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Cap 3 – LA RONDE: A RONDA DAS IMAGENS

3.2. Cinema e teatro

3.2.1. Fronteiras e frontalidades

Já na abertura da obra, o mestre de cerimônias entra em cena contra a luz. Somente a silhueta de seu corpo é visível, enquanto, ao fundo, toca a melodia tema do filme, composta por Oscar Straus250. Acompanhado por um travelling lateral, ele caminha sozinho pelo espaço repleto de objetos do artifício e sobe um pequeno lance de escadas (um elevado, um palco) que o leva para o nível da rua. Então, começa a falar sobre si e sobre o filme, com discurso profundamente reflexivo:

-“E eu. Quem sou eu nesta história? A ronda? O autor? O apresentador? Um passante? Eu sou você. Na verdade, alguém entre vocês. Eu sou a personificação do seu desejo, do seu desejo de saber tudo. As pessoas sempre sabem apenas um lado da realidade. E por quê? Porque eles veem apenas um lado das coisas. Mas eu vejo todos os aspectos, porque vejo por todos os lados, o que me permite estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Em todos os lugares! Mas onde estamos? Num palco? Num estúdio? É difícil de dizer. Em uma rua? Oh! Estamos em Viena. Em 1900. Vamos mudar o traje”.

É verdade que aqui, como em outros momentos, o texto está imediatamente carregado de metalinguagem. Altamente reflexivo, ele chama atenção para a composição da própria mise en scène do filme, que ao desconstruir o artifício no mesmo gesto que o fabrica, opera um contínuo desvelamento da natureza ilusionista inseparável de toda ficção e se opõe aos pressupostos de uma estética naturalista. A artificialidade inerente à cena é problematizada em outras frases do mestre de cerimônias: a respeito do espaço fictício                                                                                                                

250 Compositor austríaco de operetas e músicas para filmes, Straus (1870-1954) compôs algumas trilhas

musicais para Lubitsch, como as de The smiling lieutenant (O tenente sedutor, EUA, 1931) e One hour with

(“Onde estamos? Num palco? Num estúdio?”), da posição do espectador (“eles veem apenas um lado das coisas”) e do seu próprio papel no relato (“quem sou eu nesta história?”). Tal discurso, algo poético, parece brincar, de modo irônico, com as próprias convenções do cinema (e do teatro) clássico, com o “desejo de saber [e dar a ver] tudo” de que fala Aumont:

O teatro – à italiana ou antigo, e provavelmente também nas suas outras formas – assenta num princípio elementar: o espectador é alguém que “vê tudo”, no sentido anfibológico proposto por Christian Metz: vê tudo e está concentrado no ato de ver. Foi este grande princípio que o cinema adotou, mais do que as modalidades concretas da sua encarnação numa forma episódica, afinal de contas, da história e do teatro. Trata-se, pelo menos no cinema clássico, de garantir que o espectador veja tudo, que o veja confortavelmente e sem ambiguidades e, sobretudo, que o veja de maneira a não desejar outra coisa251.

Neste trecho, Aumont se refere estritamente aos modos de encenação do esquema clássico. Nesse sentido, deve-se esclarecer que importa mais, para esta análise, observar de que modo tais aspectos se associam às formas sensíveis do filme, desdobrando-se em uma teatralidade propriamente cinematográfica. Independente do teor das palavras do narrador, da sua linguagem verbal, é nos seus modos de aparição articulados na mise en scène que se encontra a grande potência estética da teatralidade de La ronde (Fig. 3.32-35).

Fig. 3.32-35: Na sequência de abertura… …o mestre de cerimônias caminha pelo cenário teatral…

                                                                                                               

…e coloca o seu traje galante. Em seguida, chega ao carrossel, cuja estrutura circular serve de metáfora visual para a ronda.

Portanto, é preciso observar a natureza profundamente reflexiva do carrossel ophulsiano. Ela se encontra, por exemplo, na exaltação do artifício, presente no tom de voz, no figurino e nos gestos do narrador-personagem; mas também na iluminação do espaço e na composição do cenário por onde ele circula. Seja qual for o teor das frases, ao interpelar ou provocar o público frontalmente, o mestre de cerimônias acentua a frontalidade da cena, instaurando nela uma espécie de tensão. À maneira do cinema batizado por Gunning como “de atrações”, importa constatar que a autonomia e o caráter exibicionista das cenas conferem à obra toda uma dimensão reflexiva. Em La ronde, esse traço encontra um poderoso instrumento formal no uso do plano-sequência, recurso que valoriza a duração das cenas e ressalta a contiguidade do espaço. Assim, pode-se antecipar algumas das palavras de Deleuze sobre Lola Montès, pois, também nesta obra, “todo o real […] se tornou espetáculo, conforme as exigências de uma percepção ótica e sonora pura. A cena […] se torna a unidade cinematográfica que substitui o plano ou constitui ela própria um plano-sequência”252.

Cabe observar que o primeiro plano – a primeira cena do filme – dura impressionantes cinco minutos, ao longo dos quais se descortina, paulatinamente, todo um jogo fictício. Vale citar, aqui, a diferença dessa espécie de carrossel cenográfico, carregado de lirismo e de harmonia, em relação ao maquinário circense de Lola Montès, cujo mecanismo é heterogêneo, efusivo, indomável. Enquanto o narrador caminha, sem cortes, o cenário é continuamente desvelado: o fundo falso, as cortinas, as velas, os holofotes, o estrado, a câmera, tudo se torna visível. À primeira vista, parece se tratar de um palco teatral, armado no meio da rua. Todavia, a rua também é um fundo falso, onde a cidade está pintada, reproduzida, representada. É como se toda denúncia da ilusão estivesse                                                                                                                

252

fadada, infalivelmente, a uma nova ilusão – uma ilusão mais abrangente – ou, ainda, a um existir sem existir, estritamente fictício e, por isto mesmo, real. Em todo caso, importa observar as imagens que se movem, dançam e falam, tão existentes como se vivessem (ou como fantasmas).

De modo mais sutil, a frontalidade está presente nos momentos em que os personagens olham de relance para a câmera, posicionam seus corpos em posição frontal, ou pronunciam alguma frase em direção ao antecampo253. Porém, deve-se ressaltar que toda a mise en scène do filme se constitui de maneira frontal ou fronteiriça, sendo que as cenas do restaurante, por exemplo, são registradas com os dois personagens enquadrados no sofá, com seus corpos constantemente voltados para a câmera. Também as imagens na cama, o enlevo dos amantes, o quarto conjugal, são cenas que prezam a frontalidade dos corpos. Não custa lembrar a proximidade etimológica entre as palavras fronte e fronteira: ambas derivam, ao menos de modo indireto, do vocábulo latino frons que significa “testa, sobrancelha, fachada, parte mais à frente”. Toda a frontalidade cenográfica seria, nesse sentido, uma fronteira, continuamente desfeita, recomposta e reinventada, entre os meios específicos do cinema e do teatro.