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Colocando minha prática em questão

2 MEUS ANTECEDENTES

2.2 O TREINAMENTO NO LUME TEATRO

2.2.2 Colocando minha prática em questão

Quando comecei o processo de criação da performance

DNA de DNA, eu estava colocando em questão minha prática,

as influências fortes que eu tinha do treinamento sistematizado do Lume e um desejo de arriscar um treinamento que mais despreparasse do que preparasse o performer. Estava aturdida, no bom sentido, com as provocações feitas principalmente pela professora Maria Brígida de Miranda e pelo professor Matteo Bonfitto nas disciplinas que cursava no Mestrado em Teatro na UDESC, em 2013. E foi num lugar de desafio que me coloquei. Exponho rapidamente aqui, a ideia que funcionou como ponto de inflexão no meu pensamento sobre o processo criativo: o treinamento do ator visto através do estudo da sociedade disciplinar, discussão feita por Miranda (2003).

Em sua tese de doutoramento, Miranda (2003) analisa os treinamentos de atores desenvolvidos no século XX tendo como base teórica os estudos foucaultianos sobre o “biopoder”, o “poder disciplinar” e a “docilização dos corpos”. Traça um paralelo entre o momento histórico das disciplinas e a insurgência de várias formas de treinamento para o ator. Para Foucault (1975), o momento histórico das disciplinas nasce com uma arte do corpo que o torna mais útil quanto mais obediente e vice-versa. “Forma-se então uma poética das

 

coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos” (FOUCAULT, 1975, p. 119). Miranda (2003) sugere que há um processo histórico que produz a necessidade do treinamento para os atores. Essa nova maneira de encarar a preparação do ator está inserida em uma sociedade cientificista, daí o uso de palavras como “laboratório”, “experiência”, tão frequentes no vocabulário das teorias teatrais do século XX. Poderia o Butoh e os seus treinamentos enquadrar-se como campo de resistência à sociedade disciplinar?

Em 1853, o Japão sofreu uma imposição dos hábitos ocidentais através de um acordo político feito com o governo norte-americano (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Segundo as autoras, em poucos anos o Japão passou de um país com costumes ainda medievais a um país moderno, imitando a diplomacia europeia e norte-americana. Ou seja, desde então, já se iniciava um processo de ocidentalização no país. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os valores capitalistas se tornaram ainda mais intensos e vários movimentos artísticos se levantaram em resposta a isso. Akaji Maro, artista que viveu com Hijikata por três anos e fundou o grupo Dai Rakuda Kan, afirma:

o Butoh tira sua potência da cultura japonesa, começa como um espírito de revolta para quebrar as regras e subverter as formas, é a suspensão das tomadas de decisões. Nós deixamos o corpo falar por ele mesmo, revelar a si mesmo. Para rejeitar a superficialidade da vida cotidiana. Há um grande materialismo hoje no Japão, o Butoh é a total rejeição desses valores materialistas. Nós precisamos parar esse desenvolvimento acelerado, parar a rapidez (MARO, 1989).

Ainda que o Butoh seja a negação de alguns elementos “invasores” ele não parece ter sido uma tentativa purista de

 

recuperar valores do Japão tradicional. Olhando especificamente para o movimento de Hijikata, sua arte esteve em um lugar entre a retomada de alguns aspectos da tradição e a participação na arte de vanguarda japonesa – com fortes influências europeias.

Bruce Baird (2012) traça uma análise considerando o nome completo da performance mais conhecida do Butoh de Hijikata: Tatsumi Hijikata and the japanese: rebellion of the

body (Tatsumi Hijikata to nihonjin – nikutai no hanran), que

comumente tem apenas o subtítulo a nomeando – no Brasil é traduzida como Revolta da Carne (GREINER, 2013), em Fraleigh e Nakamura (2006) se encontra como Revolt of the

flesh, mas Peretta (2011, p. 65) esclarece que a tradução mais

próxima do termo nikutai seria “corpo de carne”, pois trata-se, em japonês, de um corpo diferente de shintai (corpo construído culturalmente) e karada (corpo como recipiente), ou seja, a tradução seria Hijikata Tatsumi e os japoneses – a revolta do

corpo de carne. Para Baird, considerar todo o título do trabalho

abre a possibilidade de fazer relações e traçar oposições, por exemplo, o fato do nome de Hijikata estar de certo modo destacado do “povo japonês” e esse primeiro bloco estar ao lado de uma revolta no corpo. Para ele, admitir esses dois temas afasta as leituras unilaterais que tratariam do Butoh apenas como manifestação da identidade ou estética japonesa ou somente como um processo focado no corpo. Pois, ao mesmo tempo em que os artistas abraçam uma visão do Butoh como algo sem nenhum propósito (oposição ao processo de modernização e utilização dos corpos na sua máxima produtividade) eles também trabalham sobre técnicas, formas, que demonstram objetivos.

De acordo com o autor, esses objetivos girariam em torno da criação de outro corpo para si, o que fez com que Hijikata e seu companheiros cultivassem uma série de técnicas próprias para se desfazer de um corpo específico. Esse corpo japonês era, segundo Anne Allison, o de “cidadãos

 

trabalhadores dispostos a sacrificar-se por seus empregos e a acolher a tecnologia em seus locais de trabalho, vida de consumo e subjetividade” (ALLISON apud BAIRD, 2012, p. 18). O autor traz uma divisão das tecnologias feitas por Foucault que, segundo Baird, o ajudam a pensar no caso do Butoh. Seriam elas as tecnologias de produção, de signos, de poder e de si. Essas tecnologias funcionam em relação umas com as outras, e não isoladamente (BAIRD, 2012). Para Baird, o Butoh travaria a sua revolta a partir das tecnologias de si e dos signos, pois o corpo em Hijikata seria um sistema sígnico. Por isso se dedica a elucidar quais técnicas eram essas e de que maneira operam uma reconstrução dos corpos-mentes e suas tentativas de se desfazer de convenções e conceitos.

Colocando a primeira parte do título em confronto com a segunda, Baird (2012) infere que a revolta desse corpo seria contra uma identidade ou ética nacional ao mesmo tempo em que Hijikata se vê como parte desse grupo imaginário. Baird ainda sugere que na tentativa de estabelecer uma comunicação com as pessoas, Hijikata, que não se encerrava na linguagem limitada por convenções, criava uma linguagem subvertida, ou linguagens totalmente novas. Essas tecnologias de si, são facas de dois gumes. No caso do Butoh, o autor destaca que a criação de um corpo mais flexível, capaz de suportar outros limites de dor, habilidoso para mover-se em diferentes caminhos pode ser apenas o equivalente a uma técnica básica de sobrevivência e não uma revolta significativa contra o sistema. A habilidade, apreciada por Hijikata, de concentrar-se em diversas coisas ao mesmo tempo, pode ser muito útil no reino produtivo. Baird (2012, p. 10) objetiva analisar como os dançarinos moldavam e remoldavam (fashion and refashion) a si mesmos numa era de competitividade e crescimento econômico.

Interessa discutir de que modo as técnicas no Butoh, mesclando identidades e alteridades, trabalham a favor de um “outro corpo”. Sobre a técnica no Butoh, Greiner comenta que o “Butô foi concebido como uma técnica com habilidade

 

cognitiva para disponibilizar o corpo para diferentes estados e percepções” (GREINER, 2013b, p. 2).

Por outro lado, o pensamento sobre treinamento de Ohno, que trabalhava essencialmente com improvisações, é o seguinte:

Antes de empregar técnicas, a questão da mente, espírito ou vida deve ser considerada. Quando se coreografa, por exemplo, se você considera técnicas e as aplica à dança, de algum modo, a parte crucial do processo desaparece. Se a técnica vem antes na dança, bom, por que deveríamos nos dar ao trabalho de dançar? Nós não dependemos de técnicas para viver. Antes disso, eu mesmo experimentei que quanto mais técnicas são empregadas, mais elas deixam de fora o que é fundamental. Eu não preciso de técnicas para seguir minha vida depois da morte. Eu tento ignorar técnicas e estruturas, tento focar no espiritual. É isso que me esforço para conquistar na minha dança (OHNO, Sobre a técnica, tradução minha).

Nos registros das aulas de Ohno (BAIOCCHI, 1995), ao invés de exercícios típicos para dançarinos, imagens servem de gatilhos para a dança. Como acontece nesta fala sua: “para os mortos, olhar a flor e comê-la é a mesma coisa. Os fantasmas comem com os olhos. Você e a flor são a mesma coisa. Comendo a flor está comendo a si mesmo. Nós precisamos dos dois” (OHNO apud BAIOCCHI, 1995, p. 50). Pode-se supor que imagens como esta são ignições para que o dançarino acesse outras possibilidades de vida no seu corpo, no entanto, elas não apontam para a forma que a dança deve ter.

A dança de Hijikata era pensada por ele como uma “reabilitação humana”, um “não-produto sem propósito” (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006, p. 2). Para Antonin Artaud, parafraseado por Quilici, o teatro é o lugar onde se refaz a vida (QUILICI, 2011, p. 2). Essa proposição está muito

 

próxima à ideia de reabilitação humana e faz com que a arte esteja para além do entretenimento ou do espetáculo. Isso estava claro para Hijikata, sua “dança da impotência” (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006, p. 23) pretendia desconstruir o corpo, o sujeito e a própria dança. Além disso, os seus trabalhos pareciam também produzir uma mudança no corpo do espectador. Goda Nario, crítico de Butoh, escreveu sobre a performance que teria inaugurado o Butoh, Kinjiki:

[Kinjiki] fez com que aqueles de nós que assistimos tremêssemos, mas após o calafrio passar por nossos corpos, o que ficou foi uma sensação de relaxamento fresco. Talvez fosse uma escuridão oculta em nossos corpos similar aquela encontrada em Forbiden Colors e que agora respondia a ela com um sentimento de

liberação (NARIO apud FRALEIGH;

NAKAMURA, 2006, p. 8).

Frente a este relato de Nario, o leitor pode se questionar acerca da liberdade. Sobre esta questão, podemos refletir a partir dos escritos de Foucault. Quando se fala em resistência ao poder, é comum que palavras como liberdade e liberação apareçam. Em entrevista (20 de janeiro de 1984) A ética do

cuidado de si como prática da liberdade, Foucault (1999b)

deixa claro que é preciso tomar cuidado com a ideia de uma “liberação” através das “práticas de si”, pois tratando o tema nesses termos, haveria uma essência humana a ser libertada das imposições históricas e não é este o caso. De acordo com o trecho abaixo, escrito por Peretta, pode-se supor que Hijikata foi aos extremos da experiência, na tentativa de proporcionar ao ser mais possibilidades de existências no mundo.

Dessa forma Hijikata criou as bases para a construção de um corpo crítico, um corpo de carne que pode acolher na densidade de sua matéria a multiplicidade de existências que o compõem, levantando-se nos confins de si

 

contra uma concepção alienada de indivíduo e contra os determinismos culturais que se impõem sobre a sua carne. Construiu assim as matrizes para a construção de uma corporeidade crítica, isto é, um modo de “ser corpo” fluido e polimórfico que assume na configuração de sua materialidade uma resistência radical às imposições culturais das estruturas de poder dominantes (PERETTA, 2012, p. 3).

As práticas de liberdade surgem sempre em relação às práticas de poder. Sílvio Gallo afirma que “práticas de liberdade são produtores de saídas, invenções de linhas de fuga, um investimento micropolítico nas relações cotidianas; estabelecimento, ativo, de novos jogos de poder” (GALLO, 2013, p. 388). Ou seja, a forma do que se manifesta esteticamente enquanto resistência só adquire esta ou aquela configuração a partir da qualidade, do tipo de poder que está inscrito nos corpos. Pensando em termos micropolíticos, Gallo coloca que

na direção de uma ética como estética da existência, o ocupar-se consigo mesmo, o cuidado em construir uma vida bela e justa, faz- se na contraposição a um sistema de dominação, faz-se na construção de fissuras a este grande modelo de relações, produzindo linhas de fuga e uma espécie de resistência ativa, que produz, que cria e transforma nas próprias brechas do modelo instituído. É por isso que, num modelo político centrado nas ideias de segurança e de produção de seguridade, as práticas de liberdade são uma opção pelo risco, pelo instável, pelo heterogêneo (GALLO, 2013, p. 389).

Assim, é plausível que num contexto de disciplina as práticas de resistência de Hijikata estivessem estreitamente ligadas às temáticas de destruição, morte e deformidade.

 

Fraleigh e Nakamura (2006) relatam que Hijikata disse não aceitar a democracia, a assim chamada invasão ocidental. Talvez seja nesse sentido que afirme seu desejo de fazer uma dança que só os japoneses pudessem entender (BAIOCCHI, 1995) e para isso passa anos de sua vida esfacelando a própria dança (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Deste modo, os corpos abjetos de Hijikata seriam sua resposta a um mundo que ele não aceita, à formatos de dança (ballet clássico, neue Tanz) aos quais o seu corpo não se adéqua. Para ele, “o modo como os europeus organizam o seu pensamento determina a maneira como eles dançam” (HIJIKATA, 1995, p. 58). Portanto não é apenas o movimento que o artista vai esfacelando ao longo do tempo, ele faz um trabalho sobre a própria linguagem utilizada para falar daquilo que faz, como demonstrado anteriormente. O que também pode ser interessante observar, no caso do Butoh de Hijikata e Ohno, são as práticas radicais que desembocam em uma dessubjetivação ou uma desconstrução do indivíduo. Em ambos os casos, vale ressaltar que são processos que se dão através dos corpos e não fora deles.

Para Darci Kusano (2006), Hijikata, ao invés de seguir a dança nos formatos que lhe haviam ensinado, identifica nos movimentos daqueles acometidos pela poliomielite características do seu Butoh. Peretta produziu sua tese de doutoramento tratando de uma pedagogia crítica do corpo como um projeto político-artístico de Hijikata. Para Peretta,

[Hijikata] apresentava as origens do “si” enquanto um cemitério, enquanto um terreno escuro onde habitam os corpos acumulados de seus mortos. Desvela assim o fato de que um corpo-memória jamais se esgota em uma existência individual e subjetiva, mas traz consigo uma pluralidade de presenças difusas que o compõem também em um nível material (PERETTA, 2012, p. 3).

 

Apresentei alguns indícios de que não há uma, mas várias possibilidades de treinamentos nos diferentes Butohs. A não fixação de um treinamento específico no Butoh pode ser vista como um espaço aberto para invenções de procedimentos. Um exemplo de onde essas invenções podem chegar é o trabalho de Min Tanaka na Body Weather Farm, onde o treinamento está associado ao trabalho no campo, na plantação de arroz (TANAKA, 2000).

Repensar o treinamento do ator/dançarino me ajudou a refletir sobre as experiências que eu havia tido e as que eu viria a suscitar no processo de criação de DNA de DAN.