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Sobre a origem das coisas históricas

2 MEUS ANTECEDENTES

2.1 BUTOH

2.1.2 Sobre a origem das coisas históricas

“As origens do butoh estão em uma terra selvagem habitada por espíritos elementares, que a mente racional não pode alcançar” (Tatsumi Hijikata)

Pensar em “fundadores” do Butoh, em país de nascimento ou limites geográficos, suscita o questionamento da origem enquanto ponto de onde as coisas e as práticas evoluiriam. Michel Foucault, partindo da filosofia de Friedrich Nietzsche, trabalha com a história genealógica – e mais tarde com a história arqueológica – fazendo uma crítica à ideia de origem na história. Voltar o olhar para a teoria de Foucault é interessante, não para produzir uma história genealógica do Butoh, buscando minuciosamente documentos, mas para considerá-lo enquanto prática tortuosa, com múltiplas influências e referências. Pois a genealogia se opõe “ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias” (FOUCAULT, 1998, p. 12). A genealogia trata de uma história assumida como falha e claudicante. Assim vejo o Butoh, como algo cheio de buracos nos quais podemos adentrar e produzir diálogos.

Para Foucault (1998), “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (p. 12). O autor afirma que as coisas não se iniciam por um gênio, mas que se pode demonstrar, pela história genealógica, que o começo é sempre baixo, o que desfaz as vaidades e petulâncias da criação (FOUCAULT, 1998). Sobre a ideia de origem

 

(Ursprung)12 das coisas históricas, Foucault comenta causticamente que:

gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã. A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá−la se canta sempre uma teogonia. Mas o começo histórico é baixo. Não no sentido de modesto ou de discreto como o passo da pomba, mas de derrisório, de irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações (FOUCAULT, 1998, p. 18).

A crítica de Foucault é sobre a noção de origem como algo que beira o divino nas escritas da história. É nesse ponto que podemos pensar na genealogia para maleabilizar um Butoh colado à Hijikata e Ohno num contexto, também endurecido, do pós-guerra no Japão. Segundo Greiner (2013), “a maioria das experiências norteadas por artistas (que pouco ou nada conhecem das questões iniciais do butô e dos treinamentos para a criação) está amparada nos ‘produtos’ do butô e não no processo perceptivo que havia gerado as pesquisas mais potentes” (p. 3). No seguinte trecho de uma carta de Hijikata à Natsu Nakajima, este parece rir da sua responsabilidade de “fundador”, e diz que, por ser denunciado como tal, se distanciou dos próprios anseios. Declara que:

denunciados como fundadores do recém-criado butoh, não temos ninguém que nos exorta. Portanto, só nos resta abandonar a língua sob a                                                                                                                          

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De acordo com Gonçalves (2007), a história arqueológica de Foucault, baseada na visão de Nietzsche sobre a história, abandona a ideia de origem (Ursprung) em função das ideias de proveniência (Herkunft) e emergência (Entestehung).

 

chuva. Querida discípula, eu agora sou um sapo que se distanciou da sombra dos meus anseios (HIJIKATA, 1999, p. 16).

Para Albuquerque Júnior (2009), tanto Foucault quanto Nietzsche partilham do ponto de vista de que:

a história deve ser uma atividade que busca destronar ídolos e deuses, que visa inquietar o pensamento e o poder, que se destina a libertar- nos do peso do passado, de sua repetição mecânica e acrítica; ela deve arruinar a familiaridade com as coisas de antanho, dessacralizar e desnaturalizar aquilo que nos chega do passado como sendo valores universais e eternos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 98).

Há uma forte influência do pensamento de Nietsche na visão de Foucault sobre a história. No texto Foucault leitor de

Nietzsche, Scarlett Marton (1985) entende a genealogia

nietzschiana como “análise da proveniência e história das emergências” (p. 39). Em Nietzsche, Foucault identifica uma mudança no ponto de vista da interpretação. O filólogo alemão se dedica a interpretar interpretações e se importa em partir daquele que enuncia a interpretação.

Perguntar-se pela proveniência de um indivíduo, de um sentimento ou de uma idéia, não é descobrir suas características genéricas para assimilá-lo a outros, nem mostrar que nele o passado ainda está vivo no presente, muito menos encontrar o que pôde fundá-lo; mas sim buscar suas marcas diferenciais, repertoriar desvios e acidentes de percurso, apontar heterogeneidades sob o que se imagina conforme a si mesmo (MARTON, 1985, p. 39).

Foucault aponta o deslocamento de uma “história global” para uma “história geral” (FOUCAULT, 2013). Na

 

história global se busca uma significação comum por trás dos fenômenos de um período, o “rosto” de uma época. Deste modo, os acontecimentos estariam regidos por linhas invisíveis que coordenariam, sob uma lógica sincronizada, seus rumos consonantes. Uma história geral, por sua vez, não estaria buscando demonstrar um paralelismo entre histórias diferentes, nem estabelecendo analogias de datas, seu objetivo é deixar o centro único e descrever o espaço de uma dispersão.

Sendo o Butoh comumente pensado em relação direta com o contexto pós-guerra, isso por vezes parece justificar cada movimento ou palavra de Hijikata. Peretta (2011)13 comenta que parte das leituras simplistas “buscam vincular a estética e filosofia que a dança Buto coloca em movimento ao trágico episódio da bomba atômica” (p. 11). Ou seja, vista a importância e grandiosidade da Segunda Guerra Mundial, essa é pensada como centro em torno do qual os pequenos acontecimentos, como a vanguarda artística japonesa, seriam apenas desdobramentos esperados. No entanto, Peretta afirma que “descontinuidades e releituras das mais diferentes matrizes artísticas e culturais formam, portanto, o húmus do qual a dança Buto tirou suas forças para afirmar-se enquanto uma nova epistemologia do corpo” (p. 11).

Durval de Albuquerque Júnior no artigo Michel

Foucault e a Mona Lisa ou como escrever a história com um sorriso nos lábios (2008), analisa o olhar irônico de Foucault

sobre a história. A história praticada como sátira sabe que mais inventa o seu objeto do que desvela qualquer verdade sobre ele, e que o prazer do historiador não está na descoberta da verdade derradeira, “mas na sua procura, e que a finalidade de seu saber não é encontrar as versões definitivas sobre os fatos, mas desmontar aquelas versões tidas como verdadeiras, tornando

                                                                                                                         

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A chamada “PERETTA, 2011” refere-se ao livro O soldado nu: as origens da dança buto” a ser publicado nos próximos meses no Brasil. O ano de 2011 é a data constante no documento que foi gentilmente cedido pelo autor para esta pesquisa.

 

outras possíveis” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008, p. 101). É nesse sentido que afirmo que no Butoh há uma multiplicidade de verdades que além de instáveis, se consomem mutuamente. Portanto, se as verdades são constantemente revalidadas, é possível colocar em dúvida a existência de uma “Verdade original” do Butoh, localizada em um ponto específico da história de Hijikata e do Japão. Em contrapartida, as teorias e práticas que vão, por diferentes caminhos, agregando sentidos ao que é Butoh, ganham importância na medida em que produzem verdades sobre ele. Assim, esta arte do corpo é potencialmente capaz de evocar inúmeras possibilidades de criação artística, sem que uma dessas se sobreponha às outras.

A maneira corrente de abordar o surgimento do Ankoku

Butoh é dizer que foi fundado no final da década de cinquenta

no Japão por Hijikata (GREINER, 1998; BAIOCCHI, 1995; FRALEIGH; NAKAMURA, 2006, VIALA; MASSON- SEKINE, 1988). Este, em parceria com Yoshito Ohno, realizou em 1959 a performance intitulada Kinjiki – forbiden colors, baseada na obra literária homônima de Yokio Mishima (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Tamanho foi o estranhamento causado por esta performance que Hijikata pediu seu desligamento da Associação de Dança do Japão (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Em Kinjiki, Yoshito recebia uma galinha das mãos de Tatsumi Hijikata, “simulava sexo com a ave entre suas pernas, acabando por matá-la, para depois sucumbir ao ataque do próprio Hijikata” (GREINER, 1998, p. 19).

Capturar uma versão única do que é o Butoh é uma impossibilidade desde essa época, visto que ele parece sofrer uma instabilidade conceitual decorrente do caráter aberto a ele conferido por seus praticantes e estudiosos (MASSON- SÉKINÉ, 1995, TANAKA, 2000, BAIOCCHI, 1995, FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Além disso, desde seu início, produziu manifestações heterogêneas, ou seja, se

 

apresenta cenicamente de diversas formas. De início, já é possível localizar nuances no pensamento sobre Butoh dos seus principais enunciadores. Peretta (2011) coloca que os meios pelos quais cada um dos artistas buscavam eliminar o individualismo e o self na dança eram muito diferentes. Segundo Peretta, Hijikata empreendia essa busca “através de uma degradação do sujeito” e Ohno, “através do amor e da gratidão” (PERETTA, 2011, p. 155).

Ao entrar em contato com uma série de obras que tratam do Butoh (GREINER, 1998; BAIOCCHI, 1995; FRALEIGH; NAKAMURA, 2006), poder-se-ia dizer que os autores não foram capazes de capturar a “verdadeira essência” dessa arte porque há contradições ao comparar os seus discursos. Por exemplo, para o crítico de dança Tachiki Akiko, o Butoh desliza para dentro de novos trabalhos de dança no Japão (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Conforme Baiocchi (1995), comentando festivais de Butoh que aconteceram na década de 90 na Holanda e Alemanha, “o butoh não pode mais ser identificado apenas com Ohno ou com os japoneses, e que existem nele manifestações mais e menos interessantes ou parcialmente ultrapassadas como em qualquer outra expressão artística” (BAIOCCHI, 1995, p. 88). Nos comentários do texto

Butô, Kazuo Ohno, dança japonesa e eu? de Letícia Sekito no

blog Idança, um rapaz interroga com quem poderia estudar Butoh no Brasil. A autora então responde que esse movimento acabou. Ela sugere que o rapaz não tenha entendido que dançar Butoh hoje não é mais possível:

Te aconselho a dar uma lida com mais calma nas conversas daqui e nos outros artigos relacionados aqui do Idança sobre butô para poder perceber um pouco melhor o panorama e situação do butô. Acho que você se confundiu um pouco. Talvez não tenha ficado claro, mas aqui no Brasil acho ser uma impossibilidade de ter alguém que dê um treinamento de butô. Talvez o que você possa encontrar são pessoas

 

que se sentem atraídas ou que se inspirem com o que foi o movimento do butô. No Japão você poderia ir conhecer o estúdio Kazuo Ohno, em Yokohama, onde agora o filho dele, Yoshito Ono, está dando workshops (SEKITO, 2010, s/p.)14.

Pensando nessas contradições, retorno às palavras de Hijikata e Ohno para procurar o que projetaram. Porém, quando lá eu chego, como um bumerangue, as incertezas são relançadas sobre mim. É por isso que nesta pesquisa, parto do pressuposto de que o Butoh não é uma manifestação acabada, mas que está constantemente sendo construído. O fato de que encontro afirmações diferentes sobre o tema, pessoas dançando de maneiras diversas, pode se dar pelo encontro de um espaço a ser preenchido nesta prática. O argumento que estou a desenvolver é de que não há uma verdade única do Butoh a ser revelada ou reencontrada, o que pode ajudar a identificar esse espaço vazio. Esse olhar outro sobre o Butoh, não é um olhar “sobre”, que separa sujeito e objeto, mas um olhar “no” ou “com” o Butoh.

Neste trabalho parto da premissa de que nos discursos sobre o Butoh há espaços entre e vazios, ou seja, o “ma” e o “mu” poderiam ser metáforas para refletir sobre a própria existência dessa prática. Uma prática estética onde os discursos são produzidos a partir de muitas vozes e muitas mãos, com (in)verdades e mitificações. Se são os discursos que criam a realidade do que é Butoh; um “Butoh-em-si”, um “Butoh original”, tornam-se uma impossibilidade, ou seja, nunca existiram. Assim, dizer que o Butoh não existe mais e dizer que o Butoh nunca existiu são coisas diferentes. Nesses termos, o Butoh que já não existe mais, foi algo específico sobre o qual alguém (provavelmente Ohno e Hijikata) possuía um saber e que já não é possível acessar. Entendendo a importância de

                                                                                                                         

14Disponível em: http://idanca.net/buto-kazuo-ohno-danca-japonesa-e-eu/.

 

guardar as proporções culturais, no caso do presente trabalho encaro essa arte a partir da abertura para significar o que seria o Butoh, e assim, penso nele como força que cria espaços para a dança e para a vida.