• Nenhum resultado encontrado

Cap 4 – LOLA MONTÉS: A ANTI-VEDETE

4.2. As aparições da vedete

4.2.3. O sacrifício interrompido

O sacrifício não é uma mera questão de fé. Pelo contrário, o seu sentido mais profundo é o de um pacto político estabelecido com os deuses para fundamentar a existência em comum dos homens. Muitas vezes, a vítima sacrificial deve ser substituída, de modo a que os membros da comunidade sejam, ao mesmo tempo, representados e abstraídos na violência transmitida. Para cumprir a ordem divina e provar sua obediência, Abraão aceita sacrificar seu único filho, Isaac. Porém, no momento da imolação, Deus é interpelado pelo coro dos anjos comovidos que clamam piedade para com o servo irreprimível. Deus atende ao pedido dos anjos, mas, para que a sua lei permaneça inviolável, substitui o filho de Abraão pelo carneiro da criação que passa a representar Isaac durante o resto do ritual. Para todos os efeitos, nesse culto mortal, o animal se torna o homem, preservando a vida deste em troca da sua. A questão sacrificial se torna, assim, uma questão de representação, um “colocar-se à frente” ou “no lugar” daquele que teria o sangue derramado. Substituída, a vítima é re-apresentada pela imagem de outra vida. Uma imagem existe no lugar de outra, isto é, uma imagem é temporariamente duplicada (sendo e não sendo, portanto, a mesma imagem). Contudo, o sacrifício de Isaac é também um sacrifício interrompido, pois apenas com a mediação dos espectros angelicais e a decisiva intervenção divina, a morte pode finalmente ser suspensa e, em seguida, repetida no carneiro pelo esquema da representação.

O sacrifício de Lola no circo é, ao seu modo, um sacrifício suspenso. Todavia, trata-se de um culto profano: não há intervenção divina para produzir a salvação da vítima. Exceto, é claro, que a personificação do espetáculo (e do seu maquinário) cumpra esse

papel. Em todo caso, a imagem reapresentada é a da própria vítima, radicalmente outra, infinitamente diferida e substituída por ela mesma, continuamente deslocada e reproduzida na mise en scène. Assim, o seu destino é o contínuo esvanecer de cena em cena para, finalmente, reaparecer nos intervalos de um mundo onde toda crueldade é simplesmente banal (por outro lado, há nisto todo um cinema da crueldade298, com sua dimensão de choque e subversão), onde “a distinção entre o puro e o impuro”299 se perdeu.

No fundo, é a própria representação que está em crise: nenhuma imagem vale por outra, nenhuma imagem cabe em outra, embora todas elas se tornem cada vez mais excessivas e desnecessárias. Assim, para desviar o ritual circense, não é preciso nenhum gesto sagrado. Basta multiplicá-lo ao infinito, transformá-lo sem cessar, desdobrá-lo em muitas mortes irrisórias. Mais ainda: convertê-lo na derradeira celebração daquilo mesmo que se quer aniquilar – pois como matar uma imagem senão pelo completo entorpecimento ou esquecimento?–, até que o culto degenerado se renove ludicamente através da potência do jogo e do seu maquinário. Em último caso, a morte de Lola é indesejada ao espetáculo, pois este se faz justamente pela exibição da cortesã e sua beleza fatal. Nesse sentido, “o belo é [também] o que instabiliza, o que cria movimento, atenção e tensão: isto ameaça o que quer conservar, permanecer, tornar estáticos os fluxos da vida no tempo”300.

No falso sacrifício, a vítima é continuamente salva e condenada pela imagem do seu próprio mito (no caso, o de femme fatale). A pergunta indiscreta de uma mulher na plateia (-“Quantos amantes teve a condessa?”) desvia o fluxo da representação para uma nova atração. Após um giro da atriz na base móvel – como as antigas bonecas das caixas de música, como os produtos exibidos nas vitrines giratórias – a cena se converte em outra, desemboca pelas bordas, pelas dobras, transforma os seus convulsos elementos para o jogo prosseguir. Vale lembrar que o termo “cena” não se refere, aqui, ao conceito usual dos dicionários de verbetes, isto é, à unidade de ação entre dois cortes, mas sim ao espaço filmográfico dotado de uma teatralidade fundamental, um “acréscimo de teatralidade”, como queria Bazin, isto é, uma duração contígua e profunda.

A luz (antes azul) se torna avermelhada; animado e pujante, o acompanhamento musical recomeça; o cenário é renovado por um grande leito redondo, com trampolins e plataformas ao redor (ainda há tempo de ver os criados que trazem as peças para o palco, a                                                                                                                

298 Cf. BAZIN, André. The cinema of cruelty. 299

GIRARD, René. Violence and the sacred, p. 39 (Tradução nossa).

cena se misturando aos bastidores). Enfim, tem início o desfile dos amantes, atores extremamente afetados pelo artifício de máscaras, gestos exagerados, figurinos caricatos (são cavalheiros, soldados, artistas, criados). Imóvel no centro do quadro, Lola nem sequer reage ao profuso cortejo dos galantes que, por sua vez, não param de ingressar na arena circense, executando mil e uma peripécias, saltos, mergulhos, cambalhotas, para se aproximar do leito da mulher.

Há, basicamente, seis tipos de planos na sequência que é bastante fragmentada: registros da arena circense, com o leito centralizado em plano geral ou médio e rodeado pelo caos imprevisível dos amantes; da cortina por onde entram os amantes, registrada em plano geral; das intervenções do narrador, que conta os amantes e responde às perguntas, filmado geralmente em planos médios; das aparições do anão, em plano médio, parodiando os gestos do narrador; da arena circense vista através do gradil da cama; do rosto de Lola, em close, nas duas ocasiões com perguntas. Pode-se dizer que, mesmo com os cortes e o dinamismo da montagem, a cena preserva uma integridade fundamental, aproximando-se, talvez, de certa lógica teatral originária:

A ‘cena’ designa, originalmente, no teatro grego, uma construção em madeira, a

skêné, no meio da área de encenação, depois, por extensões sucessivas de sentido,

essa área de encenação inteira (o palco), depois o lugar imaginário onde se desenrola a ação. Por uma nova extensão de sentido, a palavra designou, em seguida, um fragmento de ação dramática que se desenrola sobre uma cena, ou seja, uma parte unitária da ação. Daí um certo valor temporal ligado à palavra: a cena vale por uma certa unidade, indeterminada, de duração301.

Se “o cinema retomou mais ou menos a integralidade dessas significações, acentuando ora uma ora outra”, o caso de Ophuls evidencia, ao mesmo tempo, o caráter da cena enquanto lugar imaginário e a indeterminabilidade da sua duração. Na relação entre as imagens, não há necessariamente uma continuidade ou homogeneidade que “permite respeitar melhor a realidade”302, mas sim uma “contiguidade”, uma “cristalografia” produzida pela decupagem em profundidade303. A profusão, através da cena, de tempos e                                                                                                                

301 AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. Tradução de Marcelo Félix. Lisboa: Texto &

Grafia, 2009, p. 45.

302

BAZIN, André apud AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme, p. 45.

303 Cf. ARNAUD, Diane. “From Bazin to Deleuze: A matter of depth”, em que a autora coloca em relação

alguns conceitos de dois dos principais pensadores do cinema no século XX: o filósofo Gilles Deleuze e o ensaísta André Bazin. Para ela, o primeiro seria responsável por um resgate potente do pensamento do segundo, ao valorizar e renovar alguns conceitos centrais de sua obra, como o da profundidade de campo, da

movimentos descentrados, define uma unidade instável na convergência para um mesmo “palco”.

É nesse sentido que Deleuze pode retomar o “acréscimo de teatralidade” bazaniano para falar de Lola Montès: as cenas se tornam planos-sequência, sem constituírem por isto, lugares privilegiados de uma revelação realista do mundo. Pelo contrário, a interrupção da imolação imaginária só é possível graças ao barroquismo radical do cortejo dos amantes que substitui a imobilidade da morte por uma imensa profusão de artifícios. Estes só serão interrompidos com outra questão estritamente pessoal, desencadeando um flashback que surge em fusão com o rosto da atriz e desvia sua aparição pública para uma dimensão privada. No fundo, ao longo de todo o filme o esquema sacrificial continua bastante válido, com Lola imobilizada no centro do aparato circense.