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Cap 4 – LOLA MONTÉS: A ANTI-VEDETE

4.2. As aparições da vedete

4.2.5. Enquanto isso, no purgatório

Em um texto resultante do seu encontro tardio com a obra ophulsiana, David Neves sugere que “a permanente integração dos temas da vida da cortesã com os quadros circenses dá a Lola Montès sua grandeza maior”305. Para o crítico e cineasta brasileiro, a busca pelo “teatro filmado”, obsessão recorrente do cinema europeu (especialmente o francês), “descobre agora um filão novo”, ou seja, o “circo filmado”. No caso de Ophuls, “o uso do picadeiro transcende de muito a visão simplória do ‘filme de circo’”. Antes,

estamos diante de uma versão metafísica da acrobacia, do ritmo e do esforço físico. Cada imagem, cada “anjo caído” breugheliano encarnado num anão ou num clown tem uma função altamente espiritual: o Mammoth Circus é a reconstrução terrestre do purgatório306.

                                                                                                               

304 A cenografia de Lola Montès e filmes semelhantes poderia ser pensada, assim, a partir do panóptico

foucaultiano, principal epistema da modernidade.

305

NEVES, David. “A via-sacra da cortesã Lola Montès”, p. 87.

Com efeito, além de toda a concepção grotesca da arena circense, povoada por “estranhos atores-artesãos”, por “anjos caídos” pictóricos, por figuras e gestos diabólicos, o modo de aparição da cortesã nos bastidores evidencia uma ideia de cansaço, de fadiga, de exaustão, resultantes da sua difícil apresentação. Nos corredores do proscênio – onde circulam, em meio à profusão festiva do circo, os corpos desgastados, os rostos abatidos, principalmente o da protagonista, mas também os dos seus criados, o do médico, o do palhaço – a ilusão do prazer se desfaz. Em suma, a mise en scène se carrega com certa melancolia e pesar (Fig. 4.47-52), emoções que não se fecham de modo algum nos bastidores, mas acabam por contagiar todo o espetáculo (culminando no plano final, no qual Lola está literalmente presa em seu camarim, deslocado para o centro da pista circular).

Desdobra-se, assim, um novo atributo das cenas-comentário: enquanto, no circo, Lola se esforça por “manter as aparências”, deixando escapar alguns poucos e pequenos gestos que revelam o seu desconforto, fora da arena circense, ela pode enfim descontrair a sua imagem e, ao fazê-lo, dar a ver os limites da sua própria existência espetacular (representação). Vale observar que toda a dimensão sacrificial antes descrita oferece possíveis aproximações com a perspectiva expurgatória sugerida por Neves, sendo os procedimentos de encenação, os movimentos ou obstruções, a iconografia circense, o chicote do narrador, as provações do corpo de Lola etc., índices para um ato de penitência.

Fig. 4.47: Nos bastidores circenses, a mise en scène carrega certa melancolia.

Fig. 4.48: Há certa exaustão oufadiga visível nos corpos e rostos, especalmente os de Lola.

Fig. 4.50: O encontro entre o médico e o palhaço, escritório abafado, possui um peso melancólico.

Fig. 4.51: O palhaço é triste e taciturno, fuma um charuto não expressa leveza ou alegria.

4.2.6. (Des)aparições

Como foi dito, é na diferença entre as reiteradas aparições de Lola na arena do circo que a mise en scène ophulsiana adquire maior singularidade estética, levando ao paroxismo a lógica da reprodução em massa e da representação espetacular. A imagem subversiva da vedete, sob o risco do aprisionamento ou esvanecimento no mecanismo de sua própria representação, não obstante, continua a aparecer com grande encanto formal. Colocadas, ao mesmo tempo, em contraste e conjunção com os demais registros, as cenas circenses levam a existência das imagens a um estranho enigma, segundo o qual não é preciso desprezar a beleza ou obstruir a fruição visual para fazer a crítica da construção cinematográfica. Basta (como se fosse simples!) torná-la excessivamente artificiosa, através de um maquinário profundamente espetacular de encenação. Interessa observar, aqui, o modo singular pelo qual as questões e os procedimentos do maquinário circense se manifestam ao longo do filme, bem como perceber suas semelhanças e transformações nas diferentes cenas.

Após o encontro entre o médico e o palhaço, o apito de M. Loyal penetra na cena, seguido da sua voz imponente: -“Buscando fazer um nome para si, Lola compreendeu que manter uma boa reputação estava fora de questão”. Então, Lola emerge de uma escada, por trás dos véus negros da cortina transparente, vestida como uma espécie de ninfa ou odalisca. Após beber o chá oferecido pelo criado, ela retira o manto e se senta numa grande concha rosada que começa a deslizar (novamente, o movimento está no maquinário, e não na atriz). Para acompanhar, a câmera se move devagar, operando um travelling diagonal que se afasta da ação, ao mesmo tempo em que se desloca para a direita, mostrando Lola através de uma placa de vidro coberta por véus, à maneira de um grande aquário de teatro, e realizando poses kitsch no interior deste (Fig. 4.53).

A cena remonta, talvez, a uma das obras mais célebres da Renascença, O

nascimento de Vênus (1485), pintado por Botticelli. Essa ideia, por sua vez, encontra

ressonância na referência a Venus com espelho307, de Ticiano, utilizada pelo pintor do rei, nos flashbacks.

De pé, num pequeno coreto suspenso que separa o primeiro aquário de um segundo, o mestre de cerimônias continua a descrever as aventuras da mulher. Quando ela passa, um corte fornece o ponto de vista conjunto dos dois personagens (ele a interpela para saber se tudo está bem). Então, a câmera retoma a perspectiva anterior e se detém no centro, observando o fim do movimento. No plano seguinte, a câmera mostra M. Loyal descendo da torre e se movimentando pela arena circense. Ao longo do caminho, ele cruza com vários personagens espalhados pelo espaço: uns que dão cambalhota, outros que derivam sem rumo, uns que preparam o cenário, outros que saltam, uns que transportam uma escada, outros que operam uma câmera cinematográfica. Então, o narrador chega ao cenário da igreja de Ragusa, realizada ludicamente numa grande tela de sombras chinesas, referência à lanterna mágica. M. Loyal continua a circular pelo circo, acompanhado frontalmente pela câmera que é frequentemente atravessada pelos corpos e gestos espalhados no espaço (anões coloridos, rubros acrobatas pululantes, criados imóveis de amarelo, mordomos verdes, um pierrô à espreita na cortina vermelha, bailarinas fazendo malabares).

                                                                                                               

307 Trata-se de um quadro de 1555, do pintor renascentista Tiziano Vecellio, que joga de modo reflexivo com

a ambiguidade do olhar de Vênus em relação ao espelho segurado pelo cupido. O reflexo do olhar emoldurado conecta personagem, espectador e o próprio artista – afinal, para quem a deusa olha do interior ou do abismo especular da pintura? Essa figura foi retrabalhada no romance Venus in furs, principal obra de Leopold von Sacher-Masoch, publicada em 1870. A protagonista que dá nome ao livro foi inspirada na amante do escritor, Fanny Pistor (que, numa fotografia famosa, aparece com um casaco de peles e um chicote). Assim, desde o princípio, a obra coloca vida e arte em relação reflexiva: a história central é enquadrada pelas confissões do narrador que conta seus estranhos sonhos com a deusa Vênus vestida de peles ao seu amigo Severin. Este, por sua vez, recomenda ao comparsa a leitura do manuscrito Memórias de

um homem suprasensual que contaria a metahistória de Severin von Kusiemski, o qual, cansado da mulher

Wanda von Dujanew, procura solicitá-la para relações cada vez mais degradantes (Masoch e o masoquismo). Severin, pintor, toma justamente uma reprodução do quadro de Tiziano como fonte de inspiração, utilizando- a como marcador de livro. A figura foi retomada pelas artes contemporâneas, como é o caso da lendária banda do rock de vanguarda norte-americano, The velvet underground, que compôs uma música homônima ao livro de Sacher-Masoch, na qual atualiza, através dos tons metálicos da guitarra e da voz, a ambígua maldição entre os instrumentos de tortura e o prazer amoroso da dor. No cinema, por sua vez, existem adapções como o filme Paroxismus (Reino Unido, Alemanha, Itália, 1969), de Jesús Franco. Pode-se retornar, aqui, à própria Lola Montès ophulsiana, que parece replicar certos traços imagéticos da mulher delineada por Leopold: a degradação masoquista, associada à violência do espetáculo, contamina a relação do corpo e do olhar (da câmera, dos personagens, do espectador), delineando a representação feminina. Ademais, pode-se notar que a protagonista utiliza um casaco de peles na cena dos pintores do rei.

Todo esse artifício, revelado continuamente pela mise en scène, prepara o quadro para a nova aparição da cortesã. A cena representa o episódio no qual Lola fora proibida de entrar na igreja devido ao seu traje inapropriado. Ainda sem cortes, o mestre de cerimônias chama a bailarina para entrar (-“Vem, Lola! Vem!”). Ela chega do fundo esquerdo do quadro, com um vestido bastante decotado, um véu segurado por um anão amarelo, e avança em direção ao primeiro plano. Após subir alguns degraus (acompanhada pela câmera, em ligeiro contra-plongée), seu corpo resta suspenso (em relação à arena circense e o caos das ações), intensamente destacado contra a plateia opaca visível ao fundo (Fig. 4.54). Enquanto os dois lustres descem do teto (o movimento do quadro nunca cessa!), a câmera contempla a mulher fixamente por alguns segundos, numa visão acentuadamente pictórica.

Fig. 4.54: Através dos movimentos de câmera, do contraste de planos e da iluminação...

Diz o narrador: -“Ela se torna mais e mais irresistível”. Um plano desemboca em outro e a cena se transforma em algo novo. M. Loyal se desloca da extremidade esquerda do quadro (interessante notar que, na circularidade da arena circense, toda referência geográfica só tem sentido em relação ao eixo da câmera, à posição por ela escolhida) para o centro da arena, passando novamente pelo ambiente extremamente fértil de gestos, movimentos e cores. A todo instante, o maquinário do espetáculo se renova e se mantém, como se o próprio processo de construção infinita fizesse parte da estrutura inacabada. E não são apenas as bordas que deixam entrever as peças: a própria cena se converte em jogo ou o jogo se apodera da cena.

Em meio ao aparente caos, M. Loyal se posiciona ao lado da tela de sombras, enquanto conta a história do homem mais forte do mundo que se apaixonara por Lola. O teatro de sombras é ativado com as silhuetas de dois lutadores, até que um deles bamboleia e desfalece. Ao se erguer, o lutador derrotado rasga a tela onde as sombras se projetavam e vai para o lado do mestre de cerimônias. (variação: o mestre de cerimônias vai para o primeiro plano, apresenta Bulgakov como o guarda-costas de Lola e, durante pequeno movimento, a câmera se inclina ligeiramente, revelando algo mais do espaço, para depois seguir, como se atraída pelo convite do apresentador, para filmar de perto o corpo do lutador, em cujas costas estão tatuados os escândalos mais notórios da cortesã).

O que os micro-relatos sugerem é justamente a autonomia da cena circense, pois não é mais necessário recorrer à montagem (ao menos não estritamente) para representar a história. Já não importa tanto aquilo que é contado, mas sim a lógica da diferença e da repetição que se inscreve no maquinário visual ophulsiano.

Outra vez convocada pelo mestre de cerimônias, Lola emerge de um alçapão mecânico. Seu rosto tem expressão obstinada, impassível, gélida (ela não se funde jamais ao calor do espetáculo, à paixão produzida, reproduzida, induzida). M. Loyal promete ao público que Lola contará a sua história, que dirá toda a verdade. Então, ela sobe numa plataforma que se eleva, outra vez deixando suspenso o seu corpo em relação ao restante da arena. A luz se torna alaranjada. Recortada contra o fundo opaco, ao lado de um lustre ricamente ornamentado, Lola começa a falar, sempre olhando para cima e erguendo a postura (Fig. 4.55). Porém, o narrador logo a interrompe (-“Por quem, Lola? Pelo regente da orquestra?”), desencadeando um novo flashback.

De volta ao circo, o mestre de cerimônias apoia o cotovelo sobre a mesa, enquanto escuta a história de Lola. Ele logo a interrompe novamente e começa a se mover

ativamente pelo espaço, enquanto solicita cigarros para a condessa. Erguido pelos figurantes visíveis ao fundo (a maquinaria sempre revelada), o anão chega dependurado por uma corda, como se voasse, para atender à demanda de M. Loyal. Então, este faz propaganda do produto e acende, ele próprio, um charuto antes de mandar a vedete prosseguir. Enquanto ela conta, ele tenta a todo instante completar as lacunas que ela deixa no relato (talvez, por estar indisposta, pois os planos do seu rosto expressam desconforto).

Em suma, por trás de toda a inventividade das cenas singulares que compõem o registro do circo, há certos traços partilhados, como a imobilidade do corpo, a atmosfera cinética, além dos incessantes comentários que interrompem o espetáculo para elucidá-lo, criticá-lo ou comandá-lo.