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Emancipação, tradução e diálogo

2 MEUS ANTECEDENTES

2.1 BUTOH

2.1.4 Emancipação, tradução e diálogo

Em 2011, Ko Murobushi esteve na Colômbia ministrando um workshop para artistas de diferentes áreas. No documentário El poder oculto de la memoria, de 2011, que mostra alguns momentos desse encontro, Brenda Polo, bailarina colombiana, pergunta a Murobushi ele se seria possível que ela encontrasse sua própria maneira de fazer Butoh que seria muito diferente da dele. Conforme Polo, seu fazer seria um modo colombiano de dançar Butoh, pois os colombianos teriam uma cosmovisão diferente da dos japoneses e de outros povos. Comenta que através dos exercícios propostos por Murobushi os materiais expressivos que aparecem são outros. Ao que ele responde:

Não deixem de utilizar suas próprias improvisações. Obviamente vocês podem pensar sobre o Butoh, mas vocês não sabem muito sobre o Butoh. Porque Butoh é nada.

 

Porque o Butoh precisa de um futuro, um futuro na diferença. E ninguém conhece o futuro do Butoh. Talvez eu morra em uns cinco anos. E eu vou lhes dizer adeus. E vocês podem dizer “tchau tchau Ko Murobushi”. Mas eu espero que vocês guardem na memória. Mas vai ser algo muito pequeno e não terá muita técnica. Claro que eu os ensinei caminhadas, exercícios de respiração, mas essa não é a técnica. E vocês não devem seguir-me, mas sim adaptar isso às suas necessidades ou misturar isso com a sua proposta e o seu conhecimento. E vocês podem dançar (MUROBUSHI, El poder oculto de la memoria, 2011, tradução minha).

Ko Murobushi propõe na sua fala a apropriação e transformação dos seus ensinamentos. Na sua ausência, esses artistas devem passar por um processo de compreensão do que eles apreenderam.

Para Jacques Rancière (2005), compreender não é nada mais que traduzir. Neste processo de tradução, não se faz necessária a presença de uma inteligência outra, do explicador, que revele algo que se esconde por detrás do texto, da página. Para o autor, não existe instância escondida do conhecimento que demande um terceiro explicador, não há “nenhuma língua do mestre, nenhuma língua da língua cujas palavras e frases tenham o poder de dizer a razão das palavras e frases de um texto” (RANCIÈRE, 2005, p. 27). Ou seja, a ausência do mestre não representa, necessariamente, um problema no caminho da aprendizagem.

Essas ideias são as bases do livro O mestre ignorante de Jacques Rancière. O seu foco está sobre a possibilidade de outro formato de pedagogia, o da emancipação, que nega a ligação entre causa e efeito no processo do aprender. O autor reflete sobre a teoria de Joseph Jacotot (1770 - 1840), professor francês do século XIX que afirmou, como explica Rancière, “que uma pessoa ignorante poderia ensinar a outra pessoa

 

ignorante o que ela mesma não conhecia” (RANCIÈRE, 2010, p. 108).

Rancière reforça a importância de trazer o caso da voz dissonante de Jacotot – esquecida pelo bem dos modelos de instituição de ensino e da pedagogia – para que não percamos a consciência dos paradoxos que formam o sentido do ato de ensinar. No contexto da Revolução Francesa no qual viveu Jacotot, reduzir a distância entre o ignorante e o saber significava reduzir a desigualdade social. No entanto, esse revolucionário da educação afirma que a igualdade deve estar colocada antes de tudo e não como objetivo. A emancipação é possível quando se força “uma capacidade que se ignora ou se denega a reconhecer e a desenvolver todas as consequências desse reconhecimento” (RANCIÈRE, 2002, p. 11).

O autor chama de embrutecimento aquilo que pretende diminuir uma incapacidade, e que acaba por confirmá-la. Para ele, o que Jacotot propõe está para além do método, trata-se de uma questão filosófica e política. Filosófica pois é preciso saber se a palavra do outro está sendo um testemunho de igualdade ou desigualdade; e política no sentido de o sistema de ensino trabalhar ou por “uma desigualdade a ser ‘reduzida’, ou uma igualdade a ser verificada” (RANCIÈRE, 2002, p. 11). A igualdade, num sentido filosófico, é lida por Rancière deste modo:

A igualdade, ensinava Jacotot, não é nem formal nem real. Ela não consiste nem no ensino uniforme de crianças da república nem na disponibilidade dos produtos de baixo preço nas estantes de supermercados. A igualdade é fundamental e ausente, ela é atual e intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivíduos e grupos que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de verificá- la, de inventar as formas, individuais ou coletivas, de sua verificação (RANCIÈRE, 2002, p. 14)

 

As propostas de emancipação de Rancière, vindas de Jacotot, podem oferecer maneiras outras de pensar os posicionamentos dos mestres e aprendizes no Butoh. Pois, o método de Jacotot evoca a igualdade, que independente de ser real ou não, deve ser verificada. Todos os envolvidos nesse processo – mestres e alunos – têm o dever de criar os modos para essa verificação. O mestre deve expor a capacidade dos discípulos de aprender tudo o que desejem sozinhos. De modo algum afirmo que é essa a escolha daqueles que ensinam o Butoh, mas sim que assumir-se enquanto pessoa emancipada, me alimenta para descobrir essa dança. Talvez as condições nas quais me encontro – sem acesso a fontes “originais”, sem um contato permanente com um professor, etc – tenham me feito evidente esse espaço vazio que o Butoh oferece e nele uma potencialidade para criar procedimentos e sentidos para o meu fazer. Não como embrutecidos, mas como emancipados, os discípulos trabalham com invenções de caminhos, de treinamentos que os levem aos seus próprios Butohs.

Eis então, segundo Rancière (2002), a história de Jacotot: professor francês tornado deputado à sua revelia, foi exilado após a volta dos Bourbon ao poder. Estando nos Países-Baixos foi libertado e nomeado professor no ano de 1818. Ao receber seus muitos alunos, se deparou com o fato de que vários desconheciam o francês e ele, por sua vez, o holandês. O que encontraram em comum foi uma edição bilíngue do Telêmaco. A indicação que os alunos receberam de Jacotot foi que se orientassem pela tradução para aprender o texto francês e assim o fizeram. Ele solicitou então que os estudantes relatassem por escrito e em francês o que pensavam do que haviam lido. A sua surpresa foi que, sem nenhuma explicação sua, os alunos se saíram tão bem nessa tarefa quanto alguns nativos franceses o teria feito. Essa experiência lhe mostrava que querer era o necessário para poder aprender (RANCIÈRE, 2002).

 

A lógica que Jacotot começa então a desenvolver vai contra a “ordem explicadora” sobre a qual os sistemas de ensino se pautam (RANCIÈRE, 2002). Nessa lógica, a figura do explicador se interpõe entre o que deve ser aprendido e aquele que aprende, como alguém que faz compreender o que deve ser aprendido. No entanto, a tarefa mais difícil da aprendizagem, aprender a língua materna, é realizada sem a presença do explicador (RANCIÈRE, 2002). Ainda assim, a partir de determinado momento passa-se a crer que a criança só pode compreender o mundo através desse outro que possui uma inteligência diferente da sua, uma inteligência com método, do mais simples ao mais complexo, da parte para o todo e nunca com percepções ao acaso (RANCIÈRE, 2002).

Mas o caso dos alunos de Jacotot provava que uma relação de igualdade entre as pessoas e a palavra humana que lhe fora dirigida poderia produzir conhecimento (RANCIÈRE, 2002). Assim, “esse método da igualdade era, antes de mais nada, um método da vontade. Podia-se aprender sozinho, e sem mestre explicador, quando se queria, pela tensão de seu próprio desejo ou pelas contingências da situação” (RANCIÈRE, 2002, p. 25). As pessoas haviam aprendido sem o mestre explicador, mas não sem um mestre. Entretanto, a inteligência dos alunos obedecia apenas a si própria, ainda que a vontade fosse também a vontade do mestre (RANCIÈRE, 2002). Já que em sua experiência não era o seu saber que ensinara aos alunos, Jacotot começou a ensinar outras matérias que ignorava: pintura, piano e direito (RANCIÈRE, 2002). Seus alunos aprenderam a pleitear em holandês, ainda que Jacotot seguisse ignorando o idioma (RANCIÈRE, 2002). Rancière (2002) afirma que para emancipar é necessário que sejamos emancipados, ou seja, que reconheçamos o poder do espírito humano.

O ensino de Jacotot, chamado de Ensino Universal, tem o seguinte princípio: é preciso que se aprenda qualquer coisa para que daí se aprenda todo o resto, pois tudo está em tudo

 

(RANCIÈRE, 2002). Toda obra humana comporta em si toda a inteligência humana (RANCIÈRE, 2002). É assim que, com o mesmo Telêmaco, pôde também ensinar a ler ao analfabeto, porque nas palavras iniciais do livro “Calipso, Calipso não, Calipso não podia” já é possível que o aluno aplique toda a sua inteligência de ver, comparar e dizer o que pensa disso (RANCIÈRE, 2002). Entender que o “Calipso” dito pelo mestre tem determinada forma na escrita, e que essa forma se repete na próxima frase é mais simples que aprender que as letras C + A = CA. O mais importante nesse caso, conforme Rancière (2002), não é o método mas a atitude de emancipação. O autor afirma que a asserção de que todas as inteligências são iguais não carece de ser comprovada, o que importa é verificar os efeitos que tal opinião pode produzir. Por outro lado, o que define a visão embrutecedora é a crença na “realidade” da desigualdade (RANCIÈRE, 2002).

O Velho Método, assim chamado por Rancière (2002), sugere que se aprenda tal coisa, depois outra e depois outra, colocando sempre o abismo da ignorância diante do aluno. A

compreensão do estudante faz com que ele esteja preso no que

o autor chama de o país do embrutecimento. Segundo Rancière, “é preciso entender compreender em seu verdadeiro sentido: não o derrisório poder de suspender os véus das coisas, mas a potência de tradução que confronta um falante a outro falante” (RANCIÈRE, 2002, p. 73). Enquanto no aluno embrutecido é produzida a consciência da sua inferioridade diante daquele que sabe, a pessoa emancipada tem consciência da igualdade de inteligências, de que é capaz de conhecer o que foi dito por qualquer outra inteligência. No método de Jacotot:

não se sabe que caminho traçará o aluno, mas sabe-se de onde ele não sairá – do exercício de sua liberdade. Sabe-se, ainda, que o mestre não terá o direito de se manter longe, mas à sua porta. O aluno deve ver tudo por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder

 

à tríplice questão: o que vês? o que pensas disso? o que fazes com isso? E, assim, até o infinito (RANCIÈRE, 2002, p. 35).

O mestre que se mantem “à porta” o faz pela certeza de que o aluno pode inscrever sua trajetória pela sua própria vontade. É por tal motivo que o Ensino Universal se afasta do ensino Socrático, na opinião de Rancière, pois nesse último o aluno chega as suas conclusões e reverencia seu mestre, pois foi através dele que tudo se construiu e sem ele pouco poderia acontecer. Jacotot, pelo contrário, quer emancipar e deixar que seus alunos sigam sozinhos o seu caminho. Assim, a missão de todo discípulo de Jacotot é, de acordo com Rancière, espalhar a informação de que é possível ensinar o que não se sabe e que se pode verificar a igualdade de inteligências a qualquer momento. Fazer mulheres e homens emancipados e emancipadores.

Dentro da lógica de que somente uma pessoa pode emancipar uma pessoa (RANCIÈRE, 2002) foi que Jacotot apontou a “distração” de um erudito – M. de Lasterie – que quis recomendar o Ensino Universal como modelo a ser seguido. Seu erro consistiu em pedir o apoio da sociedade erudita para recomendar o método ao povo. Essas instituições pressupõem a desigualdade, são inteligências “superiores”, aprovando ou desaprovando a emancipação do povo. “A hierarquização supõe explicação, ficção distributiva, justificadora, de uma desigualdade que não tem outra explicação, senão sua própria existência” (RANCIÈRE, 2002, p. 122).

De acordo com Rancière (2002), a ficção progressista da pedagogia cria uma distância entre a curiosidade que a criança tem, que a faz apreender o mundo e os conhecimentos avançados que devem ser trazidos a esse ser através de um método. Nessas condições o aluno jamais alcançará o mestre, mas a esperança disso os faz seguir as explicações das elites esclarecidas (RANCIÈRE, 2002). De acordo com Rancière, os

 

postos dos pedagogos progressistas é assegurado pela afirmação da dependência do povo:

os progressistas não têm outro poder senão a ignorância, a incapacidade do povo, que embasa seu sacerdócio. Como, sem abrir o abismo sob seus pés, diriam aos homens do povo que não precisam recorrer a eles para serem homens livres e instruídos acerca de tudo que convém a sua dignidade? (RANCIÈRE, 2002, p. 133).

Instruir, nesse caso, seria dar a medida da incapacidade do outro. Já a igualdade não se concede, se verifica. A posição que o mestre da educação embrutecida – o negativo da educação emancipadora – assume, impede sempre que o aluno se emancipe (RANCIÈRE, 2002). Por mais que o mestre da educação embrutecida tenha consciência de que o aluno à sua frente possui um repertório de conhecimento pessoal anterior àquele encontro, ele precisa ignorar esse fato para impor uma distância que determina quando, onde e como o aluno deve aprender, além de estabelecer o que ele deve conhecer antes disso ou daquilo.

Outro tipo de distância, porém, pode ser pensada: “a distância que a pessoa ‘ignorante’ precisa atravessar [...] é a distância entre o que ela já conhece e o que ela ainda não conhece, mas pode aprender pelo mesmo processo” (RANCIÈRE, 2010, p. 114). O aprendizado mais essencial, que é o da língua materna, já foi efetuado pelo aluno e é através dele que este pode passear por um universo de signos que fazem a intermediação do seu contato com o outro e com o mundo (RANCIÈRE, 2010). O aprendizado de outros conteúdos que não a língua materna, pode se dar também por

adivinhação, e Rancière questiona se não seria esse método da

adivinhação, que devolveria o poder e a verdadeira inteligência ao homem. Pois ao tentar reconhecer e responder a algo que lhe é endereçado, o homem pode fazê-lo sob o signo da

 

igualdade e não na condição de aluno ou de sábio (RANCIÈRE, 2010).

No embate de pensamentos que surge em uma relação de mestre e discípulo e que constrói possíveis sentidos para o que é Butoh, o que interessa é o caráter polifônico e não a síntese, o aniquilamento das distâncias. Para Rancière, a tentativa de acabar com as distâncias se baseia justamente na pressuposição de oposições distantes: olhar/saber; aparência/realidade; etc. Estas oposições são alegorias da desigualdade, a “partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2010). Para a emancipação, por outro lado, é imprescindível a igualdade. Rancière também utiliza as ideias de Jacotot de emancipação para pensar a condição do espectador.

O espectador – ou o aprendiz – é visto como ativo, pois interpretar o mundo é dar a ele uma nova configuração. Ele faz o seu poema a partir do poema que é a ele apresentado. O professor, o dramaturgo, o diretor e os atores, porém, muitas vezes esperam que o poema do outro seja exatamente o que eles planejaram, como se este controle pudesse existir. O princípio da emancipação desmonta esse processo de causa e efeito. Para Rancière:

esta identidade entre causa e efeito é o princípio do embrutecimento. Em contrapartida, o princípio da emancipação é a dissociação entre causa e efeito. O paradoxo do mestre ignorante está aí. O aluno do mestre ignorante aprende o que o mestre não sabe já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o que ele descobriu no caminho, enquanto o mestre verifica se ele está realmente procurando. O aluno aprende alguma coisa como um efeito do ensinamento do mestre. Mas ele não aprende o conhecimento do mestre (RANCIÈRE, 2010, p. 116).

 

O que o aluno aprende não é necessariamente o que o outro sabe, ele pode inclusive aprender o que o mestre não sabe. Vejo aí uma aproximação com o ensino no Butoh. Assim como Jacotot afirmava: “é preciso que eu lhes ensine que nada tenho a ensinar-lhes” (JACOTOT apud RANCIÈRE, 2002, p. 27), em Campinas, Tadashi Endo nos disse que não havia aprendido Butoh com Kazuo Ohno e que tampouco nos ensinaria Butoh, visto que não se trata de dança, mas sim de uma escolha de vida. Para ele, ser um dançarino e ser um butoísta são coisas diferentes, é preciso viver o Butoh, é preciso caminhar sozinho. Sendo assim, não é possível definir quando começa e quando termina o aprendizado de Butoh. É preciso abrir a percepção para a vida e encontrar nela o Butoh. Sobre isso, Sartor diz que:

Uma lição de Kazuo Ohno não é uma lição normal. Quando começa? Talvez quando tomamos o trem de Tóquio até Yokohama? Quando nos sentamos no seu estúdio, ao redor da mesa, tomando uma xícara de chá e o escutando antes de trabalhar? (SARTOR, 1995, p. 123).

No caso do ensino de Jacotot e no caso do Butoh, o mestre verifica se o aluno está engajado em sua busca.

Por vezes uma proposta de experiência traz consigo uma tentativa de criar espaços de vida. Trago exemplos de propostas como essa do workshop O visível e o invisível no

trabalho do ator-dançarino16. Dentro de um mês de trabalho, Tadashi Endo e Carlos Simioni, ator-pesquisador do Lume Teatro, convidaram os participantes do workshop para passar

                                                                                                                         

16O visível e o invisível no trabalho do ator-dançarino foi o primeiro

workshop oferecido por Tadashi Endo e Carlos Simioni juntos. Aconteceu durante o mês de fevereiro de 2011, em Campinas, através do Lume Teatro. Os participantes cerca de 30 participantes foram atores e dançarinos de diversas partes do Brasil, além de artistas da Colômbia, Equador, Dinamarca e Espanha.

 

um domingo na casa de Simioni e nos propuseram uma série de ações. Nos dividimos em equipes. Alguns fariam diferentes molhos, outros fariam a salada e outros ainda a sobremesa, Tadashi e Simi fariam macarrão. Pela manhã, nos encontramos para comprar ingredientes. Quando chegamos na casa, permanecemos conversando e esperando que algo acontecesse. Na hora de cozinhar, não poderíamos falar uns com os outros. Nos calamos e imediatamente nossas teimosias começaram a aparecer, assim como os entendimentos através do olhar. As ações simples envolvidas no cozinhar, exigiam de nós a mobilização de nossas sensibilidades. Enquanto isso, os dois proponentes passavam por nós, observavam e davam algumas risadinhas.

Outra ação proposta foi a de que cada um cantasse uma canção de sua infância enquanto os demais se manteriam em silêncio. Toda a casa se envolveu numa bruma de ternura e saudade, parecendo que o silêncio cantado era mais silencioso. Quando uma mesa linda estava arrumada no jardim, fomos convidados a procurar o envelope de hashi que nos pertencia, pois o nosso nome estava escrito lá, em japonês. Havendo cada um escolhido quase às cegas o seu envelope, Tadashi foi passando e reorganizando a distribuição dos hashis, se divertindo com nossos enganos. Eu, por exemplo, devo ter pego algo como “Luiz Otávio” ao invés de “Kysy”. Aquela comida estava envolvida por tudo o que sentimos enquanto cozinhávamos. Conversamos, contamos nossas histórias do Brasil, Colômbia, Equador, Dinamarca, Espanha, Japão e Alemanha.

Nessas propostas de ações fomos levados a encontrar diferentes “nós mesmos” de diferentes maneiras. Estas propostas não trazem em si relação direta com a dança. É um treinamento do sensível, da relação e do invisível. A partir dessa experiência em Campinas, penso que o mestre deixa, com suas ações, espaços vazios que os discípulos devem preencher. Vivendo o que me é proposto, posso me questionar

 

sobre o que o mestre quer de mim, o que está pensando sobre mim ou sobre como eu danço. Este trabalho de preencher esta falta é também falho em muitos sentidos, o que produz uma busca constante. A busca de quem faz Butoh, e os resultados que isso produz, gera o que pode vir a ser Butoh.

Ohno (1995) conta que Yukio Mishima sempre dizia “sua dança é boa”, e Ohno relata que pensava:

Dizer que alguma coisa é boa pode ser interpretado de várias maneiras. O que, na verdade, ele queria significar com isso? [...] eu pensava comigo mesmo: “Minha dança é boa, mas o que é bom?” Poderia valer menos que o ruim, então significaria “o que você faz é ruim”. Isso me deixou pensando durante anos (OHNO, 1995, p.130).

Não é apenas aquele que fala que coloca espaços vazios no que é dito, por vezes é o ouvinte que demanda a busca de mais sentidos no que lhe é oferecido. Uma fala relativamente clara pode ser endereçada a alguém e, ainda assim, esse último produzir questionamentos a partir disso. Neste caso, o desejo pelo saber torna-se mais importante do que os ensinamentos do outro. Para que haja criação a partir destas dúvidas e incertezas é necessário que o sujeito se coloque em uma posição de não saber e de perseguição deste saber. Rancière (2010) afirma que o querer saber é a condição fundamental para o processo do conhecer.

E nesse sentido, a relação com o outro é muito importante. Nesta arte existe espaço para um conhecimento que não está dado em livros ou métodos e interessa pensar em como este conhecimento pode ser suscitado. O mestre existe porque algo deve ser aprendido. Mas, se de acordo com Hijikata o Butoh não pode ser ensinado com exercícios (HIJIKATA, 1995), o questionamento recai sobre o que deve