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3 O PROCESSO CRIATIVO EM DNA DE DAN

3.2 O PROCESSO: O OFÍCIO DOS OFÍDIOS

3.2.1 A imobilidade

Essa foi uma prática proposta por mim pelo interesse em explorar estados que o meu trabalho como modelo vivo para desenho me proporcionava. A experiência como modelo vivo me dava um conhecimento outro do meu corpo. Quando a dor se tornava insuportável, era preciso deixar passar, não reagir e de repente já se passavam mais 10, 20 minutos e o insuportável se diluía. Em uma aula de respiração que fiz com Wilson Sagae27 ele nos disse “se o corpo não move, a mente não move e vice-versa” [informação verbal]. Eu sentia que o exercício da imobilidade com o foco na não-reação nos levaria para algum lugar interessante.

                                                                                                                         

27Wilson Sagae desenvolve em Curitiba um trabalho de respiração e

desenvolvimento de ki, ligado a educação somática. Durante cerca de três anos frequentei as suas aulas e treinamentos.

 

Figura 7 – Desenho feito por Gustavot Diaz tendo eu como modelo vivo

Fonte: acervo pessoal.

Iniciamos em alguma manhã bem do início do processo, depois do alongamento individual, escolhemos um lugar perto dos janelões onde batia sol, pois o frio era cortante. Permanecemos imóveis, a regra era não reagir a nada, nem ao frio, nem a dor, nem aos pensamentos. 1 minuto: penso se isso vai servir para alguma coisa. 2 minutos: penso se o Maikon está achando tudo uma bobagem. 10 minutos: as árvores lá fora e as linhas da janela viram uma coisa só. 15 minutos: minha perna está amortecida e dói. Não reajo, deixo passar. 30 minutos: não consigo me distinguir do ambiente. 40 minutos:___________________________________________. “isso me interessa”, deixo o pensamento passar.

Eu tinha consciência de que aquela prática se aproximava muito da meditação, mas decidi não me apegar a

 

esse nome nem fixar qualquer postura ou forma, pois essa liberdade permitia que eu moldasse a prática de acordo com o dia e assim ela tomou muitas formas: fazer em pé, sentados, de olhos abertos percebendo todo o ambiente como uma única massa, sem fazer distinção de objetos ou sons, de olhos fechados, etc. A imobilidade nos ajudava a nos "despreparar", tanto a mim como ao Maikon. Essa necessidade de se desprogramar surgiu antes em mim, então seria incongruente colocar o meu companheiro em um estar no mundo tão diverso, sem que eu também estivesse saindo de um lugar de conforto. Assim, na maior parte das vezes eu vivia junto a imobilidade tentando – nem sempre com muito êxito – me desvencilhar do que viria em seguida. Digo que nem sempre obtive sucesso nessa empreitada pois a responsabilidade de saber o que viria na sequência do ensaio era minha, e isso estava frequentemente nos meus pensamentos. Além disso, percebi que no estado em que eu saia da imobilidade, o meu olhar sobre o trabalho ficava muito afastado do que poderia ser o olhar do público. Cheguei a me interessar por pensar numa direção com um olhar alterado para o mundo, mas seria uma pesquisa à parte, que não nos interessava naquele momento.

Essa prática foi um meio para perceber e se desapegar de algumas coisas. Por exemplo, a partir do não fazer foi possível compreender no meu corpo quão comuns são os impulsos de reagir aos estímulos como frio, calor, vontade de se coçar, readaptar constantemente as posições do corpo, espantar mosquitos, colocar o cabelo atrás da orelha, empurrar o óculos, arrumar a roupa, mudar o foco do olhar, etc. No entanto, se nos propomos a não reagir a qualquer desses impulsos, o que acontece? Yasuo Yuasa explica que a meditação parada “concentra o pensamento no interior dos

 

movimentos da mente colocando o corpo na imobilidade” (YUASA, 1993, p. 20). Parte dos escritos de Yuasa tratam da relação entre os estados meditativos e os treinamentos de artistas, como no teatro nô, de Zeami, ou na poesi waka (QUILICI, 2011). Qulici esclarece que, em tais escritos, “não se trata de destacar simplesmente procedimentos técnico- artísticos orientais para construir um “corpo cênico” ou algo assim, mas de abordar toda uma cultura do corpo-mente e suas articulações com práticas artísticas” (QUILICI, 2011, p. 4). Ou seja, meu objetivo principal era mover questões profundas no ser, mais que produzir presença ou material cênico.

Um exemplo de variação da imobilidade foi a introdução de imagens muito detalhadas que repetidas vezes eram ditas por mim ao Maikon até que fosse permitida a sua movimentação no espaço. Em uma filmagem de ensaio do dia 19 de setembro de 2013, eu disse: “Permanece nesse não-agir, e assim como quando você ouve a música e não dança, mas a música dança dentro de você, eu vou ler esse texto dessa imagem que a gente tinha gostado. Você não vai dançar. Toda e qualquer ideia de dança, você descarta. Isso vai acontecer repetidas vezes até eu dar outro comando. Tenta se manter ativo nisso, internamente”. E li esse trecho:

Ela não dá a luz por vias naturais, e não concebe pelo coito comum que distende o útero. Mas assim que sente a excitação sexual, a obscena fêmea provoca o macho, que ela quer sugar com a boca bem aberta. O macho introduz a cabeça de língua tripla na garganta de sua companheira e todo em fogo, dardeja-lhe seus beijos, ejaculando por esse coito bucal o veneno da geração. Ferida pela violência da volúpia, a fêmea fecundada

 

rompe o pacto de amor, dilacera com os dentes o pescoço do macho, e enquanto esse morre, engole o esperma infundido em sua saliva. O sêmen assim aprisionado, custará à mãe a sua vida. Quando tornarem-se adultos, estreitos corpúsculos começarão a arrastar-se em sua morna caverna, a sacudir o útero com suas vibrações. Como não há saída para o parto, o ventre da mãe é dilacerado pelo esforço dos fetos em direção à luz, e os intestinos rasgados lhes abrem a porta. Os pequenos répteis rastejam em torno do cadáver natal, lambem-no, uma geração órfã ao nascer (CHEVALIER, 2012, p. 823).

Depois de ler esse trecho rico em imagens três vezes, pedi a ele que deixasse os pequenos impulsos surgirem, numa movimentação mínima e lenta. Numa quinta leitura a movimentação foi crescendo e levando a diferentes estados. Essa foi uma das imagens que gerou um fragmento da performance. Esse procedimento foi uma escolha nossa a partir desse conjunto de imagens que julgávamos interessante.

Posteriormente encontrei uma prática de Hijikata semelhante descrita por Yukio Waguri a Tanya Calamoneri (2012) na qual os dançarinos tinham que ficar em uma posição por três horas enquanto Hijikata descrevia imagens minuciosamente detalhadas para a criação das coreografias. De acordo com Calamoneri (2012, p. 116), esse tipo de prática do Butoh, treina o estado de consciência do performer e por meio disso, a sua presença. Note-se que é um outro modo de gerar presença, quase inverso ao do treinamento energético, onde a mobilização física extrema chega a um stop, uma parada cheia de energias acordadas que por vezes geram imagens (PUCCETTI, 2009). No exemplo dado acima, e no trabalho de

 

Hijikata, é uma intensa mobilização psicofísica que se dá na imobilidade e que gera um ou muitos corpos diferentes. De qualquer modo, trata-se da investigação de outras maneiras de “ser/estar” que, em última instância, parecem não estar afastadas, como demonstro no diálogo com Carlos Simioni no Terceiro Capítulo.

Além das alterações de percepção e da geração de fragmentos e corporeidades, havia algo mais interessante a ser explorado na prática da imobilidade: a dissolução entre o espaço "interno" e "externo" do corpo. Com o tempo estendido, "ser" e "ambiente" se confundiam. E a minha questão passou a ser: além de poder ser outros, seria possível ser tudo? “Tudo” no sentido de ser chão, paredes, vidros e para além deles, árvores, ar, pássaros, concreto, aviões. Aí estava um estado a ser aprofundado, onde os limites do “eu” ficavam abalados. Chamamos isso de “dissolução do ego” e com ela iniciaríamos a performance.

Junto com esse estado, outro elemento muito forte para a construção da performance foi a pele. Contávamos com o trabalho da artista visual Faetusa Tezelli que, desenvolveu um “látex” caseiro que era aplicado sobre toda a pele do Maikon e que, a medida que secava, craquelava e se despedaçava, como numa troca de pele. A gosma precisava ser preparada imediatamente antes de ser aplicada, por isso durante a temporada chegávamos com três horas de antecedência. A aplicação, feita sempre por mim ou pela Faetusa, durava cerca de uma hora e meia e era essencial que o Maikon permanecesse imóvel.

Depois disso, o acompanhávamos até a bolha plástica onde a performance acontecia, cerca de meia hora antes de o público chegar. Lá ele permanecia sozinho e imóvel, já

 

trabalhando o primeiro estado do nosso roteiro, a “dissolução do ego”. Esse foi um tema de discussão para nós dois, pois para mim, aluna iniciante de Psicologia28, era difícil conceber essa “dissolução”. Eu dizia que o ego sempre estaria presente e o Maikon discordava, dizendo que em determinados níveis de meditação o ego desaparecia. Com o tempo percebi que realmente algo se transformava tanto em mim quando praticava, como no Maikon quando o observava, e foi isso que me levou a empreender o estudo que apresento no Terceiro Capítulo.

Figura 8 – Eu aplicando o látex caseiro no Maikon

Foto: Lauro Borges. Fonte: Acervo pessoal.

                                                                                                                         

28Iniciei o curso de graduação em Psicologia na Universidade Federal do

Paraná (UFPR), em 2012, e interrompi esses estudos para realizar o Mestrado em Teatro na UDESC, em 2013.

 

Figura 9 – Imagens do processo

  Início do processo (1o. mês): qualquer ação minha deveria desencadear uma reação da cobra.

  Meio do processo: Sequência surgida a partir da imagem “O macho introduz a cabeça de língua tripla na garganta de sua companheira”.  

  Final do processo: Serpente velha, louca e rouca faz, relutantemente, a sua troca de pele.  

  Final (4o mês): Trabalhando a “dissolução do ego”.