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SEMPRE FICA UM POUCO DE PERFUME: reverberações do Butoh

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Academic year: 2019

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UNIVERSIDADE  DO  ESTADO  DE  SANTA  CATARINA  –  UDESC   CENTRO  DE  ARTES  –  CEART  

PROGRAMA  DE  PÓS-­‐GRADUAÇÃO  EM  TEATRO  –  PPGT  

 

KYSY  AMARANTE  FISCHER  

   

FLORIANÓPOLIS,  2015   DISSERTAÇÃO  DE  MESTRADO  

SEMPRE  FICA  UM  POUCO  DE  

PERFUME:  

reverberações  do  Butoh  

no  processo  criativo  de  

DNA  de  

DAN  

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KYSY AMARANTE FISCHER

SEMPRE FICA UM POUCO DE PERFUME:

REVERBERAÇÕES DO BUTOH NO PROCESSO CRIATIVO DE

DNA DE DAN

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes, da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Teatro.

Orientadora: Profª. Drª. Maria Brígida de Miranda.

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

   

F533s Fischer, Kysy Amarante

Sempre fica um pouco de perfume: reverberações do Butoh no processo criativo de DNA de DAN / Kysy Amarante Fischer. – 2015.

202 p. il.; 21 cm

Orientador: Miranda, Maria Brígida de Bibliografia: p. 191-202

Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado de

Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis,2015.

1. Teatro - Japão. 2. Dança - Japão. 3. Performance. I. Maria Brígida de Miranda. II. Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. III. Título.

CDD: 792.0945 – 20.ed.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos os profissionais que formam o PPGT (Programa de Pós-Graduação em Teatro) da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina) e à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pelo apoio e incentivo à pesquisa.

À Maria Brígida de Miranda, por sua leitura de artista e por ser uma mestra que emancipa.

À minha mãe, Madalena Lopes Amarante, por me levar para estar na arte desde pequenina, por fazer todo o esforço para que eu pudesse sempre estudar, por acreditar na educação e me ensinar a amar a leitura. Você é a mulher mais forte do universo e eu te amo muito!

À Vó Didi e Vô Ivo, por nos darem teto, comida e afeto quando precisávamos tanto.

Ao meu padrasto Nilto Kuntze, que sempre fez o impossível para me ver bem.

Ao Uatumã Fattori de Azevedo, por dividir todos os momentos de estudos (e quanto estudo!), buscas, dúvidas, descobertas, sorvetes, mãos dadas, skypes, cobertas, geadas, sóis, sorrisos e saudades.

Ao Seu Marinheiro, Seu Marujo e Vera Costa, por me fazerem sentir no fundo do coração que nunca estou sozinha.

À Carolina Figner de Luna, por estar sempre presente, para ouvir, compartilhar, passear, traduzir e conversar.

Ao Paulo Eduardo Pinheiro Rosa, por ser esse amigo doce que me auxiliou em tantos momentos, cafés e pipocas dessa caminhada.

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À Maria Cristina Horta, por todas as risadas. Minha amiga, diante de tudo o que tenho a lhe agradecer, a tradução do resumo é o de menos.

Ao Cassiano Sydow Quilici, por ser tão generoso com seus conhecimentos e me deixar participar de suas aulas na Unicamp.

À Sandra Meyer Nunes, por me levar a reencontrar minhas leituras com um olhar mais atento.

Às queridíssimas professoras Tereza Franzoni e Fátima Costa de Lima.

Aos generosos colegas: Débora Zamarioli, Ana Paula Beling, Marcelo Fiorin, Nadiana Assis de Carvalho, Adriana Martinez Montanheiro, Antônio Carlos Rodrigues (o Jucca), Adriana dos Santos (a Drica), Wilson Anthony Alano (o Tony) e Livia Sudare que dividiram comigo tantas discussões e referências precisosas. Foi um presente ter vocês comigo!

Ao Éden Peretta, que sem me conhecer, compartilhou seu livro comigo e aceitou ser o professor suplente da banca de qualificação e defesa.

Ao Francisco de Assis Gaspar Neto, por me auxiliar na feitura do projeto de pesquisa e pela amizade divertida desde quando era meu professor na FAP até quando foi meu colega na UDESC. Chico, quando eu crescer quero ser inteligente como você!

Ao Maikon Kempinski, Maikon K, por embarcar em todas as propostas, por confiar e acreditar no meu trabalho.

Ao Beto Kloster, por me receber tão gentilmente em sua casa para os processos de DNA de DAN. Por ser o sonoplasta mais virginiano do mundo e meu médico querido nas horas de emergência.

Aos artistas, monstros, bichas babadeiras e amotinadores culturais da Casa Selvática (jaula aberta dos leões).

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RESUMO

Quando me interessei pelo Butoh e desejei saber mais sobre o assunto, logo percebi que as respostas como “o que é Butoh?” ou “como se dança Butoh?” não me eram dadas. Ainda assim, por alguns anos cultivo a pesquisa e a prática do Butoh. Entre aproximações e questionamentos percebi que meu interesse residia nessa perturbação de querer saber e no tipo de relação possibilitada pela escolha do não-dizer, não mostrar, não revelar, etc. Algo que não configura qualquer egoísmo, mas que torna o artista responsável pelo seu desejo de criação. Através do interesse por essa figura do outro que acompanha e compartilha um processo de busca, relato experiências no processo criativo de DNA de DAN, performance de dança/instalação criada com o artista Maikon K, em 2013, através do Prêmio Funarte Petrobrás de Dança Klauss Vianna/2012, na qual fui preparadora corporal e orientadora de movimento. Nesse percurso vivenciei o que pode ser essa posição de outro que ouve, pontua, sugere, discute e lança questões. As reflexões teóricas e as temáticas abordadas neste trabalho são apontamentos que a prática produziu, como, por exemplo, as ideias de “cultivo de si” de Michel Foucault e os “exercícios espirituais” de Pierre Hadot. Questões essas que contribuem para pensar uma ética do fazer artístico

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ABSTRACT

When I took interest in Butoh and wanted to know more about the subject, I soon realized that answers like “what is Butoh” or “how does one dance Butoh?” were not given to me. Still, I´ve been cultivating for a few years the research and practice of Butoh. Between approximations and questionings, I realized that my interest resided in this disturbance of wanting to know and the kind of relationship made possible by the choice of not saying, not showing, not revealing, etc. Something that doesn´t configure any egoism but, on the opposite, makes the artist responsible for his own desire of creation. Through the interest towards this figure of the other that accompanies and shares a search process, I report some experiences from the creative process of DNA de DAN, dance/instalation performance created with the artist Maikon K, in 2013, through the award Prêmio Funarte Petrobrás de Dança Klauss Vianna/2012, in which I was a body coach and director of movement. In this course I have experienced what can be this position of the other who listens, punctuates, suggests, argues and proposes questions. The theoretical reflections and the themes approached by this work are thoughts that the practice produced like, for instance, the ideas of “self cultivation” by Michel Foucault and the “spiritual exercises” by Pierre Hadot. All those questions contribute to the thought of an ethics of the artistic doings.

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LISTAS DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1...29

Figura 2 – Japonês entrevistado sobre Butoh que parece nunca ter ouvido falar disso...30

Figura 3 – Kazuo Ohno...32

Figura 4 – Imagens do documentário Butoh: piercing the mask...58

Figura 5 – Cartaz da primeira versão de DNA de DAN...99

Figura 6 – Foto da peça Guilhotinaa verdade trepa com a mentira...101

Figura 7 – Desenho feito por Gustavot Diaz tendo eu como modelo vivo...117

Figura 8 – Eu aplicando o látex caseiro no Maikon...122

Figura 9 – Imagens do processo...123

Figura 10 – Imagens DNA de DAN no gramado do MON....124

Figura 11 – DNA de DAN no MON...125

Figura 12 – Foto da performance 1...128

Figura 13 – Foto da performance 2...129

Figura 14 – Foto da performance 3...130

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEART Centro de Artes

LUME Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais MON Museu Oscar Niemayer

PPGT Programa de Pós-Graduação em Teatro SC Santa Catarina

SESC Serviço Social do Comércio SP São Paulo

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...19

2 MEUS ANTECEDENTES...29

2.1 BUTOH...30

2.1.1Um Butoh vivo ou morto?...34

2.1.2 Sobre a origem das coisas históricas...51

2.1.3 Idealizações do Oriente e do Japão...58

2.1.4 Emancipação, tradução e diálogo...68

2.2 O TREINAMENTO NO LUME TEATRO...85

2.2.1 Meu histórico em relação a esse treinamento...86

2.2.2 Colocando minha prática em questão...89

3 O PROCESSO CRIATIVO EM DNA DE DAN...99

3.1 UM SUSTO, UNS ACASOS, UM PROJETO ...100

3.2 O PROCESSO: O OFÍCIO DOS OFÍDIOS...105

3.2.1 A imobilidade...116

3.3 A PERFORMANCE: o desenrolar da cobra...124

4 REFLEXÕES A PARTIR DO PROCESSO...131

4.1 O “CULTIVO DE SI” NA PRÁTICA ARTÍSTICA....132

4.2 UM DIÁLOGO EM DIÁLOGO...145

CONSIDERAÇÕES FINAIS...185

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1 INTRODUÇÃO

Há algo do Butoh que ainda pode movimentar a prática artística realizada no Brasil? Considerando que essa é uma “arte do corpo” (GREINER, 2008) nascida em Tóquio, em 1959, e que nesse contexto específico, o artista Tatsumi Hijikata torna-se o “criador” do Butoh com a performance

Kinjiki (GREINER, 2000), teria ela algo a nos dizer? De acordo com Éden Peretta (2011) essa é uma manifestação corêutica que nasce dentro de um movimento maior de contracultura no segundo pós-guerra. Unido a vários artistas japoneses de diversas áreas, Hijikata produziu muitos experimentos e sua arte gerou reverberações até o outro lado do mundo. Interessa aqui discutir as reflexões que surgem deste embate.

Nesse exato momento eu consigo “passear” nas ruas de Tóquio pela internet. Pelo Google Maps vejo a rua onde está localizada a Keio University Art Center ou

慶應義塾大学アート・センタ, universidade que abriga o

Arquivo Hijikata Tatsumi. Descubro que um pesquisador da Universidade de Massachussets deu uma palestra na semana passada sobre a expansão do Butoh pela Europa e América. Ele se chama Baird, Bruce Baird. Assisto trechos de espetáculos no

New York Butoh Festival 2007 no You Tube. Vejo no Facebook

a foto do dançarino Ko Murobushi tomando uma cerveja e fumando muitos cigarros ontem (22 jun. 2014) na Postdamer Platz, em Berlim. Ele também compartilhou na sua timeline a foto de um lugar totalmente destruído cuja legenda diz “isso não é Hiroshima na Segunda Guerra Mundial, isso é Homs, Síria, hoje!”.

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que mesmo que ela fosse, seus vestígios ficariam. Esse é o título desta dissertação, pois ela trata do meu trabalho como orientadora de movimento da performance DNA de DAN, e a minha prática está impregnada dos perfumes de outros que vieram antes de mim.

O capítulo 1, MEUS ANTECEDENTES, dedica-se a fazer uma revisão dos discursos de autores que contextualizaram o Butoh e também de discursos de artistas e professores brasileiros e estrangeiros com os quais tive contato nos últimos anos. Inicio o capítulo problematizando a legitimidade dessa prática fora de seu contexto japonês. O Butoh surgiu quase quinze anos após a II Guerra Mundial, num Japão modernizado e movimentado por manifestações contra o tratado que tornava o país permanentemente sujeito ao poder norte-americano (PERETTA, 2011). Depois de escutar repetidas vezes professores e colegas dizerem que, por um lado o Butoh está morto, e que por outro minha tarefa enquanto quem pensa/dança/persegue é desenterrá-lo, procuro localizar esses diferentes enunciados, principalmente no Brasil. Tento identificar quais deles me deixam olhando à distância para Tóquio e me dizem que lá esteve o estúdio Asbestos-kan de Tatsumi Hijikata e ali o Butoh surgiu e acabou. Esse debate passa por questões de legitimidade e de idealização do Oriente (ORTIZ, 2000; SAID, 1990). Além disso, busco contrapor essa visão às consignas de praticantes do Butoh de que ele ‘precisa de um futuro’; de que o ‘Butoh é nada’; de que cada um ‘deve encontrar o seu Butoh’; etc.

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pressuposto da não existência de uma resposta definitiva do que é o Butoh (ENDO, 2011; TANAKA, 2000), seria possível “ensinar” algo que não se sabe no plano lógico e racional? Assim, através das dificuldades, as possibilidades criativas apareceriam e pelo que é dito pelos mestres os discípulos seriam levados a invenções dos seus próprios Butohs.

Assim, discutirei a noção, apresentada por Jacques Rancière (2002), do mestre como aquele que emancipa, relacionando-a ao papel da figura propõe e acompanha um processo criativo. No livro O mestre ignorante (2002), Rancière apresenta a teoria de Joseph Jacotot, pedagogo francês do início do século XIX que denunciou a desigualdade – entre aquele que conhece e aquele que tem algo a conhecer – como o afastamento de um ideal de igualdade, objetivo da educação na França pós-revolução. Para Jacotot, é preciso partir da própria igualdade entre sujeitos para promover a igualdade, pois todo suposto ignorante traz consigo uma infinidade de conhecimentos e é sobre esse saber que o ensino deve se fundar (RANCIÈRE, 2002).

A importância dessa presença/ausência me põe a pensar na minha prática como “olhar de fora” nas Artes Cênicas – como ministrante de oficinas, preparadora corporal e colaboradora em processos criativos1. O meu desafio nessas vivências é acompanhar o percurso criativo, equalizando desejos, levantando questões, provocando, acolhendo e, por vezes, me fazendo ausente.

Para diversos pesquisadores, o movimento Butoh se levantou contra uma realidade sócio-cultural japonesa (GREINER, 2005a; FRALEIGH; NAKAMURA, 2006, PERETTA, 2011, BAIRD, 2012). Para Christine Greiner (2005a), o corpo no treinamento do Butoh contribui para o colapso das fórmulas prontas, o que o afastaria do corpo do dançarino no ballet clássico e na dança moderna, treinamentos                                                                                                                          

1Voltaic (2009), O faqueiro de Górgona ou as mil facas encantadas (2009),

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aos quais se submeteram Hijikata e Ohno num primeiro momento. Ao passar pela assimilação de técnicas europeias, eles chegaram a negação das mesmas (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Assim, pela negação, outros desejos e questões se inscreveram em suas práticas. Entre essas questões, esteve a problematização do que é o corpo, seus limites e suas possibilidades estéticas. Para tanto, Hijikata e Ohno criaram caminhos de busca da própria dança e de reinvenção/ desconstrução das educações do corpo.

No Butoh, o pensamento sobre dança é subvertido, maleabilizando a própria ideia de treinamento. As opiniões acerca disso são diversas: Greiner (2013b) afirma que o treinamento proposto por Hijikata está quase totalmente perdido e que os outros artistas reinventam o Butoh de acordo com as próprias necessidades; Renato Ferracini (2003), Ricardo Puccetti (2009) e Ana Cristina Colla (2010) acreditam, a partir dos encontros com diferentes dançarinos de Butoh, que essa arte lança a inquietação de construir uma técnica pessoal; Kazuo Ohno (2014) diz que tenta ignorar técnicas e estruturas e focar no espiritual e na vida, que dispensam técnicas. Desde o

Buto-fu, ou “partitura Butoh” (PERETTA, 2011), de Hijikata, até os inúmeros treinamentos criados depois e a partir dele, um dos objetivos dessas invenções de processos poderia ser criar condições para que materiais expressivos apareçam.

No capítulo 2, O PROCESSO CRIATIVO EM DNA DE DAN, foco nas reverberações dessa arte japonesa na minha prática como “olhar de fora”. O percurso dessa escrita parte do trabalho como preparadora corporal e orientadora de movimento, no processo de elaboração da performance DNA de DAN2, performance/instalação de dança criada em Campo                                                                                                                          

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Magro, Paraná, no ano de 2013, com Maikon Kempinski, Maikon K – artista cênico curitibano que atua desde o final da década de 90.

Desejo, assim, proporcionar uma incursão através do relato da feitura desse trabalho e deixar que as implicações teóricas venham da prática. Ou seja, esta dissertação abriu espaço para desdobrar as dúvidas e problemas que eclodiram no processo criativo. Nesse processo de descrição, me coloco como alguém que se vê na condução de um treinamento, de “ensino” de algo. A relação com Maikon K não é de mestre e discípulo presente nos relatos de quem esteve com Kazuo Ohno, por exemplo (BAIOCCHI, 1995; ENDO, 2011; SARTOR, 1995). Mas, a partir da minha relação com mestres vivos e mortos, trago aqui o que fiz.

Neste relato sobre o processo de criação, proponho uma brincadeira com situações, imagens, discursos, desejos e elaborações. Por vezes, a partir de uma situação – o ensaio foi interrompido por um beija-flor semimorto no chão do estúdio – surge a discussão sobre o contraste entre o planejamento de um processo de trabalho e o que acontece na lida diária. Situações que nos defrontam com as nossas idealizações da criação. Não pretendo homogeneizar no texto o contato que vou tendo com as referências, as histórias que ouço sobre dançarinos de diferentes lugares ou os questionamentos que me são feitos. Essas contribuições surgem de maneiras inesperadas e não-lineares, e isso forma essa discussão.

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Discuto primeiramente a ética como “estética da existência”, como elaborada por Foucault nos seus últimos cursos no Collège de France (2010a, 2010b, 2010c). A partir da década de 80, o pensador traz a discussão das práticas do “cuidado de si” como ação em relação ao poder (GALLO, 2013). Pode-se encarar algumas práticas como constituintes de uma ética, na medida em que se voltam para a construção crítica e permanente dos sujeitos. Na relação do sujeito consigo mesmo, pretendo discutir o treinamento do ator/dançarino capaz de se reinventar como sujeito ético. Assim, podemos pensar em resistência no treinamento utilizando ideias foucaultianas como as “práticas de si”, e as “relações consigo mesmo” que, segundo o autor, podem criar saídas para resistir ao poder biopolítico e produzir técnicas de subjetivação (FOUCAULT, 1999b).

Como Foucault, Pierre Hadot (2006) faz uma reflexão sobre essas práticas transformadoras do sujeito olhando também para a filosofia na Antiguidade greco-romana. Este último, no entanto, ressalta alguns detalhes pouco enfatizados por seu colega, como a importância desse sujeito ir para além dos limites do “eu” e através disso ter um conhecimento do mundo. Essa abordagem se comunica com a tese de Tanya Calamoneri (2012) que coloca experiências de treinamento de Hijikata em diálogo com a filosofia budista e o estado de nada (no-thing).

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a imaginação dos leitores (HIJIKATA, 1995; 2000, OHNO, 1995, VIALA; MASSON-SEKINE, 1988) e vão, juntamente com a disseminação das práticas, ajudar a produzir pensamento e dança no Brasil. Além disso, considero também histórias e boatos que são espalhados sobre Ohno e Hijikata. Por exemplo, conta-se que a cada vez que Hijikata era questionado sobre o que era o Butoh, ele respondia algo absolutamente diferente. Ou ainda, que, se após a sua morte, alguém quisesse falar com ele, poderia usar o telefone.

Portanto, a pesquisa bibliográfica sobre o Butoh, feita neste trabalho, está circunscrita às obras que, num plano ideal, formariam os discursos sobre o tema no Brasil. Ou seja, abarcam preferencialmente referências publicadas em língua portuguesa, espanhola e inglesa. E, ainda assim, muitos textos, artigos e críticas que também tratam do tema não constam na lista de referências, visto que a pesquisa não visa inventariar toda a produção bibliográfica sobre o assunto, mas identificar autores que contribuam especificamente para as discussões levantadas.

Os temas apresentados nessa pesquisa estão recebendo novas contribuições a cada dia e não é por falta de vontade que determinadas leituras não se transformaram em texto aqui. Hoje mesmo, faltando cerca de 10 dias para entregar o trabalho “concluído”, estou lendo uma tese que levanta questões sobre a precariedade dos processos criativos no Brasil, não como escolha, mas como única opção (OKAMOTO, 2009). Gostaria de trazer essa pauta também para a dissertação, mas não há mais tempo para mim, nem tempo de sobra para o leitor.

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“Talvez minha avó venha dentro do meu corpo e dance. Oh! Obrigada! Este é o meu corpo, este é o seu corpo.”

(Tadashi Endo)

ONDE MORTOS DANÇAM COM CRIANÇAS

Era uma casa grande, fria e escura onde os mortos

caminhavam, habitavam histórias e me enchiam de medo ao mesmo

tempo em que não me deixavam tão sozinha. Nesta casa fui criada

por uma senhora, 65 anos mais velha, que escrevia poemas e era

meio mórbida, muito brava. Ela cresceu no sítio, numa casa maior,

muito mais gelada e mais escura, onde os mortos, os santos e as

crianças andavam soltos pelos cantos das paredes de madeira. Essa

senhora virou perfume no mesmo dia que Ohno. Posso dizer que ela

ainda dança, não mais nas festas de igreja da Bocaina do Sul na

década de 1930, ela dança comigo. Porque aprendemos a conviver

com nossos mortos.

Mas nenhuma de nós fala japonês.

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2 MEUS ANTECEDENTES

Figura 1

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2.1 BUTOH

Figura 2 - Japonês entrevistado sobre Butoh que parece nunca ter ouvido disso.

Fonte: BUTOH: PIERCING THE MASK. 1991. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=i2d5a3c1Gb0>. Acesso em: 25 abr. 2014.

Para iniciar este capítulo, trago relatos de experiências que tive desde que entrei em contato com o Butoh. Essas pequenas histórias levantam provocações feitas desde 2010, sobre a minha prática artística e pesquisas acadêmicas relacionadas ao tema. Questões como legitimidade, origens, identidade e tradução vêm à tona quando uma brasileira – catarinense, lageana que fala português, espanhol, inglês e alemão, mas não fala japonês – decide se aproximar do Butoh.

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trabalhos como modelo-vivo. Mas nada disso me faz ou não uma butoísta. Talvez seja o amor pela dança que comecei a sentir ao ser erguida por um bailarino, quando eu tinha oito anos. Me sentia grande, voava. E foi dançando Ballet Clássico e Dança Moderna (assim como Ohno e Hijikata) que comecei a frequentar tudo o que me trouxesse informações sobre arte.

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Figura 3 – Kazuo Ohno.

Fonte: http://3.bp.blogspot.com

Às provocações:

Em 2012 me candidatei a uma residência de pesquisa em dança na Casa Hoffmann - centro de estudos do movimento, em Curitiba. O projeto que propus era intitulado O corpo morto no Butoh. Na apresentação à banca3, notei que esse título suscitava certo desconforto. Com o projeto nas mãos, os avaliadores me pediram que eu justificasse minha atração por esta arte “japonesa”. Expliquei que me interessava por uma pesquisa pessoal de movimento e que pensar em Butoh vinha me ajudando nesse caminho.

Como é de praxe, pediram que eu dançasse. Fiz uma improvisação de cinco minutos. Constrangida com aquela situação de avaliação, me sentei novamente diante deles e só conseguia pensar em métodos para desaparecer dali o mais discretamente possível. Quando levantei a cabeça, uma das                                                                                                                          

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pessoas chorava e outros me elogiavam efusivamente. Eu não esperava aquela reação. Disseram que aquilo era muito intenso e tão interessante que ultrapassava o Butoh. Por isso, durante a residência, eu deveria pensar em abandonar essa palavra.

Saí muito contente com a acolhida, mas pensava: o que era ultrapassar o Butoh? Estariam eles imaginando alguma forma estética quando me diziam isso? Por que era tão importante que eu abandonasse esse termo? Eu intuía que era um tanto desconfortável que uma brasileira, em 2012, quisesse dançar Butoh. Logo nas primeiras semanas de residência, a conversa com uma das orientadoras começou mais ou menos assim:

– Por que Butoh? Você sabe que o Ankoku Butoh4

surgiu em um contexto muito específico no Japão pós-guerra e que morreu junto com seus fundadores, Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno, não sabe?

Desde a iniciação científica, eu era desencorajada a invadir esse território que não me pertencia. Enquanto alguns professores me diziam que abandonar o interesse por essa estética datada seria um ganho, outros entendiam que quando eu falava de Butoh, se tratava de outra coisa. Mas o que era essa outra coisa? Eu não conseguia explicar bem. Espero me aproximar disso nesse trabalho.

Parecia que dizer “eu quero dançar Butoh” sendo uma não-japonesa no século XXI, era um problema. Durante os meses de residência, outros profissionais conduziram suas interlocuções de maneiras diferentes, mas aquele discurso que me dizia “não” com a outorga da instituição me chamou particularmente a atenção, pois nele o Butoh é condenado à morte. Não a morte que ele próprio proclama e traz à vida, mas a morte que pesa sobre os fatos, que os isola sob a seriedade da história. Se eu dissesse pesquisar outra coisa, mais distante e                                                                                                                          

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mais antiga, talvez não houvesse problema. Aproximar-se do trabalho de Constantin Stanislavski – que ocorreu há mais de um século – é mais aceito do que acessar uma dança que é recente e de praticantes que estão vivos, dançando, viajando e discutindo por aí.

Há grupos e artistas que dizem praticar Butoh em diversos países, até no Havaí. Suas práticas devem ser desconsideradas? E sobre a capoeira que pratico em Santa Catarina? Ela vale menos porque não somos baianos? E sobre o movimento pouco inglês dos punks do Rio Grande do Norte? O rock japonês? O tango argentino/francês? A banda de punk rock da Colônia Witmarsum, brasileiros/alemães/russos que vivem no Paraná?

Foi a partir desse “atestado de óbito” do Butoh que eu resolvi pensar nos desdobramentos que essa arte “morta” continua a produzir. Apesar dos “nãos”, eu sentia que ainda valia a pena me mover por ali. Ao aprofundar minhas pesquisas e argumentações, talvez eu entendesse quais eram as definições de Butoh para diferentes teóricos e artistas e nisso, onde estaria circunscrito o Butoh que eu continuava buscando por sempre me escapar.

2.1.1 Um Butoh vivo ou morto?

De acordo com Christine Greiner (2013b) o que se entende como Butoh hoje guarda poucos vestígios das questões mobilizadoras do movimento japonês da década de 1950. Simultaneamente, Tadashi Endo5, Ko Murobushi e Min Tanaka, artistas que têm algum intercâmbio com o Brasil, não deixam de dançar e ensinar, ou seja, algo ainda pulsa dentro dos seus Butohs, mesmo que se afaste dos anseios de Hijikata.                                                                                                                          

5

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Neste momento, vale a pena abrir um pequeno parêntese para elucidar o conceito de “discurso” como algo que produz verdade.

Segundo Maite Larrauri (1999), pesquisadora e tradutora de Foucault, para o filósofo todos os documentos – chamados por ele de monumentos – são abarcados pelo conceito de “discurso”. Por discurso, entende-se os “regulamentos”, os “livros”, as “sentenças dos tribunais”, as “denúncias”, os “poemas”, a “medicina”, a “filosofia”, etc (LARRAURI, 1999). Em A arqueologia do saber

(FOUCAULT, 2013) são apontados alguns significados para discurso: os discursos são as performances que efetivamente ocorrem, o que é dito e os acontecimentos discursivos; e são também o conjunto de enunciados. No entanto, de acordo com a autora, os enunciados não são o não dito do que é dito, eles não estão escondidos apesar de não estarem visíveis (LARRAURI, 1999). É necessário que o olhar se volte para reconhecer e considerar os discursos por eles mesmos. Para Larrauri, o enunciado foucaultiano constrói realidades ao ser proferido. Além disso, ele é um “ato de fala” sério à medida que aspira tornar-se conhecimento (LARRAURI, 1999).

Portanto, o que é dito por estes praticantes de Butoh, o que está escrito nesta dissertação, os discursos que atestam o óbito do Butoh, tudo produz verdades, com diferentes níveis de legitimidade. Assim, este subcapítulo pontua alguns discursos, na sua maioria brasileiros, que poderiam densificar uma atmosfera de inacessibilidade do Butoh ou colocá-lo num “vir-a-ser”, como objeto não capturável que serve de motor para as criações, teóricas ou artísticas.

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por Hijikata e isso se deve à evolução de um Butoh “pulverizado pelo mundo como resíduos de um pensamento em degradação” (GREINER, 1998, p. 3). O livro traz termos como “evolução”, “pulverização”, “degradação” e “resíduos”, que podem remeter o leitor a algo que é espalhado e deixa apenas restos.

Na obra de Greiner (1998) o Butoh é pensado dentro de um processo de evolução, o que não significa dizer que as modificações geradas por este processo sejam positivas ou negativas. Na sua argumentação, há um Butoh que se espalha. Já Helena Katz, no texto exposto a seguir, entende que essa manifestação teve seu “nascimento, consolidação e decadência no Japão” (KATZ, 2011, s/p.). Katz é professora, pesquisadora e crítica de dança, e desde o ano de 1987 é possível encontrar em seus textos referências ao Butoh com diferentes visões sobre o tema ao longo do tempo6. No jornal O Estado de São Paulo, ela comenta o espetáculo Ikiru de Tadashi Endo, que foi aluno de Kazuo Ohno. Ikiru é um solo de Endo que estreiou no Lume Teatro em 2009 (KATZ, 2011) e que, para o artista, é uma homenagem a Pina Bausch e Ohno, que permanecem vivos através de suas danças7. No texto de Katz, o dançarino estaria colhendo pedaços de informações e reproduzindo clichês:

A experiência de assistir a Ikiru foi a de viver um potente exemplo da associação entre mundo das celebridades e entusiasmo colonizado. A dança de Tadashi Endo nesse solo, que tem como subtítulo Um Réquiem para Pina Bausch, é a operação do típico simplificada ao mínimo possível. [...] O que acontece entre um momento e o outro, em termos de movimento, é                                                                                                                          

6

Em seu site a autora disponibiliza todos os seus textos desde 1976. Fonte: http://www.helenakatz.pro.br/ interna.php?id=9. Acesso em: 04 fev 2015. 7Informações disponíveis no site de Tadashi Endo:

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da mesma natureza: flashes fotográficos de gestos e atitudes clichês (KATZ, 2011, s/p.).

Na crítica, a legitimidade de Endo como praticante de Butoh é questionada, visto que há muitos anos ele não reside no Japão. A autora atesta: “como se sabe, ele passou menos de 20 dos seus 63 anos no Japão, construindo sua carreira fora de lá [...]” (KATZ, 2011, s/p.). Mais uma vez, é reforçada a ligação direta entre o Butoh e o país insular da Ásia Oriental. A crítica pode sugerir ao leitor o entendimento de que Endo seria um embuste estrangeiro vendendo uma imagem de mestre japonês no Brasil. Para Katz, ele tem um papel importante para o congelamento do Butoh no nosso país, em detrimento de um Butoh que já teve sua decadência no Japão:

Em São Paulo, Tadashi Endo vem desempenhando um papel importante nessa tipificação do butô. Não à toa, tem sido apresentado como um Mestre (com M maiúsculo mesmo, para demarcar o tipo de inserção social que vem ocorrendo), especialmente pela sólida relação de trabalho que vem construindo com o grupo Lume, de Campinas, onde Ikiru estreou em 2009 (KATZ, 2011, s/p.).

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Para o dançarino Min Tanaka, “desde o início o Butô tem sido importante exatamente porque as pessoas tentavam romper com qualquer estilo fixo” (TANAKA, 2000, p. 1). Greiner (1998) afirma que há uma forma no Butoh, mas que fora da rede de informações em que essa forma foi concebida o Butoh vira um “botão” que obedece a lógica do encaixe e não a lógica ideogramática do “atar e desatar” (GREINER, 1998, p. 95), fazendo uma analogia aos modos ocidentais e orientais de prender as roupas ao corpo. Os limites que ela identifica para o “pensamento butô” são as redes de informações (modos de consciência) e não fronteiras geográficas (GREINER, 1998). Na sua opinião, dizer que alguém está fora ou dentro do ocidente, oriente ou Japão diz respeito a estar ou não conectado a redes de informações. No entanto, a autora deixa claro que nós, ocidentais, não temos como nos conectar às redes de informações que compõem as tramas do Butoh.

No corpo de quem está mergulhado em outra rede de informações (e não se trata de geografia e sim de mapas neuronais, de informação); butô vira botão. [...]

No Ocidente, (a rede de informações que configura essa enorme diversidade que chamamos Ocidente), butô só pode ser botão. A lógica do atar e desatar não faz parte desse caldo cultural(GREINER,1998, p. 94-95, grifo meu).

A artista e pesquisadora Simone Martins encara a afirmação acima como um alerta, mas não deixa de mestiçar o Butoh consigo e ver para onde isso leva. Simone realizou a pesquisa de campo

Experiências flutuantes do butoh (Brasil-Peru) que se imiscuiu com a escrita da sua dissertação Flutuações do butoh no corpo que dança: poéticas da mestiçagem (2013). Nesse texto, após a citação do “butô-botão” de Greiner, Martins reflete que:

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pelas gueixas para manter a maquiagem fresca durante as performances. A tradução direta do termo seria: “papel removedor de óleo original”, ou “óleo de mata-borrão”. Consideremos assim como o termo indica, nosso “butoh-abutatorigami”, como um encontro capaz de absorver os excessos eliminando assim os falsos brilhantismos de uma atração vulgar (MARTINS, 2013, p. 127).

No mundo dos últimos 50 ou 60 anos, com o processo de “mundialização da cultura” (ORTIZ, 2000), os enlaces que compõem essas “redes de informações” (GREINER, 1998) podem ser compartilhados por diferentes povos. Renato Ortiz (2000) trabalha com a desconstrução da noção de um Japão “lá”, demonstrando o quanto estamos próximos uns dos outros. E se trata-se de compartilhar a totalidade de uma rede, isso não é possível entre culturas, nem entre indivíduos de uma mesma cultura. Mesmo Ohno tinha um entendimento “total” das práticas de Hijikata (OHNO, 1995).

Para Greiner, em 1998, o Butoh ocidental só pode ser

botão e, ao lamentar que esse “butô-botão” ainda sobreviva, diz: “apenas o tempo dará conta de operar uma seleção natural, como na replicação da vida, transformando experiências simplistas em afrontas à profundidade do pensamento butô” (GREINER, 1998, p. 4, grifo meu). A esperança de que uma seleção natural resguarde um pensamento profundo de uma prática simplista parecia desconsiderar as contingências que fazem com que um discurso se sobressaia e entre para a história em detrimento de outros.

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estão envolvidos nestas escolhas? Quais discursos estão em alta? Quais discursos sobrevivem? Dos 15.016 projetos que ficaram de fora, quantos terminarão por efetivar seus trabalhos? Com os editais, os artistas acabam por adequar seus projetos, como a própria Greiner (2013) observa: “processos de pesquisa são encurtados para cumprir os prazos; os temas mudam de acordo com o teor do edital; e faz-se de tudo para viabilizar o projeto, inclusive aquilo que pode representar a descaracterização do próprio projeto” (GREINER, 2013, s/p.).

Em um escrito mais recente, onde Greiner se propõe a fazer uma reflexão crítica sobre os Butohs na América Latina, ela esclarece que alguns artistas que distanciaram-se das questões iniciais acabaram entendendo o Butoh como algo destituído de técnica e de treinamento. Ela diz que “se inexiste um treinamento, a concepção das experiências passa a transitar por uma zona perigosa de imprecisão” (2013b, p. 2). E acrescenta, colocando o Butoh também no jogo entre redes de pensamento:

Não se trata de uma busca às origens ou de algum tipo de fidelidade à uma essência primordial. O deslocamento de questões e treinamentos dos contextos onde foram constituídos para outras redes, sempre foi fundamental para o butô, uma vez que esse nomadismo já fazia parte de seu projeto inicial, migrando de corpo para corpo, de experiência para experiência e entre diferentes mídias (cinema, fotografia, literatura, etc). Nesse sentido, a metamorfose não pode, nem deve ser vista de forma pejorativa (GREINER, 2013b, p.2).

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Greiner comenta no parecer da qualificação da dissertação de Simone Martins:

Você, Simone, está lidando com uma experiência de morte, não apenas porque o butô sempre discutiu o corpo morto, mas porque são os fantasmas que mobilizam a sua experiência. A grande questão é como tornar esta experiência viva, localizada em seu contexto, sem permanecer submissa a essas assombrações e aos produtos gerados a partir delas que vem sendo comercializados por toda a América Latina (GREINER apud MARTINS, 2013).

Portanto, nos últimos anos, vem se tornando mais claro que o pensamento crítico de Greiner elabora questões para que os artistas que se aproximam do tema não se tornem submissos as meras formas comercializadas ou ao “típico”, como coloca Katz (2011).

Em outro livro brasileiro dedicado ao tema, Butoh: dança veredas d’alma (1995), Maura Baiocchi comenta que Hijikata “falecido precocemente, não teve tempo de desenvolver um método e formular no papel os preceitos do Butoh que, com certeza, ajudariam a esclarecer e acabar com as contradições e os paradoxos da matéria” (BAIOCCHI, 1995, p. 35). Acredito que, fazendo uso dessas “contradições e paradoxos”8, uma ideia mais ampla de Butoh pode ser construída, assumindo sua heterogeneidade. Se, conforme Roberto Machado, a unidade de um discurso é formada por                                                                                                                          

8As cismas teóricas com os paradoxos têm em seu fundo o emblema da

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enunciações heterogêneas em coexistência (MACHADO, 1981), essa multiplicidade do que é dito e feito em Butoh seria justamente o que o constitui. Deste modo, a discussão sobre o tema se enriquece ao assumir a pluralidade de discursos e significações nele contida, ao invés da busca das palavras, teorias e elucubrações que poderiam unificá-lo. Assim, considero o Butoh algo dinâmico, construído tanto por aquilo que artistas dançam ou falam sobre sua prática quanto pelo que determinado pesquisador teoriza.

No livro mais recente sobre o tema no Brasil, O soldado nu: as origens da dança buto (2011), Éden Peretta afirma que o Butoh chegou ao Ocidente no final da década de 70 causando grande impacto pelo universo simbólico e semântico trazido ao espectador. Nos anos 80, segue Peretta, diversos grupos surgiram tanto no Japão como na Europa e Américas. Esses artistas tinham no Butoh uma referência para suas técnicas de preparação corporal e de busca de presença cênica.

Assim, de forma mais instrumentalizada e despida de seus princípios subversivos, a dança Buto se apresenta atualmente extremamente difundida nos meios artísticos ocidentais. Talvez por isso muitos a considerem, equivocadamente, como mais uma “técnica” de dança, quando não um exótico método de training (PERETTA, 2011, p. 12 - 13).

Para o pesquisador, poucos artistas transcenderam a simples instrumentalização estética e “se aproximaram das raízes desse verdadeiro projeto herético” (p. 13). Ainda que não seja este o foco do seu trabalho, o autor traz em algumas linhas uma interessante visão sobre as raízes do Butoh em relação aos processos de apropriação por outros corpos:

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refutam qualquer idealismo estagnante, afirmando a sua força justamente na reapropriação e na atualização constantes às quais estão sujeitas, nos diferentes espaços e tempos onde são vivificadas. A subversividade e a “revolta do corpo” reivindicados pela dança Buto são, portanto, dimensões vivas e instáveis, devendo ser reinventadas pela cultura e pelas “trevas” nas quais estão submersos os mais diferentes corpos (PERETTA, 2011, p. 13, grifo meu).

Estou tratando de uma “arte-cadáver”, com mestres vivos e mortos, que me sugerem aprender a conviver com os meus mortos e trilhar sozinha o caminho de busca do que pode ser o Butoh. Sendo quem sou e me utilizando disso, escrevo sobre o assunto, pois não posso me valer de outro ponto de vista que não o meu para pensar o Butoh. Afinal, quais outras referências eu poderia utilizar para estudar o tema além das que tenho acesso, fragmentadas, traduzidas e relidas? Como negar a minha história, se nas aulas com Tadashi Endo nos era pedido que buscássemos na nossa caminhada a nossa própria dança?

Caminhamos sobre os mortos... carregamos toda nossa vida, os lugares por onde passamos. Os mortos nos sustentam, obrigado. Nosso corpo está morrendo todo o tempo... a vida e a morte convivem (ENDO, 2011, notas de aula)9. No manifesto MAMU, produzido por Endo e Ko Murobushi, lê-se:

Manifesto MAMU

MAMU 1

Filhote de um mamute                                                                                                                          

9Esse trecho pertence às anotações que fiz do workshop O visível e o

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Filhote de coisas podres

MAMU 2

Poder, que está sempre se erguendo, sempre e em toda parte,

no ar, na areia, no vapor, em vermelho e branco.

MAMU 3

MAMU existe e não existe.

Eventos, que desaparecem e vão nascer, escondendo e mostrando-se.

MAMU 4

MAMU é um outro país,

nascido no caos de atravessamentos e atividades,

MAMU é um outro corpo.

MAMU 5 Tímido - hesitante

Como um gato - identificando com hesitação, - com hesitando percebendo as diferenças.

MAMU 6

Reconhecer todas as diferenças e vagar com afirmação,

este poder é HUMOR.

MAMU 7

Grande como um mamute, minúsculo como um filhote-mamute

Vivendo na sensibilidade selvagem.

MAMU 8 sobre o Butoh

o Butoh está em toda parte - MAMU está em toda parte .

Agarrando todos os fios, que levam através do MAMU para o Butoh,

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MAMU 9

Novo chifre, novas unhas, novo cabelo, novo peito,

novos lábios, novos joelhos, novas pupilas e novas solas dos pés.

MAMU 10

A chave que leva ao MAMU abre seu novo corpo e sua nova casa

e leva a novos caminhos, novas viagens e novos sonhos,

a nova ética.

MAMU 11

FORA no DENTRO

Andar além de seus próprios limites.

MAMU 12

MAMUpássaro, MAMUnuvem, MAMUfrutas e caroços, MAMUcolinas, MAMUvoz

Descubra (ENDO; MUROBUSHI, s/ ano, s/ p.).

MAMU é a união de duas palavras do Zen-budismo, “ma” – o espaço entre e “mu” – o grande vazio10. E a união “mamu” reproduz ainda, para os autores do manifesto, a primeira palavra proferida por uma criança. No MAMU, parece importar a simplicidade, pois é através dela que se poderá acessar o ma e o mu. Como declara o manifesto, o “MAMU é um outro país, nascido no caos de atravessamentos”, ou seja, uma possível leitura é que são as relações as geradoras do MAMU e não um único país de origem.

Assim como Ko Murobushi afirma que o Butoh precisa de um futuro (Documentário El poder oculto de la memoria, 2011), Min Tanaka (2000) diz que o Butoh é estar sempre tentando encontrar a própria dança, a dupla Ko Murobushi e                                                                                                                          

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Tadashi Endo terminam seu manifesto com o imperativo “descubra”. Deste modo, o que sobressai nos discursos – desses artistas que praticam e ensinam – é o ímpeto da busca constante. Mas, seria possível encontrar isso também no que disseram Hijikata e Ohno?

Baiocchi (1995) expõe a aversão de Hijikata pela normatização da dança: “era contra a apreensão da técnica como um fim último, das regras do método e contra toda forma de estandardização e sistematização imposta ao dançarino, vindas de fora dele” (p. 29). A autora se refere a Ohno como “um grande butoísta que não se preocupou com aspectos de teoria, técnica e direção” (p. 37). Uma das contribuições do trabalho de Baiocchi são as transcrições de algumas aulas de Ohno e de um trecho do último discurso de Hijikata.

Nanako Kurihara (2000) afirma que apesar de ser um homem do corpo, as palavras eram muito importantes para Hijikata. Ele muitas vezes falava e escrevia sobre seu Butoh (KURIHARA, 2000). Ainda segundo a pesquisadora, as palavras e as discussões entre ele e outros artistas – discussões essas muitas vezes regadas a bebidas alcoólicas – eram seus materiais de criação. Sobre a maneira como Hijikata tratava as palavras, Kurihara afirma:

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são muitas vezes como poemas surrealistas. (KURIHARA, 200011).

Kuniichi Uno (2007), no artigo As pantufas de Artaud segundo Hijikata, considera Hijikata integrante de um grupo de artistas (como Artaud, Pasolini, Genet e o filósofo Espinoza) que abominam o poder homogeneizante sobre o corpo, querendo criar um corpo singular. Artaud, tendo passado toda a sua vida atravessado pelo poder biopolítico (instituições psiquiátricas, médicos, etc), defendeu a produção de seu corpo-sem-órgãos para destruir a posse (o julgamento de Deus) do corpo pelo poder (UNO, 2007). Ele não aceita esse poder que se infiltra em toda a complexidade do corpo. É interessante pensar nas tentativas de efetivação desse projeto no corpo como produtoras de escrituras também singulares. Assim como Artaud, Hijikata radicaliza seu desejo na escrita como campo para alcançar o seu projeto.

A escrita de Hijikata é, num primeiro momento, ilegível, por desarticular de maneira radical o japonês comunicativo, normativo. Desarticula-se ao carregar-Desarticula-se com extraordinárias densidade e sensibilidade, através das experiências e dos pensamentos sobre o corpo, retraçando a experiência do corpo que para ele é, sobretudo, a da fissura. Seu pensamento está profundamente ligado a essa fissura (UNO, 2007, p. 45).

Em seu último discurso (HIJIKATA, 1995), Hijikata começa referindo-se a sua gripe e de como uma gripe duradoura poderia fazer com que os seres humanos convivessem em paz. Fala que gostaria de dizer algo sobre esta gripe – assunto ao qual não retorna posteriormente neste trecho                                                                                                                          

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– e sobre Tohoku, sua terra natal, onde os seres humanos são transformados em espíritos do vento (os Kazedaruma). Diz que desde menino olhava para um Yukidaruma (boneco de neve e vento) que entrava em sua casa, se sentava perto do fogo e o pequeno Hijikata o via como sinistro e familiar. Continua contando que quando criança, ele caiu e a dor da sua queda tomou forma na lama, foi quando, conforme conta, a cabeça de um bebê que o olhava rolou até ele e ele pode brincar com ela. Então ele acrescenta: “por que, não sei explicar. Mas realmente aconteceu. Por isso, posso falar disso para vocês. [...] Posso afirmar que a minha dança nasceu da lama” (HIJIKATA, 1995, p. 52-53). E, dentre outros motivos, ele diz que é por isso que o Butoh não pode ser ensinado por meio de exercícios (HIJIKATA, 1995). Conta que seus irmãos, quando saiam para a guerra, tomavam saquê e ficavam vermelhos, e que retornavam em forma de cinzas. Assim conclui que quando as formas desaparecem, continua ele, elas se mostram mais nitidamente. Hijikata diz aos seus ouvintes: “possivelmente vocês pensam que não faz sentido o que eu digo. Mas prestem atenção, a qualquer momento perceberão que há sentido nisso” (p. 56). Segue sua história afirmando que sua irmã mais velha vivia em seu corpo, quando um se levantava o outro queria deitar-se. E por isso diz: “Sim, os mortos são meus professores” (p. 57).

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Muitos fios vão saindo da fala de Hijikata. A linguagem poética, as frases desconexas, por vezes podem parecer problemas de tradução. E, de fato, é difícil saber como seria ler isso em japonês. Entretanto, como brasileiros não somos os únicos que temos esse estranhamento diante das palavras do fundador do Butoh. O próprio Kazuo Ohno, que por anos trabalhou junto à Hijikata, diz: “Hijikata escreveu muitos livros, alguns dos quais eu não entendo, ainda que eu devesse” (OHNO, 1995, p. 130). Além de um tratamento especial com as palavras, Hijikata tinha uma relação divertida com a realidade e a ficção, produzindo o que Kurihara chama de uma auto-mitificação. O responsável pelo Arquivo de Hijikata no Japão, Takashi Morishita afirma:

[...] ele contou um monte de mentiras sobre suas próprias origens. Falando como se fosse verdade, ele dizia coisas como que ele era um dos 11 filhos e todos os seus irmãos morreram na guerra e todas as suas irmãs se tornaram prostitutas, por exemplo. Podemos especular que Hijikata havia encontrado um tipo de verdade em esconder coisas assim. No entanto, algumas dessas citações foram publicadas como se fossem verdadeiras e tem havido casos de pesquisadores estrangeiros que escrevem biografias de Hijikata encarando essas histórias como a verdade (MORISHITA, 2010, s/p, tradução minha).

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medida que se inventa enquanto individualidade. O que Hijikata faz é uma reinvenção de si, ou como coloca Kurihara, produz uma auto-mitificação. Essa auto-mitificação, parece uma via para criar um enigma. Pois, para ele:

O Butoh deveria ser visto como tão enigmático como a própria vida. Eu não tenho certeza se no fim ele é uma armadilha ou uma correspondência secreta com alguma coisa, ou se seria até perseguir um criminoso por engano (HIJIKATA, 1991, documentário Butoh: piercing the mask, tradução minha).

Nesses discursos vindos de butoístas parece contínuo o querer saber que o Butoh é, e aqueles que o seguem não se retém no que encontram no caminho, pois, assim que se toca numa certeza, ela desaparece. Tadashi Endo usa a metáfora de descascar uma cebola para tratar da procura pelo Butoh em uma aula-demonstração em Londres:

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mundo quer sentir, todo mundo quer pegar, mas no fim não há nada (ENDO, 2010, p. 142 - 143).

2.1.2 Sobre a origem das coisas históricas

“As origens do butoh estão em uma terra selvagem habitada por espíritos elementares, que a mente racional não pode alcançar” (Tatsumi Hijikata)

Pensar em “fundadores” do Butoh, em país de nascimento ou limites geográficos, suscita o questionamento da origem enquanto ponto de onde as coisas e as práticas evoluiriam. Michel Foucault, partindo da filosofia de Friedrich Nietzsche, trabalha com a história genealógica – e mais tarde com a história arqueológica – fazendo uma crítica à ideia de origem na história. Voltar o olhar para a teoria de Foucault é interessante, não para produzir uma história genealógica do Butoh, buscando minuciosamente documentos, mas para considerá-lo enquanto prática tortuosa, com múltiplas influências e referências. Pois a genealogia se opõe “ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias” (FOUCAULT, 1998, p. 12). A genealogia trata de uma história assumida como falha e claudicante. Assim vejo o Butoh, como algo cheio de buracos nos quais podemos adentrar e produzir diálogos.

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(Ursprung)12 das coisas históricas, Foucault comenta causticamente que:

gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã. A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá−la se canta sempre uma teogonia. Mas o começo histórico é baixo. Não no sentido de modesto ou de discreto como o passo da pomba, mas de derrisório, de irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações (FOUCAULT, 1998, p. 18).

A crítica de Foucault é sobre a noção de origem como algo que beira o divino nas escritas da história. É nesse ponto que podemos pensar na genealogia para maleabilizar um Butoh colado à Hijikata e Ohno num contexto, também endurecido, do pós-guerra no Japão. Segundo Greiner (2013), “a maioria das experiências norteadas por artistas (que pouco ou nada conhecem das questões iniciais do butô e dos treinamentos para a criação) está amparada nos ‘produtos’ do butô e não no processo perceptivo que havia gerado as pesquisas mais potentes” (p. 3). No seguinte trecho de uma carta de Hijikata à Natsu Nakajima, este parece rir da sua responsabilidade de “fundador”, e diz que, por ser denunciado como tal, se distanciou dos próprios anseios. Declara que:

denunciados como fundadores do recém-criado butoh, não temos ninguém que nos exorta. Portanto, só nos resta abandonar a língua sob a

                                                                                                                          12

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chuva. Querida discípula, eu agora sou um sapo que se distanciou da sombra dos meus anseios (HIJIKATA, 1999, p. 16).

Para Albuquerque Júnior (2009), tanto Foucault quanto Nietzsche partilham do ponto de vista de que:

a história deve ser uma atividade que busca destronar ídolos e deuses, que visa inquietar o pensamento e o poder, que se destina a libertar-nos do peso do passado, de sua repetição mecânica e acrítica; ela deve arruinar a familiaridade com as coisas de antanho, dessacralizar e desnaturalizar aquilo que nos chega do passado como sendo valores universais e eternos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 98).

Há uma forte influência do pensamento de Nietsche na visão de Foucault sobre a história. No texto Foucault leitor de Nietzsche, Scarlett Marton (1985) entende a genealogia nietzschiana como “análise da proveniência e história das emergências” (p. 39). Em Nietzsche, Foucault identifica uma mudança no ponto de vista da interpretação. O filólogo alemão se dedica a interpretar interpretações e se importa em partir daquele que enuncia a interpretação.

Perguntar-se pela proveniência de um indivíduo, de um sentimento ou de uma idéia, não é descobrir suas características genéricas para assimilá-lo a outros, nem mostrar que nele o passado ainda está vivo no presente, muito menos encontrar o que pôde fundá-lo; mas sim buscar suas marcas diferenciais, repertoriar desvios e acidentes de percurso, apontar heterogeneidades sob o que se imagina conforme a si mesmo (MARTON, 1985, p. 39).

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história global se busca uma significação comum por trás dos fenômenos de um período, o “rosto” de uma época. Deste modo, os acontecimentos estariam regidos por linhas invisíveis que coordenariam, sob uma lógica sincronizada, seus rumos consonantes. Uma história geral, por sua vez, não estaria buscando demonstrar um paralelismo entre histórias diferentes, nem estabelecendo analogias de datas, seu objetivo é deixar o centro único e descrever o espaço de uma dispersão.

Sendo o Butoh comumente pensado em relação direta com o contexto pós-guerra, isso por vezes parece justificar cada movimento ou palavra de Hijikata. Peretta (2011)13 comenta que parte das leituras simplistas “buscam vincular a estética e filosofia que a dança Buto coloca em movimento ao trágico episódio da bomba atômica” (p. 11). Ou seja, vista a importância e grandiosidade da Segunda Guerra Mundial, essa é pensada como centro em torno do qual os pequenos acontecimentos, como a vanguarda artística japonesa, seriam apenas desdobramentos esperados. No entanto, Peretta afirma que “descontinuidades e releituras das mais diferentes matrizes artísticas e culturais formam, portanto, o húmus do qual a dança Buto tirou suas forças para afirmar-se enquanto uma nova epistemologia do corpo” (p. 11).

Durval de Albuquerque Júnior no artigo Michel Foucault e a Mona Lisa ou como escrever a história com um sorriso nos lábios (2008), analisa o olhar irônico de Foucault sobre a história. A história praticada como sátira sabe que mais inventa o seu objeto do que desvela qualquer verdade sobre ele, e que o prazer do historiador não está na descoberta da verdade derradeira, “mas na sua procura, e que a finalidade de seu saber não é encontrar as versões definitivas sobre os fatos, mas desmontar aquelas versões tidas como verdadeiras, tornando                                                                                                                          

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outras possíveis” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008, p. 101). É nesse sentido que afirmo que no Butoh há uma multiplicidade de verdades que além de instáveis, se consomem mutuamente. Portanto, se as verdades são constantemente revalidadas, é possível colocar em dúvida a existência de uma “Verdade original” do Butoh, localizada em um ponto específico da história de Hijikata e do Japão. Em contrapartida, as teorias e práticas que vão, por diferentes caminhos, agregando sentidos ao que é Butoh, ganham importância na medida em que produzem verdades sobre ele. Assim, esta arte do corpo é potencialmente capaz de evocar inúmeras possibilidades de criação artística, sem que uma dessas se sobreponha às outras.

A maneira corrente de abordar o surgimento do Ankoku Butoh é dizer que foi fundado no final da década de cinquenta no Japão por Hijikata (GREINER, 1998; BAIOCCHI, 1995; FRALEIGH; NAKAMURA, 2006, VIALA; MASSON-SEKINE, 1988). Este, em parceria com Yoshito Ohno, realizou em 1959 a performance intitulada Kinjiki – forbiden colors,

baseada na obra literária homônima de Yokio Mishima (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Tamanho foi o estranhamento causado por esta performance que Hijikata pediu seu desligamento da Associação de Dança do Japão (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Em Kinjiki, Yoshito recebia uma galinha das mãos de Tatsumi Hijikata, “simulava sexo com a ave entre suas pernas, acabando por matá-la, para depois sucumbir ao ataque do próprio Hijikata” (GREINER, 1998, p. 19).

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apresenta cenicamente de diversas formas. De início, já é possível localizar nuances no pensamento sobre Butoh dos seus principais enunciadores. Peretta (2011) coloca que os meios pelos quais cada um dos artistas buscavam eliminar o individualismo e o self na dança eram muito diferentes. Segundo Peretta, Hijikata empreendia essa busca “através de uma degradação do sujeito” e Ohno, “através do amor e da gratidão” (PERETTA, 2011, p. 155).

Ao entrar em contato com uma série de obras que tratam do Butoh (GREINER, 1998; BAIOCCHI, 1995; FRALEIGH; NAKAMURA, 2006), poder-se-ia dizer que os autores não foram capazes de capturar a “verdadeira essência” dessa arte porque há contradições ao comparar os seus discursos. Por exemplo, para o crítico de dança Tachiki Akiko, o Butoh desliza para dentro de novos trabalhos de dança no Japão (FRALEIGH; NAKAMURA, 2006). Conforme Baiocchi (1995), comentando festivais de Butoh que aconteceram na década de 90 na Holanda e Alemanha, “o butoh não pode mais ser identificado apenas com Ohno ou com os japoneses, e que existem nele manifestações mais e menos interessantes ou parcialmente ultrapassadas como em qualquer outra expressão artística” (BAIOCCHI, 1995, p. 88). Nos comentários do texto

Butô, Kazuo Ohno, dança japonesa e eu? de Letícia Sekito no blog Idança, um rapaz interroga com quem poderia estudar Butoh no Brasil. A autora então responde que esse movimento acabou. Ela sugere que o rapaz não tenha entendido que dançar Butoh hoje não é mais possível:

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que se sentem atraídas ou que se inspirem com o que foi o movimento do butô. No Japão você poderia ir conhecer o estúdio Kazuo Ohno, em Yokohama, onde agora o filho dele, Yoshito Ono, está dando workshops (SEKITO, 2010, s/p.)14.

Pensando nessas contradições, retorno às palavras de Hijikata e Ohno para procurar o que projetaram. Porém, quando lá eu chego, como um bumerangue, as incertezas são relançadas sobre mim. É por isso que nesta pesquisa, parto do pressuposto de que o Butoh não é uma manifestação acabada, mas que está constantemente sendo construído. O fato de que encontro afirmações diferentes sobre o tema, pessoas dançando de maneiras diversas, pode se dar pelo encontro de um espaço a ser preenchido nesta prática. O argumento que estou a desenvolver é de que não há uma verdade única do Butoh a ser revelada ou reencontrada, o que pode ajudar a identificar esse espaço vazio. Esse olhar outro sobre o Butoh, não é um olhar “sobre”, que separa sujeito e objeto, mas um olhar “no” ou “com” o Butoh.

Neste trabalho parto da premissa de que nos discursos sobre o Butoh há espaços entre e vazios, ou seja, o “ma” e o “mu” poderiam ser metáforas para refletir sobre a própria existência dessa prática. Uma prática estética onde os discursos são produzidos a partir de muitas vozes e muitas mãos, com (in)verdades e mitificações. Se são os discursos que criam a realidade do que é Butoh; um “Butoh-em-si”, um “Butoh original”, tornam-se uma impossibilidade, ou seja, nunca existiram. Assim, dizer que o Butoh não existe mais e dizer que o Butoh nunca existiu são coisas diferentes. Nesses termos, o Butoh que já não existe mais, foi algo específico sobre o qual alguém (provavelmente Ohno e Hijikata) possuía um saber e que já não é possível acessar. Entendendo a importância de                                                                                                                          

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guardar as proporções culturais, no caso do presente trabalho encaro essa arte a partir da abertura para significar o que seria o Butoh, e assim, penso nele como força que cria espaços para a dança e para a vida.

2.1.3 Idealizações do Oriente e do Japão

Figura 4 – Imagens do documentário Butoh: piercing the mask.

Imagem

Figura 2 - Japonês entrevistado sobre Butoh que parece  nunca ter ouvido disso.
Figura 3 – Kazuo Ohno.
Figura  4  –  Imagens  do  documentário  Butoh:  piercing  the  mask.
Figura 5 – Cartaz da primeira versão de DNA de DAN
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Referências

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