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Cap 1 – IMAGEM E CRISE: OPHULS E O CINEMA MODERNO

1.1. Teorias do cinema moderno

1.1.2. A rampa: superfície e profundidade

No seu livro A rampa, Serge Daney oferece uma seleção de alguns dos seus textos publicados nos Cahiers entre 1970 e 1981, com o propósito de (re)traçar o retorno crítico da revista a certa herança bazaniana, “mais empenhada no ensaísmo crítico e no pensar a partir das obras do que na aplicação, em abstrato, de princípios teóricos generalizantes”31. De fato, essa revisão ocorre após os anos da “deconstrução” e do “teorismo dogmático” característicos da fase maoísta que, por sua vez, foi marcada pelo intenso debate Cahiers-

Cinéthique. “Daney simboliza a força do crítico na nova fase pós-desconstrução, em que se

recuperou a reflexão a partir do constante corpo-a-corpo com os filmes e se deixou de estigmatizar a cinefilia”, afirma Xavier32. Os ensaios contidos em A rampa são organizados em torno de questões e momentos determinantes dessa passagem epistemológica, sempre acompanhados de comentários, escritos pelo autor, que colocam em perspectiva a sua própria trajetória no contexto mais amplo da crítica de cinema.

Para fechar o livro, Daney escreve um ensaio curto, intitulado “A rampa (bis)”, que apresenta “um novo ponto de vista para pensar a oposição clássico/moderno que encontrara outras variantes no pensamento de Bazin, nos Cahiers du cinéma nos anos 60, em Noel Burch, Christian Metz e Pasolini”33. Com base no conceito de scénographie, entendido, aqui, como a síntese formal da mise en scène, do olhar da câmera e dos procedimentos de montagem, bem como as suas possíveis variações, o pensador estabelece uma taxonomia de três momentos principais da história do cinema: o clássico, o moderno, e o pós-1970.

Nesse sentido, o clássico (e sua cenografia) seria “o momento bastante curto da história do cinema – trinta anos? – em que os cineastas souberam produzir o engodo do que parece faltar desde sempre no cinema: a profundidade”34. Essa profundidade

fundamental convoca e realiza, sem cessar, o desejo do espectador “de ver mais, de ver por

trás, de ver através”, de alcançar “o segredo atrás da porta”35, rumo à revelação final. Assim, os melhores diretores seriam aqueles capazes de utilizar os objetos da cena para                                                                                                                

31 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico, p. 190. 32

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico, p. 190.

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XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico, p. 190.

34 DANEY, Serge. A rampa. Tradução de Marcelo Rezende. São Paulo: Cosac & Naify, 2011, p. 229. 35 Como diz o título original do filme de Fritz Lang (The secret beyond the door, EUA, 1948). Daney se

refere a esse filme como uma espécie de obra fronteiriça e questionadora entre o cinema clássico e o cinema moderno. A esse respeito, conferir também MACHADO, Tiago Mata. “O segredo atrás da porta do cinema clássico e a consciência necessária do cinema moderno”. In: Devires, nº 1. Belo Horizonte: Fafich, 1999.

velar, temporariamente, elementos dramáticos, e carregar todo o espaço com promessas contínuas de “mais ver”. “Essa foi a era de ouro da cenografia, o triunfo paradoxal de uma cenografia sem cena”. Hoje, porém, “estamos [...] muito longe desse cinema. Nós não sabemos mais fazê-lo e, por isso, nós o amamos mais do que nunca”36.

Tal cenografia já se transforma com o advento do cinema falado (1927) que faz sumir o espaço da música de acompanhamento. Depois do falado, é a lembrança do estúdio, da cena perdida, dos cortes da montagem, do quadro imprevisível, dos saltos espaciais, fantasmas que assombram para sempre as dobras da imagem. Com efeito, trata-se de golpes de força da “direção”, que não querem somente suspender e prolongar o desejo da visão, como também (re)conduzi-la, balizá-la, comandá-la através de um “jogo de chicanas e de falsos caminhos”, fazê-la se perder “num labirinto de recorrências” intermináveis. Em todo caso, restava algo para se ver ou, ao menos, uma ilusão para se acreditar.

É justamente essa crença possível que a modernidade cinematográfica desfaz ao recordar que “não existe nada e que nada pode existir porque a imagem do cinema é uma superfície sem profundidade”. A cenografia moderna quebra o pacto da profundidade e, com ele, a promessa de que há sempre algo além, algo atrás da porta, mesmo que seja apenas um logro. Todo ilusionismo é combatido através da superfície pura e sem entranhas, que existe apenas em sua própria imanência. A tela se afasta em definitivo do teatro, e passa a buscar afinidades na pintura. Trata-se, sobretudo, de devolver o olhar do espectador a ele mesmo – não por acaso, a proliferação dos espelhos, das janelas, dos reflexos – de modo que, uma vez consciente desse olhar, sua indagação seja não mais sobre aquilo que está por detrás de algo, mas sim acerca da capacidade de sustentação do olhar face àquilo que se vê.

À maneira de Bazin, Daney defende uma ambiguidade fundamental da imagem, embora acometida de partida por uma espécie de pecado original: não apenas o excesso da visão, ou sua consciência profunda, como também uma ferida histórica irremissível. De fato, o cinema moderno é aquele que assumiu claramente a “não-profundidade da imagem, que a reivindicou e que pensou construir – com humor ou com furor – uma máquina de guerra contra o ilusionismo do cinema clássico, contra a alienação das séries industriais, contra [uma] Hollywood” que

                                                                                                                36 DANEY, Serge. A rampa, p. 230.

nasceu – não por acaso – na Europa destruída e traumatizada do pós-guerra, sobre as ruínas de um cinema enfraquecido e desqualificado, sobre a recusa fundamental da aparência, da direção, da cena. [...]. Por diferentes que tenham sido uns dos outros, os grandes inovadores do cinema moderno, de Rossellini a Godard, de Bresson a Resnais, de Tati a Antonioni, de Welles a Bergman, são aqueles que afastam radicalmente sua arte do modelo teatral-propagandista, onipresente, ao contrário, no cinema clássico. Em comum, eles têm o fato de pressentir que não têm mais exatamente relação com os mesmos corpos que antes. Antes dos campos [de extermínio], antes de Hiroshima. E isso é irreversível37.

Uma forte suspeita recairia, assim, sobre a estética publicitária, que ligaria a propaganda totalitarista à indústria norte-americana do consumo (logo, Hollywood). As produções sensíveis perdem a sua parte de magia e de inocência, esmagadas por um peso que se torna insuportável e que é preciso, finalmente, confrontar. Sem dúvida, o discurso de Daney estabelece relações políticas profundas com as formas, algo menos claro no pensamento de Bazin38. “A outorga do estatuto de ‘autor’ e a famosa ‘política’ que devia acompanhá-la vieram oportunamente assinalar que a velha profissão do ‘diretor’ nunca mais seria inocente”39. As câmeras de gás, os campos de concentração, os tribunais nazistas, a bomba atômica, provocam uma fissura profunda no imaginário artístico, que só pode ser transposto pela consciência histórica e pela desconstrução.

Vale lembrar que a fronteira histórica de Daney é similar à de Bazin. Contudo, a Segunda Guerra é, para ele, uma linha divisória mais nítida (uma ferida mais aberta) entre o clássico e o moderno, dois modos (bastante plurais) de existência sensível, separados pelo abismo sem fim ou pelo imenso muro – com destroços por todos os lados, à beira de um precipício sem profundidade, uma fenda sem vazio e, logo, infinitamente voraz. A famosa frase de Adorno, “escrever poesia depois de Auschwitz é desumano [barbaric]”40, embora revisada pelo próprio filósofo, não deixa de ser expressiva das transformações

                                                                                                                37 DANEY, Serge. A rampa, p. 231.

38 A confirmação disso está nos seus próprios escritos, como o célebre “Le travelling de Kapo”, publicado no

ano da morte de Daney. Nesse texto, ele endossa a crítica de Rivette sobre o filme Kapo, intitulada “De

l’abjection”, embora confesse, paradoxalmente, jamais ter visto o filme. Essa contradição é apenas aparente,

pois o discurso de Daney não se dedica tanto ao filme, quanto à reinvindicação de certa formulação do cinema. É porque elas “resistem” à própria estetização que as imagens dos campos servem como marco para uma regra geral: é a forma como as coisas são filmadas que constitui a significação daquilo que é filmado. (Disponível em: http://www.filmfilm.be/post/35124287414/le-travelling-de-kapo-par-serge-daney-trafic-4)

39 DANEY, Serge. A rampa, p. 231.

40 Frase distorcida de tantas maneiras: “Não pode haver poesia depois de Auschwitz”, “Nenhuma poesia

lírica depois de Auschwitz”, ou “Nenhuma história depois de Auschwitz”. Um artigo simples e esclarecedor sobre o assunto pode ser acessado no seguinte link: http://mindfulpleasures.blogspot.com.br/2011/03/poetry- after-auschwitz-what-adorno.html

sofridas pelo imaginário ocidental naquele momento – diante do terror, do genocídio, da devastação e da violência – e que levam a arte ao limite de suas próprias possibilidades.

Existiria uma terceira cenografia, surgida nos anos 1970, cujos empenhos não se resumiriam nem à continuidade das denúncias do ilusionismo, nem à reposição da profundidade clássica, mas seriam marcados pela tentativa de se oferecer (ao olhar) a possibilidade de “deslizar lentamente ao longo das imagens que deslizam elas mesmas umas sobras as outras”41. Nessa “cenografia folhada, barroca em forma de diorama”42, o cinema constitui a tela de fundo do próprio cinema, um “museu de cenografia” no qual “os diferentes sistemas de ilusão podem funcionar lado a lado”43. Em filmes como os de Syberberg ou Raul Ruíz, a imagem seria organizada em forma de labirinto, guiada por excessos de artifício que embaralham as oposições tradicionais. É preciso perceber, aqui, que “a cena de cinema, com suas reminiscências teatrais, é complexa”44, e que suas formas, corpos e fantasmas são existências imprevisíveis, incapturáveis.