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UM SUSTO, UNS ACASOS, UM PROJETO

3 O PROCESSO CRIATIVO EM DNA DE DAN

3.1 UM SUSTO, UNS ACASOS, UM PROJETO

Uma sala de aula no estilo de auditório. Um grande quadro-negro detrás de uma escrivaninha de madeira maciça. Um homem está sentado à escrivaninha e tem sua cabeça apoiada sobre o tampo de madeira. Veste uma camisa branca. Seus braços surgem detrás da mesa e se apoiam sobre ela. Suas mãos estão crispadas e do topo de sua cabeça sai uma canção, célebre, fúnebre, religiosa talvez. Como num parto, esta canção acaba por expulsar do orifício bucal com os devidos líquidos salivares um ovo. A entoação da canção continua e o homem se defronta com o ovo. Ele tem um ataque de riso. De repente seu corpo se transforma. Ele aponta para o ovo, e com uma voz monstruosa diz: “É preciso provar a verdade. Provar. Provar. Provar.” Calmamente ele quebra o ovo, leva-o acima da sua cabeça e, em um só gole, o engole.

 

Figura 6 – Foto da peça Guilhotina – a verdade trepa

com a mentira.

Fonte: Acervo pessoal.

Essa imagem habitou o meu imaginário por anos. Essa sequência de acontecimentos acima citada é da peça

Guilhotina, do artista Maikon K, que assisti em 200721. Eu acabara de chegar a Curitiba para estudar teatro. Me assustei e me apaixonei pelo que vi, queria ser uma atriz como ele. Para mim, ele era um bruxo irônico. Nos anos seguintes procurei trabalhar muito. Treinar meu corpo para que eu pudesse um dia

                                                                                                                         

21Guilhotina foi uma produção independente e esteve em cartaz de 16 a 24

de junho de 2007 no Anfiteatro 100 do prédio Dom Pedro II da Reitoria da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba.  

 

executar o que considerava um ritual, e que em algo se assemelhava com outros trabalhos que eu havia visto – A

microrevolução de um ser gritante de Silvana Abreu, A descoberta das Américas de Julio Adrião, Cnossos de Ricardo

Puccetti, Agora e na hora de nossa hora de Eduardo Okamoto. Durante anos as notícias que me chegavam do Maikon eram fragmentos de pequenas especulações sobre um desconhecido. Ouvia que ele morava afastado da cidade, que não fazia “qualquer coisa” em teatro, que trabalhava como revisor de texto em uma agência de publicidade. Eu pensava: “esse cara precisa trabalhar com arte, não com revisões de propagandas”. Mas, apesar de ser um artista que eu admirava, eu estava segura que ele era alguém com quem eu jamais trabalharia.

Uns acasos

Parecia que essa parceria não era tão impossível assim. Um dia, por acaso, em um almoço na casa de uma amiga22, conversei com o Maikon pela primeira vez e contei a ele o que estava estudando na faculdade – a maquiagem no Butoh. Ele me disse que achava o Butoh interessante, mas não gostava das pessoas se pintarem de branco e usarem fraldas. Eu disse que isso também não me agradava. Naquela época eu trabalhava sobre a performance Adir – canto para uma avó morta (2010). Este trabalho trazia memórias dos oito anos que vivi com a minha avó, das histórias bonitas e trágicas que ouvi dela e de minha mãe, sobre os mortos da família, situações que deveriam

                                                                                                                         

 

ser esquecidas, assombrações e premonições. Durante três anos, realizei filmagens da minha avó quase cega falando e perambulando na sua casa. No meio do processo criativo, ela “virou perfume”, então fazer este trabalho era também uma maneira de nunca deixar esmaecer suas palavras:

Eu te ensinei cumué o abraço que é prucê me dá de noite? Cê me dá daí, que eu ti dô daqui. Um abraço bem apertado que é pro Divino Espírito Santo te dá corage e guia teus passo. E os anjo da guarda te cubri de bençu (D. Didi ao telefone. Texto integrante do roteiro da performance, 2010. Fonte: arquivo pessoal).

Convidei o Maikon para assistir esse trabalho que eu realizaria na Faculdade de Artes no Paraná (FAP). Por acaso, ele quis sair da chácara onde vivia e ir até a FAP assistir. Algumas semanas depois, o encontrei por acaso na rua e o convidei para compartilhar algumas impressões suas em ensaios de Adir. Como diz o senhor Milan Kundera: “Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e que se repete todos os dias, não é senão uma coisa muda. Somente o acaso tem voz. [...] O acaso tem suas mágicas, a necessidade não” (KUNDERA, 1985, p. 54). E desta série de acasos surgiu o convite para que eu integrasse a equipe criadora de DNA de

DAN.

O projeto

Em fevereiro de 2012 recebo uma ligação do Maikon me convidando para um projeto de um solo seu de dança. Me perguntou se poderia me enviar o projeto, intitulado DNA de

 

DAN, no qual eu seria a preparadora corporal e diretora de

movimento. Sem conhecer o projeto, eu já havia aceitado. Era meu sonho trabalhar com o Maikon. Mas primeiro era necessário que tivéssemos as condições materiais para a produção do trabalho e isso leva tempo. Após quase um ano, esse projeto foi contemplado pelo Prêmio Funarte Petrobrás

de Dança Klauss Vianna/2012 e isso trazia consigo o seu peso:

um peso de prazos, de olhares voltados para o que faríamos com um prêmio da Funarte, ensaios diários, etc. Com este projeto aprovado, de repente eu sentia que estava inserida no mundo dos “artistas profissionais”.

Combinamos que eu me mudaria para Campo Magro durante o processo, cidade colada a Curitiba, onde residem Maikon e seu marido Beto. Eu moraria no sítio, a 40 minutos do centro de Curitiba. Era a casa mais linda que eu já tinha visto, era limpa, organizada e tinha cheirinho de canela. No mesmo terreno, eles construíram um estúdio para ensaios: octogonal, dois andares, paredes de madeira, janelas gigantes de vidro. No andar de baixo, um espaço para abrigar artistas interessados em passar uns dias trabalhando por lá. No meu imaginário habitavam outros artistas que haviam saído da cidade para criar: Jacques Copeau23, Min Tanaka24, os retiros

                                                                                                                         

23Para Alison Hodge (2000), a “desurbanização” é um aspecto importante

da história do treinamento de atores no século XX. Constantin Stanislavsky, Evgeny Vakhtangov, Jacques Copeau, Jerzy Grotowski e Peter Brook, todos buscaram de alguma maneira os retiros rurais para os seus trabalhos. No caso de Grotowski, o afastamento do centro urbano teria auxiliado a criação de relações mais próximas entre as pessoas, um aspecto importante nos seu experimentos parateatrais. Hodge cita o relato de um dos participantes que atribui ao ambiente rural a gradativa

 

de clown de Luís Otávio Burnier, etc. Eu fui. Não tinha dúvidas. O gélido julho exibia ainda em agosto o seu cinza chuvoso. O Maikon me ajudou a levar duas malas com roupas e uma caixa com papeis, livros e um secador de cabelo (que em cidades frias é ótimo para esquentar o corpo debaixo das cobertas). Me apresentou o meu quarto. Iemanjá estava de braços abertos na parede.