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Idealizações do Oriente e do Japão

2 MEUS ANTECEDENTES

2.1 BUTOH

2.1.3 Idealizações do Oriente e do Japão

Figura 4 – Imagens do documentário Butoh: piercing the

mask.

 

 

O documentário Butoh: piercing the mask (1991) inicia com uma sequência de imagens que parece brincar com a ideia de que o Japão seria um lugar da tradição idealizada. A casa no “estilo japonês” entre as árvores vai ficando cada vez mais distante e um grande número de prédios aparece e cobrem a cidade até a linha do horizonte. Ao assistir esse documentário, pensei em um paralelo com a obra de Renato Ortiz (2000) O

próximo e o distante: Japão e modernidade - mundo, onde o

autor expõe o processo de construção de diversos discursos sobre o Japão que possibilitaram uma série de idealizações da cultura nipônica. O livro se dedica ao processo de mundialização da cultura usando o Japão, segundo os seus termos, como texto e pretexto. Pretexto no sentido de que utiliza alguns aspectos do Japão para falar de diversas realidades nacionais que são atravessadas pela globalização e mundialização da cultura.

Com esse processo, as noções espaciais como as de lugar “familiar” e “exterior” se alteram. Por isso, Ortiz afirma que seu olhar é desterritorializado e abre mão da perspectiva de um Japão “exótico”, “distante”, “oriental” e quer apreendê-lo como “vizinho”, “próximo”, parte da modernidade - mundo. Nesse sentido, viajar ao Japão (parte da pesquisa do autor) é tratado como um deslocamento por um “continuum espacial diferenciado” (ORTIZ, 2000, p. 14). E esta visão, aliada a um processo detalhado de pesquisa, tornam sua obra referência importante quando se busca uma visão crítica da história e dos estereótipos de um suposto “ser japonês”.

Mas por que discutir mundialização da cultura a partir do Japão, país dito isolado e que conserva uma rígida tradição? O autor se engaja na desconstrução de tais ideias, trazendo uma longa pesquisa por obras e bibliotecas brasileiras, norte- americanas, inglesas, francesas e japonesas. Assim, recolhe uma série de discursos que contribuem para o senso comum (e o senso comum acadêmico) “no qual diferentes intérpretes tomam a sério essa tarefa de decifradores, como se fosse

 

plausível realizar um esforço hercúleo para se chegar ao entendimento de algo inacessível” (ORTIZ, 2000, p. 21). O aspecto estranho, distante e inacessível do Japão foi e é bastante enfatizado na literatura, como se tudo o que é feito por “eles”, os japoneses, fosse diferente de “nós”, os europeus ou os brasileiros (ORTIZ, 2000).

A primeira vista, o Japão poderia ser um país que nada tem em comum com o Brasil15, no entanto, a questão nacional é um problema tão caro aos intelectuais japoneses quanto aos latino-americanos (ORTIZ, 2000). Segundo Ortiz, reencontram-se ideias e conceitos presentes nas “nossas” discussões sobre a modernidade: “identidade nacional, oposição entre autóctone e alienígena e, claro, a presença de escolas como o romantismo alemão, os folcloristas, o culturalismo antropológico” (ORTIZ, 2000, p.14). Esse tipo de aproximação entre Brasil e Japão é difícil de ser encontrada na literatura sobre Butoh, o que se ressalta comumente, são os aspectos que nos afastam. Nesse sentido a medida que criamos nossos discursos a partir de discursos eucêntricos reiteramos os processos de dominação.

Talvez uma forma de resistir a visão eurocêntrica seja a partir de obras que tornem essas relações de dominação visíveis. Uma obra seminal para o debate das construções de ideais sobre o Oriente é Orientalismo de Edward Said (1990). O livro está dedicado exclusivamente ao estudo do Oriente como invenção dos discursos do Ocidente. Mais especificamente, o autor dedica-se aos discursos europeus e norte-americanos sobre o Oriente Médio. Mas, essa investigação pode também ser usada como reflexão sobre o que os norte-americanos chamam de Oriente e os europeus de “far

east”, que seriam os países da Ásia, como China, Índia e

Japão. O autor afirma que “sem examinar o orientalismo como

                                                                                                                         

15Segundo o Centro de Estudo Nipo-brasileiro a população nipônica, entre

japoneses e decendentes, perfaz cerca de 1,4 milhões de pessoas. Fonte: http://www.cenb.org.br/cenb/index.php/articles/display_pt/207

 

um discurso, não se pode entender a disciplina enormemente sistemática por meio da qual a cultura europeia conseguiu administrar – e até produzir – o Oriente política, sociológica, ideológica, científica e imaginativamente durante o período pós-Iluminismo” (SAID, 1990, p. 15). Segundo ele, desde a Antiguidade o Oriente foi um lugar idealizado como espaço de “romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis” (SAID, 1990, p. 13).

No entanto, como podemos notar nas fotos acima e em toda a argumentação de Said, o Oriente não é um fato estagnado na natureza, nem na história. Porém, a própria ideia lúdica de que exista “um Oriente” já contribui para que ele esteja suspenso e inerte. Para Said, as histórias sobre esse outro lado do mundo (que abarcam de documentos a poemas) não são apenas frutos de imaginação, mas de relações de poder e dominação em diversos níveis. Esse é um dos motivos pelos quais o autor aponta que não há estudos correspondentes sobre o Ocidente no Oriente. Para ele, a posição daquele que se dedica a produzir conhecimento nunca será neutra e não é possível fazer distinção entre conhecimento puro e conhecimento político. O orientalismo é, para Said, um olhar para o Oriente que diz menos do outro do que de nós mesmos. Usa como exemplo o poder moral exercido pelas “ideias do que ‘nós’ fazemos e o que ‘eles’ não podem fazer ou entender como ‘nós’ fazemos” (SAID, 1990, p. 24).

Seguindo uma abordagem similar a de Said, Ortiz (2000) enfoca essa relação de poder no seu estudo comentando o papel do japonólogo (especialista em estudos japoneses). Para o autor, a japonologia agrupa diferentes propostas sob uma unidade geográfica (o Japão) e um raciocínio consolidado pela tradição da área, no qual certas dúvidas e formulações incômodas a esse conhecimento estabelecido perdem lugar. Ele, enquanto alguém que escreve sobre o Japão, se coloca de fora desta lógica, visto que seu trabalho coloca em questão o próprio fundamento da japonologia.

 

Conforme Said (1990), o discurso orientalista é um discurso de autoridade, no qual a voz do Ocidente se faz possível pela total ausência do Oriente. Devido à influência das análises arqueológicas de Foucault, Said está interessado no que está na superfície do texto orientalista, na sua exterioridade em relação ao que descreve e não no que estaria oculto detrás dele. O autor enfatiza a evidência de que as representações do Oriente são sempre “representações” tanto em textos ditos verdadeiros como em textos assumidamente artísticos. Por isso não se deve procurar a “correção” dessas representações ou a fidelidade a algum original, mas sim “os estilos, figuras de linguagem, os cenários, mecanismos narrativos, as circunstâncias históricas e sociais” (SAID, 1990, p. 32). Com o seu trabalho, Said objetiva movimentar a crítica de suposições inquestionadas a partir das quais muitos trabalhos são produzidos. Por isso vale a pena, antes de simplesmente aceitar uma verdade dura sobre o Butoh, expor do que ela é feita. Os trabalhos de Said e Ortiz podem oferecer ferramentas para pensar na produção desse Butoh idealizado e silencioso circunscrito a um Japão com as mesmas características. Para Said:

o valor, a eficácia, a força e a aparente veracidade de uma declaração escrita sobre o Oriente, portanto, baseiam-se muito pouco no próprio Oriente, e não podem instrumentalmente depender dele como tal. Ao contrário, a declaração escrita é uma presença para o leitor em virtude de ter excluído, deslocado e tornado supérfluo qualquer tipo de “coisa autêntica” como “o Oriente”. Desse modo, todo o orientalismo está fora do Oriente, e afastado dele: que o orientalismo tenha qualquer sentido depende mais do Ocidente que do Oriente, e esse sentido é diretamente tributário das várias técnicas ocidentais de representação que tornam o Oriente visível, claro e “lá” como discurso sobre ele (SAID, 1990, p. 33).

 

Para Said, a própria designação de algo como oriental envolve um juízo de valor previamente estabelecido. Por exemplo, nos diferentes textos sobre o islã, o autor comenta que há uma “inferioridade latente”. Ortiz traz uma análise semelhante, parafraseando o relato de Basil Hall Chamberlain, em 1873, que enumera elementos de um “mundo invertido” japonês:

o pé da página é impresso no alto da página; come-se doce antes da refeição e não como sobremesa; monta-se o cavalo pelo lado direito, e não pelo esquerdo; não se diz nordeste e sudeste, mas este-norte e este-sul; carrega-se o bebê nas costas, e não no colo; ao se construir uma casa o teto é a primeira parte edificada; quando se costura a agulha é “enfiada” no fio, e não o contrário (ORTIZ, 2000, p. 20).

Ortiz cita também outra obra de divulgação sobre a história e a cultura do país mais recente, de 1988, de Benedicto de Barros:

A despeito do esforço extraordinário que a inteligência ocidental vem desenvolvendo para se dar conta do portentoso fenômeno japonês e da solicitude japonesa em se fazer compreender [...], não foi possível ainda aos ocidentais encontrar um nome, uma atitude uma compreensão adequados ao desempenho do Japão (BARROS apud ORTIZ, 2000, p. 21).

Nesses discursos sobre o Japão é possível perceber uma “superioridade latente”. Superioridade essa, demonstrada fazendo as mais estranhas associações. Ortiz traz o relato de autores que atribuem ao capitalismo japonês um êxito decorrente das práticas zen, das técnicas guerreiras dos samurais e do confucionismo. A literatura sobre o Japão passa

 

então a atrair homens de negócios que desejam entender a eficácia e a “magia” japonesa (ORTIZ, 2000, p. 22). Essa idealização é reafirmada também pelos próprios escritores japoneses que, segundo Ortiz, falam de “um homem único, excepcional, existente apenas nas ilhas nipônicas. Daí a dificuldade dos estrangeiros em compreender os seus fundamentos” (ORTIZ, 2000, p. 22). Kosaku Yoshino, citado por Ortiz, critica o modo como uma diferença cultural é tomada para tirar uma conclusão genérica como a de que “os japoneses possuiriam uma forma de raciocinar não verbal, empatética, alógica, radicalmente oposta ao modo de pensar ‘ocidental’” (ORTIZ, 2000, p. 23).

No que diz respeito à arte tradicional japonesa, Kojin Karatani afirma que “é provável que tenha sido [Ernst] Fenollosa um dos responsáveis por imprimir um discurso ocidentalizado à arte japonesa, no sentido de considerá-la do ponto de vista estético como superior às manifestações Ocidentais” (KARATANI apud GREINER, 1998, p. 13). Esse processo, de colocar a arte oriental num lugar distante de nós, vem com uma calcificação do artista e parece não repertoriar seus erros e tentativas que são bastante comuns na criação. Said comenta que “a própria possibilidade de desenvolvimento, transformação, movimento humano – no sentido mais profundo da palavra – é negada ao Oriente e ao oriental” (SAID, 1990, p. 214).

Greiner (1998) comenta que Said não chega a discutir as respostas que os próprios orientais produziram diante desses discursos de dominação. Segundo ela, o Butoh seria uma dessas respostas a esses saberes pré-fabricados e impostos. Réplica esta que, para ela, é bastante diferente do “estilo japonês”, pois no Butoh “a polidez asséptica e bem comportada é revirada pelo avesso” (GREINER, 1998, p. 16). Acredito que a radicalidade da reação do Butoh esteja na desconstrução não apenas de um saber pré-fabricado sobre o que é ser japonês mas do próprio saber constituído pela racionalidade. A morte

 

que o Butoh traz, entre outras coisas, é para sua própria definição, para a exaltação da técnica (nos moldes tradicionais) em dança. Acima de tudo, ele subverte uma dominação que é mais abrangente: a dominação de um saber/poder sobre o corpo. Pretendo citar essa discussão no Terceiro Capítulo. Neste momento, o debate foca-se na construção de discursos sobre o Japão e o Butoh.

Aspectos importantes do início destas visões sobre o Japão repousam na literatura nijonjinhon, cujas raízes estão no surgimento da escola kokugaku (Aprendizado Nacional) dos séculos XVII e XVIII (ORTIZ, 2000). Essa escola tinha como objetivos negar o formalismo confucionista e a tradição vigente, em busca de um conhecimento autóctone, o que os leva a redescoberta do xintoísmo. A literatura nijonjinhon é composta de “textos, romances, poesias, análises sociológicas, escritos de marketing cujo intuito é discutir a japonidade” (p. 25). Nestes textos, conta Ortiz, assume-se de antemão uma homogeneidade social e racial existente ao longo dos séculos, além de uma diferença radical das outras culturas. Essa tentativa de afirmação nacional se relaciona com uma história na qual a presença da China traz uma forte influência cultural.

Seria o país [Japão] um prolongamento do império celestial, expressão de uma sabedoria milenar ou teria ele capacidade de absorção e de assimilação do que vinha de fora? Como o período histórico, isto é, o advento da cidade, de uma sociedade de classes, de uma administração centralizada (século VI), se faz sob a égide chinesa (introdução de ideogramas, do budismo, do direito), a existência de um “ser” japonês é incerta desde o início (ORTIZ, 2000, p. 26).

O autor demonstra como até a Revolução Meiji (forte modernização iniciada em 1868) não era possível afirmar a existência de uma nação japonesa, pois, como propõe Marcel

 

Mauss (apud ORTIZ, 2000), a nação é uma unidade moral, mental e cultural relativa a uma aderência consciente às leis e ao Estado. E durante o período Tokugawa (era feudal japonesa) o país ainda se configurava como sociedade compartimentada, composta de comunidades autônomas e heterogêneas sem grande comunicação entre si. Os habitantes de determinado feudo eram bastante controlados e deslocamentos dificilmente eram permitidos (ORTIZ, 2000).

É na Revolução Meiji que a constituição de uma nação se torna possível juntamente com a retomada de alguns preceitos da filosofia kokugaku, assim ocorrendo o que Ortiz denomina “japonização”. No entanto, não havia interesse em “abolir as modificações da modernização, como industrialização, urbanização, migração do campo para a cidade, fim do regime estamental, monetarização da economia” (ORTIZ, 2000, p. 28), o que impedia uma retomada total da “tradição” japonesa. A solução para essas ameaças ao “ser” japonês foi encontrada em “um compromisso fundado na dicotomia entre alma e o corpo, polaridade até então inexistente na cultura tradicional religiosa” (p. 28). Desse modo, o corpo estaria em contato com as inovações e organizações “ocidentais” e a alma se manteria ilesa na sua natureza nipônica. Na revalorização da tradição é que ocorreria a preservação do “espírito” orienta (ORTIZ, 2000).

Dentro da dicotomia Ocidente/Japão, dois tipos de análise sobre o contato entre opostos são ressaltados por Ortiz (2000): a ocidentalização, na qual o Japão seria invadido pela cultura estrangeira, o que muitas vezes seria sinônimo de americanização; e a “japonização”, espécie de “deglutição” do que é estrangeiro tornando tais elementos japonizados (ORTIZ, 2000). Como dito anteriormente, ambas as análises se fundam em uma oposição e, segundo o autor, elas preservam as fronteira “dentro” e “fora”, “interno” e “externo”. Nos dois casos “parte-se do princípio de que a “cultura ocidental” constituiria um todo coerente e coeso e que no contato

 

civilizatório com a “cultura japonesa” ocorreria uma redefinição dos termos em confronto” (p. 141). Porém, com a mundialização e a consequente desterritorialização, conceitos como Ocidente e Oriente tornam-se inconsistentes. Para Ortiz:

ocidentalidade e japonidade atuam como referências sígnicas, mas em nenhum momento elas se constituem em forças estruturantes do mercado de bens simbólicos e dos estilos de vida. Para compreendê-las é necessário nos deslocarmos no plano geocultural para o da modernidade-mundo (ORTIZ, 2000, p. 148).

Dentro dessa perspectiva desterritorializada e partindo das proximidades fica mais fácil estabelecer diálogos como brasileira com algo que está na mesma modernidade-mundo que eu.