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O “CULTIVO DE SI” NA PRÁTICA ARTÍSTICA

4 REFLEXÕES A PARTIR DO PROCESSO

4.1 O “CULTIVO DE SI” NA PRÁTICA ARTÍSTICA

de si e como superação de si. A partir disso, me senti impelida a voltar ao Lume e conversar com Simioni sobre Butoh, treinamento e nossas buscas pessoais como artistas.

Deste modo, decidi organizar o capítulo expondo esse bate-papo que tivemos no Lume, trazendo elementos da construção da performance e algumas reflexões para engrossar o feijão ou o missô dessa discussão.

4. 1 O “CULTIVO DE SI” NA PRÁTICA ARTÍSTICA  

No cerne dessas reflexões está a prática do “cultivo de si” (FOUCAULT, 2010a, p. 4). Foucault e Pierre Hadot empreenderam estudos próximos a esse respeito. Ambos estão preocupados com práticas realizadas por filósofos da Antiguidade greco-romana. Enquanto Foucault dedicou-se a investigar e realizar uma “estética da existência” (FOUCAULT, 2014, p. 16), Hadot vê a filosofia como forma de vida e como prática da tomada de consciência da totalidade, o que, segundo ele, ainda carrega um valor atual, fato sinalizado pelo interesse que nossa época apresenta em redescobrir a tradição da Antiguidade (HADOT, 2006).

Antes de entrar especificamente no conceito de “cultivo de si”, vale mencionar outros dois conceitos importantes para a teoria de Foucault: a “governamentalidade” (FOUCAULT, 1998, p. 163) e a “biopolítica” (FOUCAULT, 1999b, p. 209). Pois, como aponta Gallo (2013), estas são ideias-chave para entender a importância das “práticas de si”. No artigo Do

cuidado de si como resistência à biopolítica, Gallo comenta

que a “governamentalidade” foi um conceito apenas citado nos cursos do Collège de France, que pretende dar conta de uma

 

complexidade de problemas. Nessa complexidade, já estava presente a noção de uma ética do governo do eu sobre si, que Foucault posteriormente vai aprofundar utilizando os conceitos de parresia – o dizer verdadeiro – e do “cuidado de si”. A

parresia – analisada por ele nas tragédias de Eurípedes e

discursos de Péricles “relatados” por Tucídios em sua Guerra

do Peloponeso – refere-se à coragem de dizer a verdade dos

subalternos para seus superiores, expressando uma constituição de si mesmo (FOUCAULT, 2010c).

O termo biopolítica, cunhado por Foucault, refere-se a uma racionalidade política sobre a “população” (REVEL, 2005, p. 55). A noção de população, por sua vez, é nascida junto com estabelecimento do liberalismo na sociedade ocidental. Logo, a biopolítica está ligada ao estabelecimento do poder disciplinar. Enquanto a disciplina individualiza, a biopolítica massifica (GALLO, 2013). A biopolítica aparece primeiramente associada à Polizeiwissenschaft alemã do século XVIII, na qual o controle dos indivíduos pela ordem e disciplina estaria atrelado ao crescimento do Estado (FOUCAULT, 1999).

Fernando Danner (2010) colabora com esta explicação afirmando que a “anatomopolítica” e a “biopolítica” foram procedimentos utilizados pelo Estado moderno com fins de formatação e controle do indivíduo e da sociedade, ou seja, elas surgem como instrumentos do Estado para a produtividade capitalista. Todavia, o conceito de “poder” em Foucault não é privado de seu caráter positivo, ou seja, ele produz saber, individualidades e rituais de verdade (DANNER, 2010). Uma segunda biopolítica, que já carrega em si seu potencial de resistência, é pensada enquanto vários biopoderes. A

 

biopolítica, portanto, localiza o poder na própria vida (REVEL, 2005, p. 28).

Judith Revel, pesquisadora do filósofo, questiona se, estando o poder em quase todos os âmbitos da vida, como no trabalho, linguagem, corpo, afetos, desejos e sexualidade, “o lugar de emergência de um contra-poder, o lugar de uma produção de subjetividade se daria como momento de desassujeitamento?” (REVEL, 2005, p. 28). Sendo assim, a “biopolítica”, enquanto tema, seria fundamental para as últimas análises de Foucault, nas quais a relação entre ética e política passa por uma reformulação. Nesta nova mirada do autor, “o sujeito se autoconstitui ajudando-se com técnicas de si, no lugar de ser constituído por técnicas de dominação (Poder) ou técnicas discursivas (Saber)” (GROS, 2010, p. 462).

Para Sílvio Gallo (2013), o “cuidado de si” é uma posição mais ativa em relação ao poder, pois, a ética do “cuidado de si” produz práticas de liberdade. Novamente, o poder, em Foucault, não está localizado apenas nos níveis macro e micro, tampouco está centralizado nas mãos do Estado. Como esclarece Roberto Machado (1981), pesquisador brasileiro do autor, o poder se presentifica nas relações, e é para estas relações e as tecnologias que elas geram, que Foucault direciona suas investigações. Conforme Foucault (2010a), o “cuidado de si” é uma retomada do epiméleia

heautoû (cuidado de si mesmo) que se concentra no Primeiro Alcebíades de Platão e que, apesar de sua importância, foi

pouco olhado pela historiografia da filosofia cujo foco sempre recaiu sobre o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo). No verbete “cuidado de si”, do livro Michel Foucault: conceitos

essenciais (2005), Revel aponta que esse conceito

 

objeto de tekhnê, uma obra de arte) que a um projeto de conhecimento em sentido estrito” (REVEL, 2005, p. 33).

Na entrevista A ética do cuidado de si como prática da

liberdade (1999b), de 20 de jan. de 1984, Foucault diz que

sempre perseguiu saber como os sujeitos entram em jogos de verdade, tanto científicos, institucionais, como em práticas de controle. Desde As palavras e as coisas (FOUCAULT, 1999a) ele tenta ver como os sujeitos se definem enquanto indivíduos que vivem, falam e trabalham (FOUCAULT, 1999b). Porém, a partir das discussões sobre as “práticas de si”, o autor começa a relacionar os jogos de verdade com as práticas ascéticas, num sentido amplo. Tais práticas são vistas como “um exercício sobre si mesmo, mediante o qual alguém tenta elaborar-se, transformar-se e acessar certo modo de ser” (FOUCAULT, 1999a, p. 394). Na História da sexualidade 2, o autor já delimita estas “artes da existência” que vai aprofundar em seus cursos até o fim de sua vida. Foucault (2014) define essas práticas como:

práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também, procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 2014, p. 16).

Para ele, está claro que não se trata de uma liberação das sujeições ao poder – o que suporia a existência de uma natureza humana – mas de como se pode praticar a liberdade (FOUCAULT, 1999a). Entre os gregos antigos, de acordo com a investigação de Foucault (1999a), o cuidado de si serviria para conhecer-se, formar-se e superar a si mesmo. Para os antigos, o éthos era a maneira de ser e de comportar-se, ou seja,

 

o éthos de alguém se via pelo “seu vestir, seu aspecto, sua forma de andar, a calma com a qual respondia a todos os acontecimentos” (FOUCAULT, 1999a, p. 399). Assim, Foucault deu importância ao “lugar do sujeito não na teoria mas na prática da Filosofia, ou o pensar filosófico como onto-

ethopoiética, isto é, como prática de si” (ARÊDES, 1996, p.

38, grifo do autor).

A concepção de “práticas de si” pode auxiliar a pensar uma filosofia que se dá no corpo. Sobre a sua dança, Hijikata coloca que “não há filosofia antes do butoh. Só é possível que a filosofia possa sair do butoh” (HIJIKATA apud BAIOCCHI, 1995, p. 18). Do mesmo modo, a filosofia greco-latina antiga só existia vinculada à prática filosófica (HADOT, 2006; QUILICI, 2014a). Os estóicos diferenciavam discurso filosófico e filosofia (HADOT, 2006). Os discursos da física, lógica e ética tratam-se de teorias expostas no ensino da filosofia. A filosofia, no entanto, diz de uma prática da lógica, da ética e da física. Assim, o discurso filosófico que não concorda com a vida filosófica seria o discurso dos sofistas (HADOT, 2006).

Quase paralelamente a noção de “cuidado de si” estudada por Foucault, está a de “exercícios espirituais” discutida por Hadot (HADOT, 2006). Em Ejercicios

Espirituales y filosofía Antigua, Hadot (2006) trabalha a ideia

de “exercício espiritual” aplicado à prática filosófica. De acordo com ele, o uso da palavra “exercício” (p. 10) está ligado a uma atividade na Filosofia Antiga que era fundamentalmente prática, e o emprego do termo espiritual se justifica pois esses exercícios que tem por finalidade uma transformação profunda do ser, e deles participam não apenas o pensamento, mas também a sensibilidade e a imaginação. Essas práticas são

 

produtos da totalidade psíquica do indivíduo, operam uma terapêutica das paixões, que são a causa do sofrimento, e por isso deve haver uma metamorfose na conduta do ser (HADOT, 2006).

Nas escolas helenísticas e romanas, Hadot (2006, p. 11) observa o fenômeno dos “exercícios espirituais”. Para os estóicos, filosofia é exercício que gera uma transformação profunda onde o homem alcança a consciência de si, a visão exata do mundo, uma paz e liberdade interiores (HADOT, 2006). A filosofia é entendida por Hadot como modo de vida e os “exercícios espirituais” são atividades de formação e transformação do eu não em um só âmbito, mas na vida num sentido amplo. Hadot pergunta: o que mais útil ao homem? Discutir a linguagem, o ser e não-ser ou aprender a viver de um modo humano? Nesse sentido algumas criações artísticas podem contribuir, segundo ele, para formar outras maneiras de ver o mundo.

Tanto para Hadot como para Foucault, a Filosofia Antiga é entendida como “terapêutica” (HADOT, 2006). Hadot conta que eles se encontraram algumas vezes, conversavam sobre seus estudos em comum, falavam de Sócrates e da atenção sobre si mesmo, dos diversos “exercícios espirituais” e dos exercícios para a morte (HADOT, 2006). Para Hadot, esses estudos serviam para ambos não apenas como interesse histórico, mas como “ascese”, “um exercício com relação a si mesmo mediante o pensamento” (FOUCAULT apud HADOT, 2006, p. 252).

Contudo, Hadot (2006) discorda do emprego do termo “estética da existência” por Foucault que, segundo ele, traria para nós, pessoas modernas, uma ressonância de outro Belo, que não o da Antiguidade. Na moral grega, o artista era visto

 

como artesão e sua obra uma mera obra. Era no trabalho sobre si que havia uma obra maior a se realizar, porém, para Hadot, isso faria parte de uma moral já inexistente. Enquanto para nós, o Belo seria uma realidade a margem do bem e do mal, para os gregos seria algo intrinsecamente associado à moral. Os gregos buscariam na verdade o Bem e não a beleza. Por isso, Hadot considera mais adequado falar de transformação, transfiguração ou “superação do eu” mais do que de um “cultivo do eu” (2006, p. 271)29.

Hadot (2006) aponta que Foucault, apesar de reconhecer a importância terapêutica da filosofia, não considera a procura da paz de espírito, a liberação da angústia. Tanto no platonismo como no epicurismo e estoicismo, liberar- se dessas preocupações vitais e dos mistérios da existência seria possível através de uma superação do eu. Processo que levaria a pessoa de uma subjetividade individual a uma objetividade universal. Já o acento foucaultiano, incide sobre a criação de uma estética da existência, a construção de si como obra de arte, como mencionado30.

                                                                                                                         

29 Para analisar esse estado de transformação, na visão de Hadot (2006), é

indispensável falar de sabedoria, termo quase nunca citado por Foucault. A sabedoria seria um estado talvez nunca alcançado mas ao qual tendem aqueles que buscam uma superação de si (HADOT, 2006). Três aspectos a constituem: a paz espiritual (ataraxia), a liberdade interior (autarkeia) e a consciência de pertencer ao Todo humano e cósmico (megalopsuchia) (HADOT, 2006).

30 Outro ponto de discordância entre os autores é sobre o momento histórico

no qual a filosofia teria se afastado da tarefa do eu para consigo. Para Hadot (2006), isso ocorre na Idade Média, quando a filosofia teria sido usada como apoio à teologia e os “exercícios espirituais” absorvidos pela vida cristã. Já Foucault, segundo Hadot (2006), vê na “evidência” de Descartes o fim da ascese. Se a verdade pode ser conhecida por qualquer um que veja o evidente, torna-se desnecessário realizar em si algo que o

 

Na Filosofia Antiga, além de aprender a viver, era importante aprender a dialogar, exercício espiritual praticado em relação (HADOT, 2006). Nesse quesito, Sócrates aparece como figura importante ao gerar diálogos transformadores. O Alcebíades de O Banquete de Platão expressa que Sócrates o pôs mais de uma vez em um estado que o impedia de seguir a vida como até então (HADOT, 2006). Hadot também salienta a importância de estabelecer diálogos consigo para ter verdadeiros diálogos com o outro e vice-versa. Nos diálogos platônicos os caminhos são indiretos, opiniões divergentes são trabalhadas tornando-se por vezes convergentes ou gerando conclusões imprevistas. O leitor acompanha esse percurso onde é mais importante “viver com as questões” que chegar às respostas (HADOT, 2006).

Trazendo então esse diálogo para as Artes Cênicas, no Brasil destaca-se o trabalho de Quilici (2008; 2010; 2011; 2014) que contempla na discussão não apenas o conceito de “cultivo de si” de Foucault, como também os de “self-

cultivation” de Yuasa (1993) e o de “exercícios espirituais” de

Hadot (2006). Ao discutir práticas psicofísicas de artistas contemporâneos, Quilici apoia-se nestes conceitos pois acredita que estes permitem “colocar a questão do treinamento sob novas perspectivas, interrogando as possibilidades da arte enquanto campo de transformações ontológicas” (QUILICI, 2008, p. 1). De acordo com Quilici, há artistas, como Artaud e

                                                                                                                                                                                                                                                                  torne capaz de conhecê-la. Mas Hadot lembra as recomendações de Descartes para que seus leitores meditem durante algumas semanas ou meses, sobre suas duas primeiras Meditações. Nesse sentido, o autor entende que Descartes ainda estaria situado na tradição antiga, tendo “a filosofia como o exercício da sabedoria” (p. 255).

 

Tadeusz Kantor, que se refazem através da obra, “é um tipo de artista que não é um intérprete, a obra é a construção da própria pessoa” (QUILICI, notas de aula). Trilhando um caminho próximo, Gilberto Icle (2007) problematiza a Pedagogia Teatral como cuidado de si, pensando o momento histórico em que o teatro passou a ser visto como “terreno no qual os humanos se tornam sujeitos de seu corpo, de seus afetos e de sua reflexão [...]” (p. 2), ou seja, o teatro como instrumento para constituição humana dos seres. Para Icle, esse momento é o da insurgência da Pedagogia Teatral de Stanislavski.

Quilici (2014a) problematiza a questão do treinamento no teatro performativo e na performance, práticas cênicas que por vezes tem como objetivo a reinvenção do sujeito. Para tanto, investiga nas Antiguidades grega e romana as noções de “ascese” e “exercício”. Essas aproximações são possíveis, de acordo com o autor, pois o teatro contemporâneo coloca em cheque determinadas categorias (ação, representação, presença viva, espaços, tempo, relação com o público, separação entre arte e vida) e traz diferentes questões partindo de outros dispositivos (acontecimento, evento, intervenção, instalação, arte relacional). Com o objetivo de produzir experiências com qualidades intensificadas, essas estratégias e dispositivos são empregados.

Assim, a ideia de “técnica” se modifica, pois, nesse horizonte aberto de possibilidades cênicas, um treinamento utilitarista não tem efetividade (QUILICI, 2014a). Os procedimentos empreendidos advêm de diversas fontes, que movem amplamente a subjetividade do ator/performer, alterando estados de consciência e percepção (QUILICI, 2014a). Segundo Quilici, a arte se torna um “lugar de processamento de outros saberes, voltados à criação de uma

 

sensibilidade sutil, aberta a outras formas de comunicação, trocas afetivas e modos de intervenção no mundo público” (2014a, p. 1).

Essas práticas não se desvinculam da situação de apresentação e, por vezes, nela se intensificam (QUILICI, 2008). Foi o que fizemos em DNA, quando a imobilidade seguiu presente em parte do trabalho apresentado ao público. Essa não foi uma decisão tomada a posteriori, todo o processo foi pensado não como “preparação”, mas os procedimentos já eram vistos como potência de material cênico e, mais do que tudo, tinham a função de “despreparar” como citado no capítulo anterior. Dentre as funções da aplicação sobre si, Foucault (2010a) destaca uma função crítica:

A prática de si deve permitir desfazer-nos de todos os maus hábitos, de todas as opiniões falsas que podemos receber da multidão ou dos maus mestres, como também dos pais e dos que nos cercam. “Desaprender” (de-dicere) é uma das importantes tarefas da cultura de si (FOUCAULT, 2010a, p. 446).

Na Filosofia Antiga, o “cuidado de si” era constituído de um conjunto de procedimentos bem elaborados e, ao mesmo tempo em que era um dever, era uma técnica, ou seja, “uma obrigação fundamental e um conjunto de procedimentos cuidadosamente elaborados” (FOUCAULT, 2010a, p. 600). Mas, ainda segundo o pensador francês, o “cuidado de si” não era exclusivo da vida filosófica, era um preceito de vida muito valorizado na Grécia Antiga.

Dentre alguns artistas de Butoh, é possível identificar procedimentos que dialogam com práticas ascéticas. Para a

 

performance solo Tatsumi Hijikata e o povo japonês – A

rebelião do corpo de carne, de 1968, Hijikata, de acordo com

Stephen Barber, “preparou-se, por muitos meses, com extrema disciplina e inanição, como se tivesse retirado qualquer elemento estranho ou supérfluo de seu corpo” (BARBER apud PERETTA, 2011, p. 65).

Outro exemplo de artista que utiliza tais práticas em processos de formação e criação é a performer Marina Abramovic. Segundo Quilici (2008, p. 2), suas técnicas, ainda que sejam reinvenções, contém traços de práticas ascéticas. São, muitas vezes, situações limite que trazem outras qualidades de consciência e comunicação: “testes de resistência física, tolerância da dor, mudança dos hábitos alimentares, do sono, da sexualidade, exercícios de silêncio” (QUILICI, 2008, p. 2-3).

O interesse por práticas espirituais levou Abramovic à cidade de Campo Magro para trabalhos xamânicos e, posteriormente, a assistir DNA de DAN no dia 12 de janeiro de 2014. Após a performance, em uma pizzaria, a artista comentou que o que lhe chamou a atenção em DNA foi o trabalho com a presença energética do performer e seus estados, elementos que vêm sendo pouco explorados pela maioria dos artistas contemporâneos, que mostram maior preocupação com a parte conceitual de suas obras. Abramovic realizará no Sesc Pompéia – SP, de 10 de março a 10 maio de 2015, a exposição Terra comunal - Marina Abramovic + MAI, uma retrospectiva de suas performances e, pela sua curadoria, escolheu oito artistas brasileiros para performar no local, dentre os quais está Maikon K com DAN de DAN. Na reportagem entitulada No colo de Marina, da Folha de S. Paulo,

 

Abramovic afirma que sua escolha por DNA de DAN “foi imediata. O trabalho é forte e preciso”31.

Essa é uma nova versão do trabalho, construída como performance de longa duração (aproximadamente cinco horas), onde aprofundamos e expandimos estados experimentados na primeira etapa, em 2013. Para este próximo passo do trabalho, a presente pesquisa e reflexão trazida por ela é enriquecedora. Neste momento, me identifico com a pesquisadora e performer Eleonora Fabião que diz: “em alguns momentos, simplesmente preciso da palavra escrita, preciso esculpir massa verbal para seguir investigando” (FABIÃO, 2010, p. 321).

Uma escrita também entre teoria e prática que contribuiu nesse processo de investigação acadêmica e artística é a tese de doutorado de Tanya Calamoneri (2012). Assim como os autores citados têm olhado para determinados fazeres artísticos pela lente do “cultivo”, Calamoneri o faz pensando no Butoh na tese Becoming nothing to become something:

methods of performer training in Hijikata Tatsumi’s Butô dance (2012). A pesquisadora demonstra conexões entre o

Butoh e as práticas Zen Budistas a fim de aprofundar o que frequentemente ouvia dos professores em seus treinamentos: “tornar-se nada” (2012, p. 213). Expõe cuidadosamente aproximações e limitações, tendo consciência do caráter performativo do Butoh e contemplativo da prática meditativa

                                                                                                                         

31No colo de Marina. Folha de S. Paulo. 13 fev. 2015, folha E5. Versão

eletrônica disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/02/1589040-brasileiros- selecionados-por-marina-abramovic-vao-interagir-com-a-artista.shtml. Acesso em:18 fev. 2015.

 

budista. Ela enfatiza o profundo diálogo entre essas práticas, considerando a influência do Zen Budismo na cultura japonesa. Calamoneri embasa sua tese em entrevistas com diversos praticantes de Butoh32, na sua experiência enquanto aluna em workshops dessa dança, e no trabalho de Kitaro Nishida, autor que produz um diálogo entre a filosofia anglo- europeia e o pensamento japonês (CALAMONERI, 2012). Yasuo Yuasa diz que a filosofia de Nishida é baseada na sua experiência viva (taiken) com a meditação zazen (YUASA, 1987). O objetivo da autora, ao investigar a filosofia budista em relação ao Butoh, é enfatizar as correlações para, longe de produzir uma visão de exotização da japonidade dessa manifestação artística, salientar o caráter prático desses caminhos (CALAMONERI, 2012).

Os questionamentos sobre a “disciplina” e a “biopolítica” no treinamento de atores (MIRANDA, 2003) me incitaram inicialmente a descobrir novos procedimentos na criação de DNA de DAN. Esses procedimentos foram a minha resposta prática, uma tentativa de produzir “desassujeitamento” (REVEL, 2005, p.28). Ao longo deste processo me encontrei com as respostas teóricas do próprio Foucault ao aparentemente onipresente e onipotente poder: as “técnicas de si”, a “parresia”, o “cultivo de si”, etc. Essas técnicas, que ele