• Nenhum resultado encontrado

Cap 1 – IMAGEM E CRISE: OPHULS E O CINEMA MODERNO

1.1. Teorias do cinema moderno

1.1.3. Tempo e movimento: as duas imagens

Publicado em 1982, o “testamento cinematográfico” de Daney corresponde, como mencionado, a uma grande abertura metodológica e conceitual em relação à atividade crítica no cinema. Parte dessa abertura se reflete, mais claramente, nos profícuos debates estabelecidos na redação dos Cahiers sob a sua chefia. Ao assumir o cargo, em 1974, período posterior aos chamados anos maoístas da revista, ele passa a publicar uma série de entrevistas ou artigos com filósofos e semiólogos, como Michel Foucault, Jacques Rancière, Marc Ferro, Christian Metz, Roland Barthes e Gilles Deleuze. Este último, em diálogo bastante direto com teóricos do cinema, como Bazin, Heath, Bordwell, Kracauer e Burch, além do próprio Daney, opera um forte combate às premissas da semiologia e à teoria do Dispositivo (formulada originalmente por Jean-Louis Baudry), recusando, em teoria, qualquer redução da imagem cinematográfica a estruturas psicológicas do eixo Freud-Lacan.

                                                                                                                41 DANEY, Serge. A rampa, p. 233. 42 DANEY, Serge. A rampa, p. 234. 43

DANEY, Serge. A rampa, p. 233.

Com efeito, a publicação do livro Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia45, escrito em parceria com Félix Guattari, já representava uma influência significativa, embora indireta, no campo da teoria fílmica. Nele, os autores criticam fortemente o “imperialismo analítico do Complexo de Édipo”46, entendido como uma forma de “colonização continuada por outros meios”47. Nesse sentido, a partir do marxismo freudiano de Reich, eles confrontam dois dos principais pilares da semiótica do cinema: Saussure e Lacan. Em relação ao primeiro, tentam deslocar a tendência das metáforas linguísticas no discurso cultural para um léxico formado por fluxos, energias e máquinas de desejo. Para se opor ao segundo, argumentam que a narrativa freudiana do Édipo tem servido como um mecanismo de repressão fundamental do capitalismo patriarcal, agindo contra qualquer desejo de natureza indomável e polimorfa, considerado excessivo pelas rédeas da racionalidade capitalista. Como afirma David Rodwick, em 1997, O anti-Édipo é capaz de “criticar e demolir as fundações saussarianas e lacanianas nas quais [...] a maioria da teoria do cinema e da cultura contemporânea se baseiam”48.

Apesar da grande importância da obra na renovação do pensamento ocidental pós- estruturalista, é, sem dúvida, no seu grande tratado teórico dedicado ao cinema – isto é, os dois volumes, publicados na década de 1980, intitulados A imagem-movimento e A

imagem-tempo – que a influência de Deleuze na teoria fílmica se torna mais evidente.

Neles, o filósofo parte de aproximações entre a emergência do cinema e a crise da psicologia tematizada por Bergson (cf. Matéria e memória) para conceituar e explorar os regimes da imagem homônimos aos dois tomos e que correspondem, grosso modo, às formas singulares do cinema clássico e do cinema moderno.

O primeiro seria organizado pelo encadeamento das ações, pela conexão orgânica entre as imagens e pelo desenvolvimento teleológico de uma ordem narrativa na qual as figuras mostradas se prolongam nas ações (ou reações) dos personagens, e fazem passar da percepção à ação. Esse regime projetaria consigo “um modelo de verdade (a verdade é o todo)”49, no qual “as imagens não se encadeiam sem se interiorizarem num todo, que se exterioriza ele mesmo em imagens encadeadas”. Esse modelo “supõe que haja relações comensuráveis ou cortes racionais entre imagens, na própria imagem, entre a imagem e o                                                                                                                

45

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010.

46 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, p. 39. 47 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, p. 226.

48 Apud STAM, Robert. Reflexivity in film and literature – From Don Quixote to Jean-Luc Godard. Ann

Arbor: UMI Research Press, 1985, p. 257.

todo”50. O tempo é representado apenas de modo indireto, sempre dependente das relações encontradas ou construídas no espaço.

A imagem-tempo, por sua vez, romperia com o esquema sensório-motor da imagem-movimento. Menos sujeita à linearidade narrativa pautada pela lógica causa-efeito, essa categoria suspende o vínculo das ações e reações para fazer surgir novas sensibilidades e modos de percepção. Nela, “não há mais totalização, porque o tempo já não decorre do movimento para medi-lo, porém se mostra nele mesmo para suscitar falsos movimentos”51. Isso não significa, contudo, “que o movimento tenha cessado, mas [sim que] a relação entre movimento e tempo se inverteu. O tempo não resulta mais da composição das imagens-movimento (montagem), ao contrário, é o movimento que decorre do tempo”52. O cinema se torna dispersivo, aleatório, passa a oferecer sensações óticas e sonoras puras, nas quais o tempo emerge diretamente, enquanto duração. Em vez da representação fílmica, o filme enquanto evento.

A imagem interrompida, não mais prolongada em movimento, coloca em relação dois termos diversos através do seu fluxo: o atual e o virtual. “A imagem atual, cortada de seu prolongamento motor, entra em relação com uma imagem virtual, imagem mental ou em espelho”53. Por um lado, as imagens se abrem nas zonas de lembranças, nos sonhos, nos pensamentos. Por outro, se tornam estados psicológicos e podem mesmo retomar o fluxo do movimento. Enquanto o atual seria algo da ordem do real, do físico, do objetivo, do descritivo (sem ser, conclusivamente, nada disto), o virtual, por sua vez, estaria próximo do mental, do imaginário, do subjetivo, da narração54.

Nesse sentido, o filósofo trabalha o conceito da imagem-cristal como uma espécie de aprofundamento da imagem-tempo, isto é, sua expressão máxima, na qual a imagem atual teria uma imagem virtual correspondente, como um duplo, como um reflexo no espelho. A “irredutibilidade [da imagem-cristal] consiste na unidade indivisível de uma imagem atual e de ‘sua’ imagem virtual”55. Assim, o regime da imagem-tempo é também

                                                                                                                50

DELEUZE, Gilles. Conversações, p. 81.

51

DELEUZE, Gilles. Conversações, p. 82.

52 DELEUZE, Gilles. Conversações, p. 69.

53 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo – Cinema 2. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo:

Brasiliense, 2009, p. 61.

54

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo, p. 61.

“um regime cristalino [...], que procede por cortes irracionais e só tem reencadeamentos, e substitui o modelo da verdade pela potência do falso como devir”56.

Cabe observar que, à maneira de Bazin e Daney, Deleuze associa os novos critérios formais da produção e da percepção cinematográfica ao pós-guerra, conforme explicado no prefácio à edição inglesa do segundo volume:

Por que a Segunda Guerra Mundial é tomada como uma quebra? O fato é que, na Europa, o período pós-guerra aumentou significativamente as situações às quais não sabemos mais como reagir, em espaços que não sabemos mais como descrever. [...] As situações podiam ser extremas ou, pelo contrário, pertencentes à banalidade cotidiana ou ambas as coisas de uma vez: o que tende a desmoronar, ou ao menos perder importância, é o esquema sensório-motor que constituía a imagem-ação do antigo cinema. E graças a esse afrouxamento do vínculo sensório-motor, é o tempo, “um punhado de tempo no estado puro”, que emerge na superfície da tela. O tempo deixa de ser transmitido pelo movimento, ele aparece em pessoa, e ele próprio faz surgir falsos movimentos. Por isso, a importância da falsa continuidade no cinema moderno: as imagens não estão mais ligadas por cortes racionais e pela continuidade, mas sim religadas através da falsa continuidade e dos cortes irracionais57.

Com efeito, existem muitas proximidades possíveis entre as ideias de Deleuze e as de Bazin, a começar pela leitura algo estética do pós-guerra, focada principalmente nos desdobramentos formais e perceptivos do período. Em artigo para a revista Iris, Jon Beasley-Murray58 aponta as principais afinidades entre os dois pensadores: predileção pelos planos longos, interesse na mimesis e na ontologia, e a crença de que “a especificidade do cinema continua a ser o seu desdobramento da imagem no tempo real que se torna o tempo vivido do pensamento e do corpo”. Além disso, Deleuze parece herdar de Bazin certo culto do autor, que corresponde à ênfase em cineastas individuais, método bastante “surpreendente para um filósofo que sempre se afastou de qualquer noção de um ‘sujeito’ empírico ou transcendental”59. Outras aproximações podem ser encontradas, por exemplo, no belo artigo de Diane Arnaud intitulado “From Bazin to Deleuze – A matter of depth”60. Nele, a autora investiga a reapropriação e a consequente renovação operada por Deleuze sobre várias das noções centrais ao pensamento baziniano,                                                                                                                

56 DELEUZE, Gilles. Conversações, p. 86. 57

DELEUZE, Gilles. Cinema 2: The time-image. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989, p. xi.

58

BEASLEY-MURRAY, Jon. “Whatever happened to neorealism? – Bazin, Deleuze, and Tarkovsky’s long take”. In: Iris, nº. 23, Spring 1997, pp. 37-52.

59 STAM, Robert. Reflexivity in film and literature, p. 259.

60 ARNAUD, Diane. “From Bazin to Deleuze – A matter of depth”. In: ANDREW, Dudley; JOUBERT-

LAURENCIN, Hervé (Orgs.). Opening Bazin – Potwar film theory & its afterlife. New York: Oxford University Press, 2011, pp. 85-94.

como a profundidade de campo, o plano-sequência, a duração, a função de realidade e o

acréscimo de teatralidade.