. Moorman, faz a oferta do novo cargo para o ex-mensageiro:

- “Neste caso, não se trata de dinheiro, mas de crédito. Dinheiro nunca é problema. O problema é fazer as pessoas acreditarem que existe dinheiro aqui. Elas devem pensar que sim. E se alguém perguntar ‘tem dinheiro?’, e a resposta for ‘não’, ainda assim as pessoas devem ser convencidas de que ‘sim, temos dinheiro!’. Então, o que você diz, aceita o cargo, sim ou não?”.

É nesse momento, de plena reviravolta narrativa, que o apresentador aparece, deslocando completamente o fluxo espaço-temporal do relato. Após um corte, a arena circense é mostrada. Nela, o mestre de cerimônias (Fig. 2.01-04) canta uma música irônica sobre a necessidade de se dizer “sim” no momento correto. Sua aparição tem um caráter predominantemente didático e serve, ao menos inicialmente, para pontuar a narrativa num de seus momentos cruciais. Além disso, esse acontecimento chama atenção para os próprios mecanismos de produção ou representação fílmica, cuja ambiguidade reside, aqui, no fato de que a grande ficção financeira do mundo, que sustenta as corporações bancárias e as indústrias cinematográficas, encontra algum correlato na necessidade de convocar (massivamente) a crença das pessoas para a manutenção de uma ilusão fabricada.

                                                                                                                188

VAN BEUSEKOM, Anske. “Komedie om geld / the trouble with money”, p. 61.

Fig. 2.01-04: O mestre de cerimônias de A comédia do dinheiro.

Todavia, interessa mais observar que as aparições do narrador são marcadas por uma organização da mise en scène bastante singular, quando comparada ao restante do filme. Se a grande maioria do relato apresenta uma tendência algo naturalista, embora constantemente deslocada pela tendência lírica característica de Ophuls, as cenas na arena circense carregam uma boa dose de exibicionismo e autodesvendamento. Com efeito, o narrador atua de maneira frontal e direta em relação à câmera, como quem se dirige para aquele que olha, isto é, o espectador. Além disso, toda a cenografia contém uma radical artificialidade, desde os cenários e os figurinos até os gestos do personagem. Esse aspecto vai transbordar, finalmente, na última aparição do narrador, na qual ele reverte magicamente todo o destino narrativo da obra.

Assim, ao final do relato, o pai inocente é preso como cúmplice do vigarista Moorman, figurão do banco aonde o primeiro trabalhava. Antes, Brand havia devolvido o dinheiro encontrado, o que significaria prisão certeira para os dois homens, uma vez que Moorman havia embolsado a quantia fornecida pelo seguro. No tribunal, a sentença é pronunciada sem perdão: um ano de prisão para o ex-mensageiro. Parece um desfecho,

mas não. O mestre de cerimônias realiza, agora, a sua intervenção mais elaborada. Se, até então, ele se contentara em tecer comentários musicais sobre o filme, agora opera no sentido de alterar decisivamente o destino dos personagens. Jogando com a convenção clássica, para a qual o desfecho inconcluso – e antimoral, com a prisão de um inocente – seria indesejado, ele diz: -“Senhoras e senhores, não deixaremos vocês irem para casa desse jeito. Senhoras e senhores, vocês acham que não sabemos o que devemos à nossa estimada audiência?” E prossegue, com didatismo crescente: -“O pobre Brand era inocente, é inocente, e será inocente até o fim de seus dias.” E conclui: -“Precisamos apenas encontrar uma explicação para o misterioso corte na sua carteira”. Dito isso, a câmera se afasta para um plano-geral, situando o narrador numa escadaria, em cujas laterais estão distribuídas seis imagens emolduradas. Enquanto aponta a sua bengala para uma delas, que recebe um close, ele continua: -“Vocês se lembram desta cena, senhoras e senhores, prestem atenção”. Em seguida, com admirável liberdade formal, revisita a cena na qual um garoto, enviado para transmitir um recado a Brand, aproveitara-se de um momento sozinho para cortar a carteira do funcionário.

O corte na carteira é também o corte da montagem, pois a cena não fora apresentada na sua totalidade da primeira vez. Algo permanecera oculto, tanto ao espectador quanto aos personagens. Só agora, na elucidação operada pelo narrador, descobre-se que o dinheiro caíra da carteira para o bueiro através de um furo. Tudo converge, então, para o cenário circense, onde o apresentador carrega a criança no colo, exaltando a bondade da sua alma infante, a alteza de toda justiça. Então, pergunta ao garoto o que ele quer fazer. E este responde que vai “dar um final feliz para este filme”, e segue para confessar a sua própria responsabilidade na história, resultando na liberação imediata de Brand. No encerramento, o narrador executa mais uma canção: desta vez, cercado pelos demais personagens, ele transmite a “moral da história”. Trata-se de um desfecho que concilia e purifica o espetáculo, ecoando Burlesque on Carmen (EUA, 1915), de Chaplin, e antecipando A divina comédia (Portugal, França, Suíça, 1991), de Manoel de Oliveira, para citar apenas dois exemplos.

Robert Stam190 propõe uma classificação dos três modos possíveis da auto- reflexividade na arte anti-ilusionista: o lúdico, o agressivo e o didático. Certamente, o narrador de A comédia do dinheiro é, ao mesmo tempo, lúdico (um impulso de brincar) e didático (um desejo de ensinar). Não por acaso, está situado no cenário circense e, já na                                                                                                                

abertura do filme, faz um convite cantado dirigido ao espectador: -“Venham! Venham todos vocês! Esta noite vamos mostrar um filme para jovens e velhos, para ricos e pobres. Um filme que faz pensar, um filme que educa.” A metalinguagem é evidente: o personagem convida o público para assistir ao próprio filme do qual faz parte – um filme que educa, isto é, um filme didático. Mas também a mise-en-scène é profundamente reflexiva e o cenário do circo chama atenção para as raízes espetaculares do cinema. Ademais, o corpo do apresentador, exibido frontalmente, em trajes antiquados, introduz um forte fator de teatralidade dentro da obra.

Os críticos contemporâneos ao filme não deixaram de perceber essa teatralidade, associando-a diretamente ao teatro bretchiano ou, ainda, à adaptação de A ópera dos três

vinténs (1931), realizada por Pabst. Porém, talvez devido à tendência dos debates da época

de opor radicalmente o teatro ao cinema, tomou-se essa semelhança fundamentalmente como fraqueza, utilizando-a para depreciar a obra. Pelo contrário, acredita-se que esse é um dos aspectos mais potentes do filme, fazendo convergir a herança teatral do cineasta e seu apreço pelo espetáculo (popular) através de estratégias originais de construção cênica e narrativa. Mais ainda: valorizando uma dimensão propriamente histórica (a saber, a da reflexividade técnica ou da técnica reflexiva) do filme, Ophuls joga com as emoções e destinos que fazem parte do mundo dos homens (ou da sua fabricação). Em todo caso, essa abertura ainda está longe de alcançar a profundidade, a fluidez e o grau de unidade estética das últimas obras do cineasta, uma vez que se limitam à fragmentação demasiado intelectual do enunciado fílmico pela figura do personagem-narrador.